Semana do Índio

As Pajés Yawanawá

27 de abril de 2006

A primeira pajé brasileira Raimunda Yawanawá foi uma das cinco personalidades homenageadas este ano pelo Senado por ocasião do Dia Internacional da Mulher

Fotos: Altino Machado


Raimunda Yawanawá: A gente precisa limpar o coração
e redescobrir o amor, a humildade, a coragem de defender a igualdade entre todos e a vida, com tudo de bom e
 bonito que ela tem.


Não foi fácil para Raimunda e Kátia Yawanawá vencerem a resistência dos sábios da tribo e ostentarem, hoje, o título de Pajé. As mulheres estão fora desta  função.”Precisei provar da vida de branco para entender a importância de minha cultura”, diz Raimunda Putani Yawanawá, a primeira Pajé brasileira. Para acabar com esta tradição, Raimunda e Kátia Yawanawá passaram por uma provação. Ambas enfrentaram uma dura prova de resistência, ficando um ano isoladas na mata. Neste “No Limite” cultural, Raimunda e Kátia tinham que fazer abstinência sexual e comer apenas alimentos crus. De bebida, apenas uma especial à base de milho.
Vitoriosas nesta prova de resistência, as irmãs Yawanawá ficaram prontas para a nova missão. Pajés de sua tribo, agora elas são conselheiras, guardiãs da cultura, dos costumes e da sabedoria do seu povo.
 E Raimunda Yawanawá explica, em português, para os brancos com a mesma docilidade com que fala na língua Yawanawá à sua gente: “Tive muita vontade de aprender, de estudar e de viver nossos usos e costumes. Era uma força que estava dentro de mim. Quero poder ajudar e a guiar o meu povo. A vida tem que ter um sentido, ter uma seqüência”.
As irmãs Yawanawá sabem de suas responsabilidades quando fizeram o juramento ao Rare, planta sagrada de seu povo. ” Hoje eu sei quem eu sou. Estou em paz. Minha língua, minha cultura são muito ricas e bonitas. Elas são nossa identidade. Sei da beleza e da força da natureza. Sinto a força do pensamento. Quando ele é firme, não existe nada impossível, nem nada superior ou inferior. Somos iguais nesta passagem pela vida. Cada um com sua função e o poder de seu querer, que deve ser usado sempre para o bem de todos”, ensina a primeira Pajé brasileira.


Pajé Raimunda Yawanawá – ENTREVISTA


Por Altino Machado (*)
Segundo Laura Soriano Yawanawa (ver box na página ao lado), Kátia Hushahu e Raimunda Putani nasceram na Terra Indígena do Rio Gregório, no Acre, no sudoeste da Amazônia brasileira. Hushahu e Putani foram as únicas mulheres que tiveram coragem de fazer juramento ao Rare, a planta sagrada do povo Yawanawá, que inicia ao aprendizado do mundo espiritual do xamanismo. Elas juraram ao Rare e aos espíritos dos ancestrais que iriam dedicar suas vidas a aprender e a ajudar o povo yawanawá na sua ciência tradicional. Quando as duas foram iniciadas no conhecimento espiritual yawanawá, ninguém acreditava nelas, principalmente os homens da aldeia. Falavam que não existia mulher Pajé dentro da cultura yawanawa e que a atitude delas era contra a cultura de seu povo. Mas o velho e sábio Tuin Kuru falou:- Isso não é verdade. Nosso conhecimento é espiritual e não tem nada a ver com o sexo, cor ou cheiro. Sendo homem ou mulher, todos podem aprender porque o nosso conhecimento é espiritual.


Branco e índio: a diferença é só dos olhos e da cor. De pensamento e coração somos todos iguais.


O momento mais difícil
Raimunda – Foi viver isoladamente. Ficamos um ano, precisamente nove meses, apenas na companhia do meu pai e do pajé Tata. A gente começou a tomar rapé e ele me dava muito porre. Uma vez cheguei a cair, a desmaiar mesmo. A pressão dele dá muita sede, causa falta de fôlego, o corpo adormece completamente e o coração fica a mil por hora. A gente não podia tomar água.
Sem tomar água
Raimunda – Até o momento a gente não toma água. Agora começamos a tomar água com limão. Tem que ser algo azedo, que não contenha doce. Isso é para que nossas palavras e nossas mãos fiquem sempre com poder. O doce corta o poder. É como se algo estivesse pegando fogo e alguém jogasse água. O fogo apaga. Dessa forma, o nosso pensamento, a nossa palavra, têm poder para o que  a gente falar acontecer.


Queremos paz para este mundo


A prova da cobra
Raimunda – Logo após dois meses da dieta, quando mexemos com a planta sagrada, o Rare, meu pai trouxe a jibóia e nós tomamos o cuspe dela. Tomamos o cuspe e o conhecimento dela. A gente não sentiu medo.


Reação da tribo pela
decisão  de ser Pajé
Raimunda – Não existe na história do nosso povo que uma mulher tenha mexido na planta sagrada, o Rare. Nunca nenhuma mulher foi à luta para ser pajé. Quem sempre era pajé eram os homens. A mulher é sempre a dona de casa, faz a caiçuma, cria os filhos, está sempre do lado do esposo.
Pra gente ir para essa outra parte da nossa cultura, do nosso conhecimento, foi tipo quebrar um tabu. Por isso que levamos ao pé da letra o cumprimento da dieta. Muitos, quando fomos fazer a dieta, disseram que nós não aguentaríamos com o argumento de que mulheres têm muitos desejos. Está com um ano e dois meses que não temos relação com homem.


Rare, a planta sagrada
Kátia – O Rare é uma planta muito sagrada. A partir do momento que a gente come, a gente já planta ele dentro da gente. A partir desse momento, a gente já passa a ter o conhecimento e o poder do Rare. E o nosso espírito passa a ter o poder de curar uma doença, de fazer o que for. Podemos tocar numa pessoa e dizer para ela que vai ficar boa. As nossas palavras são muito sagradas. Ele é uma planta, mas é espírito. Ele também tem uma mulher. Sempre é uma mulher tanto nele quanto na jibóia.
Nos nossos sonhos é sempre uma mulher que traz o conhecimento. Ele é muito poderoso.
A gente não pode passar perto dele falando alguma coisa. Tem que passar devagar, de cabeça baixa. Se acontecer de tocar, tem que passar dois meses fazendo a mesma dieta que nós estamos fazendo. Ele, para nós, é como se fosse Deus. Acreditamos no que fazemos, no que sai da nossa boca.
Até ao pensarmos em alguma coisa, a gente já fez, já aconteceu. Basta a gente pensar com o coração. Ele também previne o que vai acontecer. Se uma pessoa chegar com pressentimento ruim, o nosso corpo já sente. Quem rebate isso aí é o rapé e o uni.


Humildade e sofrimento
Kátia – Para chegar aonde chegamos carregamos muita humildade em nossos corações. Acho que é um exemplo que podemos dar para o mundo, para o Brasil, deixando a mensagem de que tudo a gente consegue com sofrimento e humildade em nossos corações. E que isso é necessário para o engrandecimento do espírito. E também queremos pedir para trazer em nossos pensamentos coisas boas para o mundo. Quando estamos lá no mato, nós sopramos para cima, para o céu, para o sol que ilumina o mundo inteiro, e pedimos paz para esse mundo que é de muita violência e sofrimento.


Reação à notícia do prêmio?
Raimunda – Na verdade quem recebeu o prêmio é o povo yawanawá. Somos duas mensageiras. Viemos trazer a mensagem não apenas do nosso povo, mas de todo os povos indígenas. Para nós foi motivo de muita alegria, de muito respeito. O nosso povo agradece por vocês olharem pra gente com respeito, pois somos humanos, que temos pensamentos, corações, as coisas boas. Isso mostra que somos filhos do mesmo criador. Na verdade nós somos todos irmãos. Existe apenas a diferença física dos olhos, da cor, mas na verdade no coração e no pensamento somos iguais. Quando a gente vai para outra dimensão, vamos no mesmo caminho e lá vamos nos encontrar da mesma forma.


(*) O jornalista Altino Machado é acreano e tem um blog chamado “Blog do Altino” http://altino.blogspot.com/  Trabalhou em Rio Branco, Goiânia, Brasília e Manaus durante os dez anos em que permaneceu como repórter dos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo. Hoje trabalha na Secom do Governo do Acre.


“O doce corta o poder. É como se algo estivesse pegando fogo e alguém jogasse água. O fogo apaga. Assim, o nosso pensamento e nossa palavra têm poder, para
o que a gente fale aconteça”.


As irmãs Yawanawá sabem de suas responsabilidades ao fazeram o juramento


 


summary


The  Yawanawá shaman
The first Brazilian female shaman, Raimunda Yawanawá was one of the five distinguished personalities honored this year by the Senate on the occasion of International Women’s Day.


Shamans are healers and messengers endowed with supernatural powers.  They personify the wisdom of their people.  They are driven by intuition and the knowledge of their ancestors; shamans are like a splendidly starry night: with millions of eyes they gaze upon the world, nature and each of the tribulations of their tribes.  Doctors, holy men and guides, the shamans are always in a position of prominence among the Indian peoples.  However, there is one small detail; they are always male. Well, they always used to be male.  Now in Brazil, we have just presented to the world a female shaman or rather two of them. They are Acrean Indians, Raimunda Putani Yawanawá, 27 years old and  Kátia Yawanawá, 26. The Shaman Raimunda Putani Yawanawá was the first of five women awarded by the Federal Senate, this year, in the firth year of the Female-Citizen Award Bertha Lutz on International Women’s Day, on March 8.  Along with the Acrean native, Elizabeth Altina Teixeira (Pernambuco State), Geraldina Pereira de Oliveira (Pará State), Jupyra Barbosa Ghedini (Distrito Federal) and Rosmary Corrêa (São Paulo State) were also honored.
It was not easy for Raimunda and Kátia Yawanawá overcome the resistance of the wise men of the tribe and today can boast the title of shaman. They had been outside this function. “I had to experience the life of the white man to understand the importance of my culture,” stated the first Brazilian female shaman. To end this tradition, Raimunda and Kátia Yawanawá had to undergo a test.  Both of them had to undergo an endurance test and remain isolated in the wilds. In this cultural “Survivor” reality show, Raimunda and Kátia had to abstain from sexual relations and eat only raw foods.  They could only drink a special corn based beverage. 
Victorious in this endurance test, the Yawanawá sisters were ready to take on their new mission.  Shamans of their tribe, they can now serve as advisers and guardians of their people’s culture, customs and wisdom.


Laura, o Rare e o resgate cultural


Laura Soriano Yawanawa é índia de origem mexicana, das etnias mixteco e zapoteco, formada em antropologia e relações internacionais pelo Principio College de Ilinois (EUA) e assessora dos projetos sociais e econômicos do povo yawanawa. É casada com Joaquim Tashka, um dos líderes yawanawá. O Rare que ela cita é a raiz da planta mais sagrada para o povo yawanawá. Representa o Criador. É tão sagrada que mulheres e crianças não podem passar por perto. Apenas os pajés podem tocar a raiz do Rare. Ao tomar Rare, o espírito da cobra, que é o ser iluminado e de força espiritual, vem habitar no seu coração. A partir do momento que se faz juramento ao Rare a vida muda, sobretudo a forma de pensar. A pessoa renasce e acorda para o mundo espiritual, passando a encará-lo sob nova perspectiva.
Altino Machado (*)


Encontro de Saberes Indígenas
Pajés de vários países se reúnem no Xingu e se proclamam irmãos do conhecimento.


Fotos: Leonardo Alves do Prado


Arvol Looking Horse – cacique Lakota – e os taytas colombianos na Casa das Flautas


Silvestre Gorgulho, de Brasília
O Brasil sediou o Encontro de Saberes. Foi um encontro internacional de praticantes das culturas tradicionais, também conhecido como Encontro de Pajés. Representantes do Canadá, Suriname, dos Estados Unidos, da Colômbia e do Brasil se reuniram nos dias 26 a 30 de março, na Aldeia Piyulaga, do Povo Waurá, no Alto Xingu – MT. O encontro nasceu da necessidade de realizar um intercâmbio entre aqueles que são líderes espirituais entre os seus povos. Em 2002, um pajé colombiano visitou o Xingu e lá convidou pajés para visitarem a Colômbia. Em 2005, os indígenas brasileiros retribuíram a visita e decidiram continuar o intercâmbio. Daí surgiu a idéia de fazer uma reunião mais ampla para fortalecer vínculos e trocar informações culturais. Mais do que um intercâmbio cultural, o Encontro de Saberes promoveu um intercâmbio espiritual. O Encontro de Saberes foi organizado pela Associação Indígena Tulukai, do povo Waurá, com apoio financeiro e logístico da Ong Amazon Conservation Team – ACT Brasil. Ninguém melhor para  falar sobre o encontro, do que o antropólogo e estudioso dos rituais indígenas, Júlio César Borges, que esteve lá como observador convidado da Associação Indígena Tulukai. Júlio Borges tem 28 anos, é Mestre em Antropologia pela UnB e sua tese de Mestrado versou sobre os rituais dos índios Krahôs.


Júlio César Borges é Mestre em Antropologia pela UnB e defendeu sua tese baseada em rituais dos Krahôs


Folha do Meio – Júlio, dê para gente o tom geral, o clima deste encontro de saberes?
Júlio C. Borges – Olha, para dizer a verdade parecia até que os pajés estiveram reunidos durante toda sua vida, tamanha foi a discrição com que foram todos recebidos. Havia mais de um ano que não se viam e, no entanto, a impressão era de que passaram a véspera toda conversando juntos, juntos curando. É compreensível. Segundo o tayta (esse é o nome que os índios colombianos usam para designar o pajé) Luciano Mutumbajoy, coordenador da União dos Médicos Indígenas Yageceros da Amazônia Colombiana, um dos convidados, “o conhecimento ancestral não tem fronteiras e nada pode detê-lo”. As palavras de Luciano dão o tom geral que animou o Encontro de Saberes.
FMA – Você como branco, como estudioso dos povos indígenas, como você se sentiu ao presenciar e viver um encontro de Pajés como esse?
Júlio – Olha, eu me senti muito feliz e esperançoso diante de tudo o que ocorreu. Logo na abertura, o pajé anfitrião Ysautaku, do povo Waurá, foi dando as boas-vindas dizendo que esse encontro era “uma forma de um dar força ao outro”. E não era para menos, pois a função, a responsabilidade dos pajés é justamente a de promover  o equilíbrio entre os seres, realizar as  curas e  a recriação dos cosmos através dos seus ritos. Mas a verdade é que as múltiplas influências da sociedade ocidental – a medicina e os fármacos, por exemplo – têm minado a importância dos pajés nos sistemas sociais indígenas.
Como conseqüência, estamos assistindo por toda a Amazônia a desvalorização dos saberes médicos tradicionais e a proliferação de doenças com o avanço do alcoolismo, a perda do orgulho étnico e a degradação dos ecossistemas.
O cacique do povo Waurá, Atamai,  tem toda razão quando  observa que “o pajé já vem de muito tempo, de antes do ‘homem branco’, quando não tinha remédio, enfermeiro, médico. Não tinha nada. Então ele é nosso médico, que fica cuidando de nossa saúde. Por isso a gente não quer que acabe isso”.


FMA – Como nasceu esse Encontro de Pajés?
Júlio – Percebendo essas ameaças às suas culturas,  os pajés dos povos Waurá (Brasil) e Inga (Colômbia) resolveram dar início a uma série de intercâmbios com o objetivo geral de fortalecer os saberes tradicionais dos seus povos e os seus praticantes. O primeiro passo nesse sentido foi a visita do tayta (pajé) inga Luciano Mutumbajoy à aldeia Piyulaga, do povo Waurá, em 2004. No ano seguinte, foi a vez dos Waurá irem à Colômbia para conhecer a União de Médicos Indígenas Yageceros da Amazônia Colombiana (UMIYAC), coordenada pelo tayta Luciano.
A UMIYAC  tem desempenhado papel fundamental no processo de revalorização da medicina tradicional dos povos indígenas da Amazônia colombiana. Durante essa visita, o cacique e o pajé principal do povo Waurá, Atamai e Ysautaku, e os taytas decidiram realizar um encontro que reunisse sábios indígenas de várias etnias para partilharem suas práticas de cura e para refletirem sobre formas eficazes de proteção e reconhecimento dos seus saberes.


Pajés Participantes
Canadá: Povo Cree (James Lamouche); Povo Mohawk (Dawn Martin Hill); Povo Ojibway (Alexandra Darnay); Povo Onondaga (Raymond Smith); Povo Tuscarora (Karen Hill).
Colômbia: Povo Ingá (Germán Mojomboy,  Patrício Jojoa, Luciano Mutumbajoy); Povo Kamzá (Pablo Chindoy); Povo Siona (Juan Yaiguaje).
Brasil: Povo Tiriyo (Siwaun Tiriyo , Diakui Tiriyo).
EUA: Povo Lakota (Arvol Looking Horse).
Suriname: Povo Wayana (Same Ikinaidoe); Povo Tiriyó(Amasina Uremaru).


A pajelança do bem


Taytas colombianos e pajés Waurá diante da Casa das Flautas, que é o espaço público, no centro da aldeia


Tayta Luciano Mutumbajoy é pintado por um dançarino Waurá


 


 


FMA – E como era a comunicação entre os pajés participantes?
Júlio – Além do Tiriyó (que é uma língua da família Carib) e do Waurá (da família lingüística Arawak), o português, o espanhol e o inglês foram os idiomas falados durante os cinco dias em que os indígenas estiveram reunidos. Evidente que os símbolos, os gestos e os rituais  também  estabeleceram a compreensão comum entre os participantes. Mas havia os intérpretes para todas as línguas e não houve nenhuma dificuldade de comunicação.
Talvez os índios tenham dado uma outra lição aos “sábios brancos” que se reuniram na COP-8 e MOP-3, em Curitiba: os pajés foram mais simples, mais objetivos, mais competentes e mais comunicativos.


FMA – Explique melhor como foi esse encontro de saberes?
Júlio – Foi um encontro de culturas e de línguas onde os presentes puderam participar dos rituais uns dos outros. Vale destacar até a fala do pajé Ysautaku, que fez questão de frisar: “Eu sou pajé como vocês por isso eu sonhei também, sonhei com alguém me dizendo em meu sonho: nosso costume é o mesmo, é tudo igual. Eu queria ver a diferença, agora, que separe todos os grupos para ver diferença que tem”.


FMA – Mas como foi o cerimonial e as atividades do encontro?
Júlio – A coordenação foi dos anfitriões, os Waurá. Foram os próprios participantes que decidiram quais e como seriam as atividades que ocorreriam durante o seu encontro. Assim, na tarde do primeiro dia do encontro todos se reuniram na Casa das Flautas para decidir qual seria a ordem das “apresentações”.
Todas as reuniões públicas aconteceram na Casa das Flautas, que é o espaço público, no centro da aldeia. As reuniões obedeceram às regras indígenas da conversação, segundo as quais quem fala não deve ser interrompido. Os mais velhos e mais sábios também têm a primazia da fala.
A primeira demonstração compartilhada foi dos próprios Waurá. Depois, foi a vez dos pajés colombianos, seguidos por Amasina, pajé Tiriyó do Suriname.
Os representantes das “Seis Nações” realizaram a demonstração daquela que se tornou, graças a Hollywood, uma das mais conhecidas cerimônias indígenas: a cerimônia do “cachimbo da paz”.
Os pajés Waurá fizeram uma exposição ritual de alguns traços de sua pajelança. O velho pajé Ysautaku, diante de todos os presentes, fumou um enorme charuto de tabaco dando algumas pausas para prender a fumaça dentro do seu corpo. A fumaça do tabaco põe o pajé em contato com o mundo dos espíritos, com os quais partilha certos poderes. Depois disso, demonstrou um dos aspectos da iniciação de um pajé no Alto Xingu. Assoprou a fumaça do seu cigarro em vários pontos do corpo de um aprendiz, Tupanomaká, para proteger-lhe do contato com os espíritos e depois lhe ofereceu um charuto de tabaco. O aprendiz o fumou todo sem vomitar ou desmaiar e  foi, assim, aprovado por Ysautaku. Em seguida, foram oferecidos charutos de tabacos aos pajés visitantes.
Houve outros rituais, vários em volta da fogueira armada diante da Casa das Flautas. Durante  a cerimônia do yagé (planta também conhecida como caapi ou ayahnasca) por exemplo, os taytas conduziam e curavam a partir dos sentidos: olfato com a fumaça de um incenso natural, audição com os cantos, recitações e a melodia de uma gaita, a visão com as “pintas” provocadas pela bebida yagé.


”Eu sou pajé como vocês por isso eu sonhei também, sonhei com alguém me dizendo em meu sonho: nosso costume é o mesmo, é tudo igual.” Pajé Ysautaku


summary


Meeting of indigenous knowledge
Shamans from several countries met in the Xingu River territory and proclaimed brotherhood in knowledge.


Brazil hosted the Knowledge Meeting. It was an international meeting of traditional cultural practitioners, also known as the Shamans Meeting. Representatives from Canada, Surinam, the United States, Colombia and Brazil met from March 26 to 30 in the Piyulaga Village of the  Waurá People in the Upper Xingu River – Mato Grosso State. The meeting arose from the need to establish an exchange among those who are spiritual leaders among their people. In 2002, a Colombian shaman visited the Xingu and during his stay invited other shaman to visit Colombia. In 2005, the Brazilian natives repaid the visit and decided to continue the exchange. From that the idea came about to hold a more inclusive meeting to strengthen ties and exchange cultural information. However, the Knowledge Meeting was more than a cultural exchange, it also promoted spiritual exchange. The Knowledge Meeting was organized by the Tulukai Indigenous Association of the Waurá people with the financial support and logistics of the NGO, Amazon Conservation Team – ACT Brazil. There is no one who can better describe the meeting than the anthropologist and scholar of Indian rituals,  Júlio César Borges, who was there as an observer at the invitation of the Tulukai Indigenous Association. Júlio Borges is 28 years old and holds a Masters in Anthropology from Universidade de Brasília-UnB and his Masters thesis is on the rituals of the Krahô Indians.


Júlio Borges – It seemed as though the shamans had been together all their lives, from the way they were so discreetly received. It had been over a year since they has seen each other but it seemed as though they had spent the entire evening together talking, practicing the healing arts together.  It was understandable.  
According to Tayta [the name the Colombian Indians use to designate the shaman] Luciano Mutumbajoy, coordinator of the Yageceros Indigenous Medicine Men Union of the Colombian Amazon, one of the guests, “the ancestral knowledge has no borders and nothing can contain it.” The words of Luciano set the general tone for the Knowledge Meeting.
It was a meeting of cultures and languages where those present could participate in the ritual of the others. It is worthwhile mentioning the shaman Ysautaku, who made a point of stating: “I am a shaman just like you and therefore I also dreamed, I dreamed that someone told me in my dream that our customs are the same; it is all the same. I wanted to see a difference now which separates all of the groups to see what differences there are.”
Those who witnessed the event under the camp fire light, shamans cured by shamans of other cultures, witnessed the greatest symbol of union, which made up this meeting.
Maybe the indigenous people have taught another lesson to the “wise white men,” who met at the COP-8 and MOP-3 in Curitiba:  the shamans were simpler, more objective, more competent and more communicative.


O saber feminino


O cacique Arvol Looking Horse comanda o ritual do Cachimbo da Paz das Seis Nações


 


Cacique Atamai – do povo Waurá – recepciona os pajés que vieram da Amazônia colombiana


 


FMA – Era um conselho de pajés cantando a paz e a saúde…
Júlio – Isso mesmo. E quem testemunhou, sob a luz da fogueira, pajés sendo curados por pajés de outro país, de outra cultura, testemunhou o símbolo maior da união que se construiu com esse encontro. Uma união espiritual inquebrantável.
Os pajés Waurá, tomando o yagé, e taytas colombianos fumando os charutos de tabaco abriram seus corpos e suas almas uns aos outros em sinal de confiança íntima. Ysautaku deixou uma mensagem de paz e união que foi mais ou menos assim: “Quando tiver doente aqui vou comunicar com vocês para os espíritos de vocês vir aqui na minha aldeia me ajudar, para trabalhar junto, para me ajudar a curar aquela pessoa. E a mesma coisa com vocês: quando vocês tiverem algum parente, tiver um doente que não tem como homem branco curar vocês me comuniquem para meu espírito ir até lá curar junto com vocês aquela pessoa.
Eu acredito que todos vocês vão estar junto comigo, eu acredito. Vocês não viram pessoalmente, vai ser o espírito de vocês que vai vir para me ajudar e a mesma coisa: eu não vou pessoalmente até sua casa para te ajudar a curar, vai ser meu espírito”.
Na manhã de quinta-feira, a aldeia despertou com os cantos de Arvol Looking Horse, grande liderança dos Lakota. Arvol é o herdeiro do cachimbo do Búfalo Branco, que vem sendo passado a 19 gerações e que contém a força ancestral de criação e perpetuação do seu povo.
Em sinal de humildade, generosidade e reciprocidade, ele partilhou com todos a fumaça protetora, que é como se o próprio Búfalo Branco se fizesse presente, os seus cantos e a sua música. Liderando os outros cinco representantes dos indígenas norte-americanos, Arvol saiu de uma das habitações levando em sua cabeça um cocar grandioso, imponente, de penas de águia. Caminhava a passos lentos, cantando e tocando um pequeno tambor em direção à Casa das Flautas. Antes de circulá-la, pararam algumas vezes para se dirigir aos quatro pontos cardeais, de onde emanam os elementos criativos do mundo: a água, o vento, o trovão e o fogo.


FMA – E teve outras mensagens como esta?
Júlio – Teve sim. A generosidade era uma constante. Na tarde de quarta-feira, teve a fala de Amasina, pajé Tiriyó, que viajou milhares de quilômetros desde o Suriname.
Amasina, um dos últimos remanescentes pajés do seu povo, expressou seu contentamento em fazer parte desse encontro dizendo aos presentes: “Somos todos iguais, nós temos que trocar as experiências, os conhecimentos; todos somos índios, não deve ter nenhum impedimento. Eu vi foto de vocês pelo vídeo e eu dizia: esses também são meus os parentes, são iguais a mim. Por isso estou muito feliz, pois agora consegui realizar o meu sonho”.


FMA – E desses saberes, as mulheres índias não participavam?
Júlio – Sim, paralelamente, na casa do cacique Atamai, as parteiras Waurá se reuniram com as indígenas das “Seis Nações” para tratar especificamente dos seus saberes, os saberes sobre o corpo feminino. Justamente nesse dia ocorreu um eclipse solar que, segundo a visão de mundo da comunidade local, representa a menstruação do Sol, cujo sangue desce dos céus para a terra trazendo consigo os espíritos da fertilidade feminina.


FMA – Para você, qual a importância maior do encontro?
Júlio – Além de participar dos rituais uns dos outros, eles também compartilharam preocupações que lhes são comuns sobre a proteção dos seus saberes e do fortalecimento dos seus povos face às histórias de colonização vividas por cada um deles.
Vários tradutores teceram a fina rede da compreensão comum, facilitando o entendimento entre os presentes de que do intercâmbio entre os povos indígenas pode-se construir uma fortaleza contra a expropriação dos seus saberes pelo “homem branco”.
Segundo o tayta Luciano, “cada povo, cada tribo tem uma história de sobrevivência entre a vida e a morte. Se tivéssemos abandonado nossa espiritualidade e os nossos conhecimentos, já teríamos desaparecido”. Daí a importância do Encontro. Foi uma forma de protesto dos povos indígenas contra a longa história de colonização que os tem sujeitado, comprometendo a integridade de suas culturas e de seus territórios.
O Encontro foi a melhor maneira de comemorar o Dia do Índio, pois foi um manifesto ritual pela valorização das  identidades indígenas.


“Cada povo, cada tribo tem uma história de sobrevivência entre a vida e a morte. Se tivéssemos abandonado nossa espiritualidade e os nossos conhecimentos, já teríamos desaparecido”. Tayta Luciano Mutumbajoy


Encontro de Saberes Indígenas
Pajés de vários países se reúnem no Xingu e se proclamam irmãos do conhecimento.