Justiça e meio ambiente

Tribunal Latino-Americano da Água

27 de abril de 2006

O Procurador brasileiro Alexandre Camanho de Assis participou do TLA e explica como o Ministério Público combate os crimes ambientais.


Foto: Luiz Antônio Silva


Folha do Meio – O que distingue o Tribunal Latino-Americano da Água dos demais tribunais?
Alexandre Camanho – O Tribunal não é uma instância jurisdicional estrita. É, na verdade, uma associação civil, que poderia se chamar conferência, ouvidoria ou audiência. Trata-se de um foro ético. Faz-se um juízo de opinião, mas não de forma panfletária. Os casos aceitos o são apenas à medida que se vêem acompanhar por um consistente acervo probatório. Abre-se, em seguida, um contraditório, dando-se aos acusados a possibilidade de se defenderem inclusive à undécima hora. Por observar estes reclamos judiciais é que, a despeito de não-oficial, esta instância denomina-se tribunal.


FMA – Não há diferenças?
Alexandre – Mas as semelhanças terminam aí. O Tribunal deu voz às comunidades tradicionais maltratadas por ações funestas. Nas audiências, povos autóctones compareceram com grande pompa e gravidade, para denunciar – louvando-se em provas técnicas – os danos que vêm sofrendo, sem que o Estado os socorra. Mais que isso, reconheceu uma espécie de legitimidade autônoma à Natureza, como no caso chileno, em que uma fábrica de celulose poluiu um santuário ecológico, levando à extinção iminente uma espécie endêmica de cisne. Um cisne que é o símbolo da região.
Opôs-se assim o Tribunal à posição ocidental de coisificar a natureza – herança mecanicista dos empiristas, dos iluministas, do cartesianismo -, reconhecendo que, por estar sofrendo junto com o homem, ela há de ter um reconhecimento próprio da necessidade de sua proteção. Aliás, como magistralmente se vê na Guernica, de Picasso.


FMA – Qual a importância do TLA?
Alexandre – Como instância ética, sua importância é imensa. Alguns indagam qual é a efetividade de suas decisões, já que, não detendo o Tribunal as qualidades de uma jurisdição tradicional, não estaria habilitado a fazer valê-las. Sucede que, no contexto latino-americano, a efetividade do Judiciário, é, em regra, mínima – por maioria de razão em questões ambientais e relativas as comunidades tradicionais.
Além disso, graças à imprensa, suas decisões tiveram grande repercussão nos países originários das demandas – muitas vezes estando seus governos envolvidos. Em casos como o da mineração a céu aberto da Guatemala, os autores, de posse do acórdão, anunciaram entusiasticamente que iriam ao Banco Mundial tentar demover sua diretoria da continuidade de empréstimos para atividades predatórias.


FMA – Como são escolhidos os juízes do TLA?
Alexandre – O convite para compor o jurado parte de uma comissão do Tribunal. Segue-se um documento chamado “Código do Jurado”, que orienta a escolha nos seguintes termos: “para ser juiz ou juíza do Tribunal Latino-Americano da Água se requer seja pessoa de reconhecido prestígio moral por sua trajetória pública em defesa dos direitos humanos e/ou qualquer outro interesse fundamental da humanidade e da natureza. O juiz ou juíza poderá ou não ser jurista de profissão. Em todo caso, será imprescindível sua familiaridade com o sentido de justiça”. A atividade não é remunerada.


FMA – Quais foram os casos julgados pelo Tribunal?
Alexandre – O Tribunal defrontou-se com 16 casos. Seis foram do próprio México, que, na qualidade de país-sede, mereceu especial atenção da Corte: o projeto hidrelétrico La Parota, o derramamento de petróleo no estuário do rio e da bacia de Coatzacoalcos, a contaminação da marina de Zihuatanejo, agravada pela construção de complexos turísticos, a contaminação industrial no rio Atoyac, a deterioração da bacia dos rios Lerma, Chapala, Santiago e Pacífico e, finalmente, a transposição do rio Cutzamala.
Da Bolívia, recebemos o caso da privatização de água em El Alto, próximo a La Paz.
O Chile figurou com a mortandade da fauna no Santuário do rio Cruces, em Valdívia. Uma denúncia de violação de direitos humanos pôs em xeque o Equador, com a realização de um projeto multipropósitos na bacia do rio Guayas. Chamou especial atenção da Corte o caso do Panamá, objetivando a condenação do transporte de material radioativo no canal.
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica apresentaram, juntos, o problema da perniciosa atividade de mineração a céu aberto, que acabou desdobrado. Também o Peru denunciou esta atividade, na região de Cajamarca. E houve, ainda, o caso de Carapicuíba, em São Paulo.


O caso brasileiro no Tribunal da Àgua


FMA – Como foi o caso brasileiro?
Alexandre – O caso de Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, foi assim: há poucos anos, por força das obras de rebaixamento da calha do rio Tietê, o Departamento de Águas começou a depositar, devidamente autorizado, o material inerte, retirado da dragagem, na lagoa daquela cidade. Deu-se, então, uma grande mortandade de peixes. Com as análises, descobriu-se que o depósito era de todo tipo de material: inertes, não-inertes e perigosos, altamente tóxicos. Ora, a lagoa, além de proporcionar lazer, abastece de água a cidade. A população ficou à mercê da contaminação decorrente daquela atividade. Apesar da luta da comunidade, e dos esforços do Ministério Público, o Supremo, em um despacho monocrático, permitiu a continuidade do depósito, sensibilizado pelo aspecto econômico, que é o custo da obra.
Então o Tribunal – à minha exceção, porque firmei impedimento – proclamou a responsabilidade do Departamento de Águas paulista e censurou as autoridades públicas envolvidas, “por sua conduta omissiva, pela falta de compromisso e por suas decisões contraditórias, sempre em prejuízo da vida, da saúde e da natureza”. Fez, ainda, uma série de recomendações, inclusive no sentido de interromper o depósito do material dragado.


FMA – E por que a existência de um tribunal especial para a água? Qual a real ameaça?
Alexandre – É intuitivo que o surgimento de um tribunal desta índole, destinado a analisar denúncias relativas a água, pressupõe a inadequação dos foros nacionais para resolver tais questões de modo minimamente satisfatório. Por onde quer que se olhe a América Latina, a aparente diversidade dos casos apresentados não consegue esconder um macabro enredo comum: incompetência estatal, despreparo judicial, triunfo permanente do argumento econômico, desprezo pela pobreza e pelas comunidades tradicionais, visão utilitária e predatória da Natureza, orfandade dos direitos e interesses sociais.
As sessões do tribunal foram, na verdade, um réquiem deste modelo de Estado que frutificou no continente: se a Justiça desapareceu de seu reduto tradicional, os homens vão buscá-la em outro lugar.


FMA – Mas quais os principais problemas?
Alexandre – São vários. Quase todos os rios tornaram-se imensas cloacas, com efeitos devastadores para os biomas, a biodiversidade e a saúde humana. Estações de tratamento inacabadas, antiquadas, insuficientes, proliferam. Resíduos são despejados às toneladas, in natura, sem que surjam soluções legislativas – como a aplicação do princípio do poluidor-pagador – para mitigar ou deter o dano. Grandes obras alteram o ciclo hidrológico, agravando os problemas. E ainda há o problema silencioso, que está passando desapercebido, até ser tarde demais: a privatização da água. Empresas e governos são os protagonistas destes horrores.


FMA – Quem mais agride o meio ambiente: as iniciativas públicas ou privadas?
Alexandre – O grande inimigo da natureza hoje, na América Latina, é o Estado. Por suas razões: primeiro por suas próprias ações, em que o paupérrimo discurso de progresso e de inclusão no mundo civilizado é, muitas vezes, a desculpa para a construção de empreendimentos faraônicos, inúteis e perdulários. Quase sempre movidos pela corrupção ou pelo acerto de contas de campanha. Segundo, pela sua infatigável e crônica incompetência, sua negligência na fiscalização e no licenciamento, sua parcialidade e seu engajamento em desonestas aventuras da iniciativa privada. A esta sobra o papel de firme coadjuvante nas barbaridades que são perpetradas contra a natureza e os povos tradicionais, movidas apenas e tão-somente pela ganância.


FMA – E qual o papel do Ministério Público Federal na preservação do meio ambiente?
Alexandre – Nossa estrutura e poderes são únicos. Se as ações do Ministério Público no Brasil não têm maior resultado, isto deve-se apenas à reduzidíssima sensibilidade que o Judiciário ainda tem quanto aos interesses coletivos. Mas, comparado com os demais países latino-americanos que nem têm um Ministério Público poderoso, o Brasil está em grande vantagem: nos demais, simplesmente não há quem defenda tais interesses e direitos. Isto significa uma sociedade completamente desprotegida. Lideranças comunitárias e ONGs são hostilizadas, por ousarem se confrontar com empresas e governos truculentos.


FMA – A própria constituição promove esta defesa…
Alexandre – Sim, a constituição brasileira atribui ao Ministério Público a defesa do meio ambiente. Neste sentido, o Ministério Público Federal tem desenvolvido atividades e estratégias de proa, dada sua singular qualidade de estar presente em todo o território nacional. Esta circunstância permite uma visão de conjunto, integrada, e portanto muito mais eficaz ao propósito de proteção da Natureza. É assim que seus membros têm-se empenhado em temas tão díspares como unidades de conservação, transposição de bacias, construção de hidrelétricas, desmatamento de florestas, carcinicultura, biodiversidade e o que mais houver.


FMA – E o caso da água?
Alexandre – A água tem um reconhecido e destacado papel em nossa atuação. Há inclusive um grupo de trabalho empenhado em monitorar certos aspectos especialmente preocupantes, como a implantação dos comitês de bacia e a contaminação hídrica.
Evidentemente, o Ministério Público Federal acompanha o dramático tema da privatização dos recursos hídricos, com ênfase no Aquífero Guarani – o maior depósito de água subterrânea do planeta. Está em curso, também, uma investigação criminal sobre o crime de poluição dos rios federais.
FMA – Que outras sessões estão previstas para o Tribunal Latino-Americano da Água? Existe a previsão de a Corte reunir-se no Brasil?
Alexandre – A grande quantidade de demandas apresentadas ao Tribunal para a sessão México fez com que sua direção decidisse pela realização de uma segunda audiência.
Esta será em novembro, também no México, em Guadalajara. Há uma tendência de o tribunal reunir-se anualmente. O Brasil está sendo visto como sede preferencial para o ano que vem. O certo é que nossa vez vai chegar.


As sessões do tribunal foram, na verdade, um réquiem deste modelo de Estado que frutificou no continente: se a Justiça desapareceu de seu reduto tradicional, os homens vão buscá-la em outro lugar


Quase todos os rios tornaram-se imensas cloacas, com efeitos devastadores para os biomas, a biodiversidade e a saúde humana. Empresas e governos são protagonistas destes horrores.


Se as ações do Ministério Público no Brasil não têm maior resultado, isto deve-se apenas à reduzidíssima sensibilidade que o Judiciário ainda tem quanto aos interesses coletivos. Mas, comparado com os demais países latino-americanos que nem têm um Ministério Público poderoso, o Brasil está em grande vantagem.