Água virtual

A gestão chegou também à água virtual

14 de junho de 2006

Cientistas advertem: o comércio virtual da água entre países pode causar um déficit ambiental


Raymundo Garrido: água virtual é a quantidade de água utilizada desde o início da cadeia de relações intersetoriais até chegar-se ao produto final


Folha do Meio – Quando se começou com o conceito de água virtual?
Raymundo Garrido – O conceito de água virtual foi criado pelo prof.  J. Anthony Allan, do Kings College, de Londres. E é extremamente útil para se definir a pegada ecológica hídrica, que nada mais é do que a aplicação do conceito de pegada ecológica ao recurso natural água. É também importante para a determinação da quantidade total de água produzida por um país e, até mesmo, quanto este país importa ou exporta de seus recursos hídricos.


FMA – Mas qual o seu significado exato?
Garrido – Água virtual é a quantidade de água utilizada na produção de um bem qualquer, principalmente os alimentos, desde o início de sua cadeia produtiva natural. Por exemplo, embora se saiba que uma laranja, aqui tomada como mero exemplo, não chega a encher um copo quando totalmente espremida, a sua produção implicou o uso de cerca de 380 litros de água. Nesse caso, a água, dita virtual é computada desde aquela que serviu para regar o plantio da laranjeira, e seu crescimento. Até aquela água que serviu para lavar a fruta antes de ser ingerida. Ainda que não tenham o mesmo significado, o conceito de água virtual pode ser comparado com o de relações intersetoriais. Esse é um tema de grande relevo no contexto dos estudos econômicos e que envolve a participação das matérias-primas e serviços no fabrico dos bens até chegar-se ao bem sobre o qual se discute. A água virtual é, portanto, a quantidade de água utilizada desde o início da cadeia de relações intersetoriais até chegar-se ao produto final.


FMA – Esse é um conceito novo? Qual seu uso prático?
Garrido – O conceito de água virtual vem de 1993, quando o professor J. Anthony Allan, do Departamento de Geografia do King’s College, de Londres, o definiu como sendo a água contida nas “commodities”. Esse conceito veio a ser consagrado em 2003, durante o III Fórum Mundial da Água, em Kyoto.
Em outras palavras, trata-se da água utilizada na produção de bens industriais e agrícolas envolvendo, como já ficou claro, toda a seqüência da cadeia produtiva. Na resposta anterior, eu procurei estabelecer um paralelo com a Teoria do Insumo e Produto (Input-Output Theory), também denominada de Estudo das Cadeias de Relações Intersetoriais (1), que é bem mais antiga do que o conceito de Água Virtual.


FMA – Mas qual o sentido prático?
Garrido – O sentido prático do conceito de Água Virtual está em permitir o cálculo da quantidade real de água que é utilizada por um país ou região, ou seja, de permitir a determinação precisa da pegada da água ou pegada hídrica.


FMA – E o que é a pegada da água?
Garrido – Trata-se do mesmo conceito de pegada ecológica ou pegada ambiental, só que limitado aos recursos hídricos. É um indicador do total da demanda de água para uso dentro de um país somado à água virtual importada e deduzida a parcela de água virtual exportada. A pegada hídrica, que os norte-americanos chamam de “water footprint”,  constitui uma pista de grande relevo para um país saber onde se localizam as demandas por água em relação à massa total desse recurso natural.
Tal como a pegada ecológica, o conceito da pegada hídrica pode ser atribuído também a cada indivíduo. A pegada hídrica de um indivíduo é dada pelo volume de água virtual de todos os bens e serviços consumidos por este indivíduo.
Se cada cidadão souber qual o tamanho de sua pegada hídrica, ele certamente vai ter uma maior prudência em relação a seu consumo de água virtual e, por extensão, da água da natureza.


FMA – Então vamos lá. Qual seria a pegada hídrica de uma refeição na qual a pessoa comesse 250 gramas de arroz, 300 gramas de carne de boi, 200 gramas de legumes e 50 gramas de tomate?
Garrido – Vamos fazer uma estimativa. Pela tabela (veja Tabela 1 na página ao lado), podemos chegar ao conteúdo de água virtual.
Se fizermos as transformações em função das quantidades de alimento que essa pessoa consome, teremos o total de 5.960,25 litros de água virtual somente por essa refeição. Mas se a pessoa permutar a carne de boi pela carne de porco, mantida a quantidade de 300 gramas de carne, a pegada hídrica se reduz substancialmente. Vai passar para 2.405,25 litros de água virtual pela refeição. Menos da metade. É que os rebanhos suínos utilizam quantidades bem menores de água do que os bovinos, durante seu desenvolvimento.


“O suco de uma laranja espremida não enche um copo. Mas, na verdade, estamos nos apropriando do trabalho realizado por cerca de 380 litros de água que foram utilizados desde o plantio da laranjeira até o momento em que a laranja chega às nossas mãos”.


(1) Esses estudos foram elaborados pelo economista Vassily Leontief , nos anos 20, para organizar o balanço de materiais da economia soviética. A Teoria do Insumo e Produto reúne um conjunto de informações mais amplo, de extrema utilidade para fazer a avaliação dos impactos dos custos relativos aos usos da água – ou de qualquer outra matéria-prima – sobre os agregados da economia.


Mercado da água virtual


Professor Tony Allan
Kings College (Londres)
Criador do Conceito
de Água Virtual


 


FMA – Existe uma estimativa em relação à pegada hídrica dos povos de determinados países?
Garrido – Existe sim. A pegada hídrica média de cada habitante do Japão é de 1,1 milhão de litros de água virtual por ano. A de cada chinês é de 775 mil litros de água virtual por ano. A de um habitante dos Estados Unidos é de 2,6 milhões de litros de água virtual por ano.


FMA – Quer dizer que o conceito de água virtual se limita ao ponto em que o produto ou “commodity” fica pronto. Não inclui nada relativo ao descarte de resíduos após o consumo desse produto?
Garrido – Você tem razão. O conceito de água virtual tal como está definido, é incompleto em seu conteúdo porque deixa de considerar a demanda por água virtual exercida pelos rejeitos do uso de cada bem ou serviço. Por exemplo, no caso da pessoa que consumiu uma laranja, a demanda por água exercida pelos rejeitos de seu metabolismo atribuídos à ingestão da fruta, adicionados à demanda por água que o tratamento do lixo também exerce (cascas da laranja) deveriam fazer parte da demanda por água virtual.
Mas essa impropriedade da definição do modo de cálculo da água virtual vem sendo objeto de discussões. Quero crer que a fase de consumo, tratamento e disposição final de resíduos ainda venham entrar no cálculo da água virtual e da pegada hídrica em futuro não muito distante. Da maneira como vem sendo feito esse cálculo, a avaliação fica incompleta e, portanto, em desfavor do desenvolvimento sustentável.


FMA – Quer dizer que quando o Brasil exporta laranja, para ficar no exemplo da laranja, vai água virtual junto com o produto exportado?
Garrido – Exatamente. O mercado internacional de água virtual implica a movimentação de cerca de 15% de toda a água usada no mundo.
Em outras palavras, a soma de toda a quantidade de água que foi usada na produção de bens exportados desde o início de suas respectivas cadeias produtivas representa esses 15% do total da água de que se faz uso em todo o planeta. E como a agricultura é a atividade econômica que mais faz uso da água, resulta que os produtos agrícolas conformam a principal parcela do mercado de água virtual em termos físicos.
Veja bem, no debate sobre água virtual não se fala em volumes monetários e sim em volumes físicos. Os impactos econômicos são mais objeto da Teoria do Insumo e Produto, a que referimos anteriormente, que inclui a noção de preços.


FMA – Tem alguma estimativa deste percentual por produtos?
Garrido – Tem sim. Em números já levantados, os grãos representam cerca de 67% do mercado global de água virtual, 23% estão relacionados com produtos do reino animal, aí incluídos os frutos do mar, e 10% são de responsabilidade dos produtos industriais. Uma curiosidade é o fato de que o trigo representa 30% do mercado de água virtual em relação aos grãos.
Ora, como os grãos significam 67% do mercado total, então, somente o trigo implica em 30% dos 67%. Ou seja, pouco mais de 20% do total da movimentação de água virtual de todo o mundo.


FMA – Dá para transformar esses percentuais em volume efetivo de água virtual que é movimentado entre países?
Garrido – Sim. Tomemos como ponto de partida o volume total de água virtual que passeia pelo mundo. Estatísticas demonstram que esse volume ascende a 1,4 trilhão de m3 por ano.
O crescimento econômico global dos anos recentes terá certamente ampliado esse volume total, apesar de alguns exportadores de água virtual como o Brasil e Argentina terem quase estagnado em termos de crescimento de PNB (Produto Nacional Bruto).
Então, com base no número conhecido, os 67% gerados pela água virtual dos grãos correspondem a 938 bilhões de m3 por ano, sendo 281,4 bilhões de m3 relativos ao trigo; 322 bilhões de m3 equivalem aos 23% da água virtual presente nos produtos do reino animal e, por fim, os 10% da água virtual embutida nos produtos industriais correspondem a 140 bilhões de m3 por ano.


FMA – Quais os países mais ativos em termos de balanço líquido de água virtual?
Garrido – Há países que são importadores líquidos de água virtual, ou seja, quando confrontam a quantidade que exportam da água virtual com a quantidade total que importam, esta última quantidade é maior do que a primeira.
E há países que são exportadores líquidos de água virtual. O maior importador de água virtual é o Siri Lanka e o maior exportador é os Estados Unidos.
(Ver Tabela 2 e 3)


FMA – E o que tem a ver na soma o que é importado e exportado?
Garrido – Nada.  As referidas tabelas somente incluem os dez maiores países de cada uma das duas situações, o que impediria fechar qualquer equação nesse sentido.


O mercado total anual de água virtual alcança o equivalente em vazão a
45.000,00 m3/seg. Para se ter uma idéia da magnitude desse mercado, ele corresponde a 16 rios do porte do São Francisco em termos de vazão.


Tabela 1 – Quantidade de Água Virtual de Alguns Produtos


Produto Unidade de Medida Volume Específico
  (litros de água/unidade
de medida do produto)
Arroz                            kg                            2.500
Aveia                            kg                            2.374
Aves                             kg                            3.650
Azeite de Oliva              kg                            11.350
Azeitona                       kg                            2.500
Banana                         kg                              500
Beterraba                    kg                            193
Batata                         kg                            132
Café xícara                      méd                            140
Cana de açúcar             kg                            318
Carne de boi                     kg                            17.100
Carne de porco                 kg                            5.250
Laranja                            kg                            380
Legumes                            kg                            1.000
Leite                                   litro                            800
Manteiga                               kg                            18.000
Milho                                  kg                            1.025
Óleo de palma                       kg                            2.000
Óleo  de soja                         kg                            5.405
Ovos                                      kg                            3.700
Pão                              kg                      150
Queijo                             kg                      5.280
Raízes e Tubérculos              kg                            1.000
Soja                                       kg                            2.525
Tomate                                kg                            105
Trigo                                      kg                            1.575
Uva                                      kg                            455


 A tabela 1 mostra a quantidade de água virtual de alguns produtos de uso mais comum


Tabela 2 – Dez maiores países importadores líquidos de Água Virtual


País Água Virtual Importada (m3/seg)
Sri Lanka                       3.444,09
Japão                       2.390,36
Holanda                       1.187,15
Korea                       905,03
China                       819,02
Indonésia                       817,42
Espanha                       663,09
Egito                       644,61
Alemanha                       545,75
Total 11.416,52


Tabela 3 – Dez Maiores Países Exportadores Líquidos de Água Virtual


País Água Virtual
Exportada (m3/seg)
Estados Unidos                         6.094,87
Canadá                       2.190,23
Tailândia                       1.875,16
Argentina                       1.818,89
Índia                        1.294,85
Austrália                       1.170,27
Vietnam                       724,98
França                       710,52
Guatemala                       576,29
Total 16.455,33


Um bem econômico


Balança Comercial de Água Virtual relacionada com
os cultivos em treze regiões do mundo (1995-99)


 


Olhando o mapa, pode-se ver que as regiões coloridas de verde apresentam exportação líquida de água virtual e as setas indicam os fluxos desta água entre as regiões


 


FMA – Tem como dar um volume desse mercado de água virtual comercializada, comparada por exemplo com a vazão do rio São Francisco?
Garrido – Tem sim. Conforme se percebe, apenas nesses vinte países grandes movimentadores de água virtual pelo mundo, cerca de 28 mil metros cúbicos de saldo líquido de água virtual estão transitando a cada segundo em cargas marítimas e  terrestres sob a forma dos mais diversos produtos do mercado internacional. Mas essa cifra refere-se “apenas” ao saldo líquido, ou seja, ao balanço de cada um desses vinte países.
O mercado total anual de água virtual alcança o equivalente em vazão a 45 mil metros cúbicos por segundo. Se compararmos com a vazão do rio São Francisco, vamos sentir a magnitude desse mercado. Isso, em termos de vazão, corresponde a 16 rios do porte do São Francisco. É como se 16 vezes toda a vazão que o São Francisco despeja no Atlântico fosse transacionada entre os países. Em outras palavras, corresponde a 1,4 trilhão de metros cúbicos de água por ano.


FMA – Vamos fazer um outro exercício em termos de valor econômico. Qual seria o custo deste mercado de água virtual?
Garrido – Se o preço dessa água fosse, por exemplo, R$0,02 por metro cúbico, que é o preço público para uso da água do rio Paraíba do Sul, seu montante financeiro seria de R$27,9 bilhões. Isso correspondente a US$13,3 bilhões, superior ao PIB individual de muitos países do mundo.


FMA – Em função desse movimento, quais são as principais rotas de água virtual entre os continentes?
Garrido – Pelos saldos líquidos de exportação e importação de água virtual, podemos notar o seguinte: são exportadoras a América do Norte, a América do Sul, a Oceania e o Sudeste Asiático. São importadoras de água virtual as regiões Centro e Sul da Ásia, a Europa Ocidental, o Norte da África e o Oriente Médio. Alguns pesquisadores têm optado por simplificar essa informação e fizeram um mapa que ilustra bem as principais rotas da água virtual no mundo. Isto com base em informações feitas no período 1995-1999.


FMA – E o Brasil, quanto manda para fora de água virtual em termos líquidos?
Garrido – De fato, o Brasil está entre os exportadores líquidos de água virtual. Mesmo tendo a maior reserva de água doce do mundo, não chega a alinhar entre os dez maiores exportadores. O saldo líquido da balança de água virtual de nosso país corresponde a uma vazão de 361,69 m3/seg. Uma vazão média igual à do rio das Velhas.


FMA – Os países exportadores de água virtual têm apresentado maiores índices de escassez em seus mananciais?
Garrido – É difícil fazer esta comparação. Não diria que maiores em relação a outros países, mas que têm apresentado escassez crescente, isso tem. Mesmo nos países com mananciais abundantes, a exportação de água virtual gera conseqüências ambientais desfavoráveis.
Nos Estados Unidos, o  maior exportador de água virtual de todo o mundo, utilizam-se cerca de 7% dos recursos hídricos para a produção de cultivos que são exportados. No caso da Tailândia, são 25%. O aquífero de Ogallala, nos Estados Unidos, já enfrenta falta de recarga pela intensa abstração que de suas águas é feita para a produção de cultivares exportáveis.


FMA – Em termos de segurança alimentar, essa questão da água virtual pode levar a algum risco?
Garrido – Olha, países com menores recursos econômicos têm importado água virtual de países ricos. Está aí o caso da exportação do trigo europeu para alguns países africanos. Esse trigo europeu é carregado de subsídios, o que faz seu preço ficar menor do que o de produtos similares produzidos pelos países importadores.


FMA – Dê um exemplo claro desta distorção.
Garrido – Vamos ao caso do trigo. Esse produto pode ser colocado em países africanos pela metade de seu preço real, graças aos subsídios dados pelos governos de alguns países europeus.
Essa política de subvenção tem feito com que não se comercializem internamente nesses países alguns produtos locais, como é o caso do inhame e da mandioca. Os nativos africanos passam a ficar dependentes de um produto que não produzem e que não estavam acostumados a consumir, tendo de mudar seus hábitos de consumo.
Mais ainda: a não produção local deixa de gerar empregos.  E tem outro problema: se o subsídio no país exportador acabar de uma hora para outra, a vantagem no preço também vai cessar.
Conforme se percebe, há uma estreita relação entre produtos alimentícios exportados, água virtual e preços. Esse fato pode ser indicativo da necessidade de se agregarem os conceitos da Teoria do Insumo e Produto ao conceito da Água Virtual, como tive o cuidado de observar no início da entrevista.


FMA – Então o comércio virtual da água entre países pode causar um déficit ambiental…
Garrido – Pode sim. E com o passar do tempo os cientistas já prevêem que isto vá acontecer. Imagina que os impactos das mudanças climáticas, do aquecimento global e de tantas outras mudanças provocadas pelo ser humano no ciclo hidrológico só tendem a aumentar.
Evidente que o acesso e a disponibilidade de recursos hídricos vão se tornando mais complicados. Isso já acontece hoje. Aí o que vai acontecer? Muitos países só vão ter acesso a alimentos para seus cidadãos se importar esses alimentos de países que tenham água. Bem, esta é uma solução imediata e comercial. Mas, outros problemas não vão ter solução, como o declínio da biodiversidade, a desertificação e o comprometimento de sobrevivência de populações locais.


FMA – Água virtual também é um bem econômico?
Garrido – Lógico. Se a água é um bem econômico como muito se tem discutido nos anos recentes, água virtual também o é. E, nesse caso, a noção de preços precisa ser incorporada ao debate.


FMA – Uma colocação, talvez, que ainda demande pesquisa. Mas será que uma estratégia bem planejada de água virtual para regiões semi-áridas substitui, por exemplo, medidas como transposições de bacias?
Garrido – Claro que sim. A política de água virtual adequada de uma região pobre em água deve harmonizar a pegada hídrica da região com a baixa disponibilidade desse recurso natural. Em rigor, a estratégia de água virtual somente não pode substituir uma transposição no caso extremo de água de beber.
Mesmo assim, populações que se alimentam regular a frequentemente de frutas costumam beber quantidades ligeiramente menores do que o normal, porque uma parte da água assimilada pelo organismo humano é efetivamente virtual, que vem com a substância da fruta.
Tudo isso faz parte da gestão da demanda por água.