O “pescoço esfolado” do Velho Chico
21 de setembro de 2006Monoculturas de cana-de-açúcar e soja nas nascentes do rio São Francisco
Foto: Sandro Neiva
Até as belezas do canyion de São Leão, no rio Samburá, correm perigo
A notícia da descoberta da nova nascente do rio São Francisco nas vertentes do rio Samburá, dada pela Folha do Meio Ambiente, edição 141, é de grande importância para o município de Medeiros e toda a região. Por isso não podemos perder de vista o todo, isto é, a região das Dez Cidades Mães do São Francisco¹. Na verdade, tão importante como a nascente histórica na Serra da Canastra e a nascente geográfica em Medeiros, são as muitas outras nascentes que formam um grande rio. Vem daí os primeiros cursos d’água, as vertentes, serras e cânions, as lagoas, enfim, um relevo serrano com um ecossistema frágil, dominado por uma paisagem cênica.
Antes mesmo de apresentar uma proposta questionando as até então obscuras nascentes do Samburá, eu já havia apresentado três outras ao SpeleoBrazil2001², para criação de unidades de conservação na região. Estas moções foram publicadas nos anais do memorável evento, na revista técnico-científica Informe SBE³, na Carta de Iguatama4 da expedição Américo Vespúcio e em relatos de bordo/CD Rom por participantes deste evento da Codevasf, Ibama, Embrapa, SRH/MMA, Sebrae e outros.
As moções aprovadas oficialmente no congresso foram endereçadas ao então presidente do Ibama, Hamilton Casara, e ao governador de Minas, Itamar Franco. Pedido principal: vamos tomar as decisões corretas para salvar e revitalizar o São Francisco:
– Criar a Área de Proteção Ambiental das Dez Cidades Mães do São Francisco, com área total de 7.200km², desde Arcos/Iguatama até as cabeceiras;
– Demarcar todo o Parque Nacional da Serra da Canastra com área de 210 mil hectares;
– Criar o Parque Estadual da Mata de Pains, em área de 6.000 hectares (60km²), cuja proposta também já fora encaminhada ao secretário do Meio Ambiente de Minas Gerais, José Carlos Carvalho, nos idos de 1998.
Mais recentemente o conceito conservacionista foi estendido às vertentes e contra-vertentes do Samburá para norte, visando protegê-las junto ao Parque da Canastra. Assim, um parque nacional estaria ligado a outro estadual por meio de uma APA regional. Corredores ecológicos sem conexão com unidades de conservação e “apinhas” são paliativos.
É o que ocorreu num seminário em Bambuí no dia 8 de maio de 2006, onde se aprovou uma pequena APA nas nascentes do Samburá. Um dos organizadores, Reginaldo P. Miguel, procurador da ANA, afirmou-me: “…a respeito das propostas enumeradas acima, elas devem ser melhor debatidas, do contrário não adianta a gente correr atrás sozinhos”. Respondi-lhe que não sou pessimista, e que dezenas de audiências públicas deverão ser programadas nos municípios da cabeceira do Velho Chico que tem o privilégio de convergir as águas da bacia e tem direito de se manifestar. Estes municípios são palcos de uma desenfreada corrida de exploração dos recursos naturais, quais seja madeira remanescente, minerações e indústrias de transformação de calcário (incontáveis cavernas já se tornaram pó calcário agrícola, cimento e outros), de quartzito, além de diamantes que já se prevê.
Vale levar em conta que há 250 anos estão em equilíbrio as atividades ligadas à agricultura e pecuária tradicionais com suas raízes nas culturas do café, do milho, do feijão, do queijo “canastra” e laticínios em geral. Isso aliado à crescente atividade do turismo ecológico e hotéis-fazenda, a piscicultura em tanques e outras atividades sustentáveis.
Antes de se decretar qualquer unidade de conservação é preciso haver muito debate com as comunidades, e parcerias e transparência entre as instituições responsáveis estaduais e federais. Tendo participado do Grupo de Trabalho para elaboração do Termo de Referência para o Zoneamento Ecológico-Econômico da bacia hidrográfica do rio São Francisco, que tem um prazo de 12 meses para conclusão pelo MMA, recomendei um zoom, um detalhamento cartográfico na região e audiências públicas. Há outras recomendações como o Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, o Comitê da Bacia Hidrográfica e a Defensoria do São Francisco em Divinópolis, o Ministério Público. Que as instâncias institucionais e jurídicas capazes de avaliar a gravidade e reordenar o planejamento desta bacia hidrográfica, venham a público para defender a preservação da área. Penso que a realização de um fórum nacional, em Belo Horizonte, seria o ideal para se definir uma proposta séria, permanente e harmoniosa pela revitalização da bacia do São Francisco. Uma proposta consistente, a altura da importância geográfica e histórica daquela região, “o pescoço esfolado do Velho Chico”. Incrível, mas ali já se planeja o plantio de cana-de-açúcar e a construção de usinas de açucar e de álcool. Sob o olhar das autoridades fiscalizadoras e gestoras de uma área tão singular, começa a nascer um grande canavial. As consequências serão terríveis. Mas ainda há tempo de evitar!
*Geraldo Gentil Vieira é Engenheiro agrônomo – CREA 14.141/D-MG e Especialista em Solos e Recuperação de Desertos
GLOSSÁRIO
1 – Dez Cidades Mães do São Francisco: São Roque de Minas, Vargem Bonita, Medeiros, Bambuí, Iguatama, Piumhi, Doresópolis, Pains, Córrego Fundo, Arcos, e onze com Tapiraí.
2 – SpeleoBrazil2001: evento ocorrido em Brasília em jul/2001, congregando o XXVI Congresso Nacional de Espeleologia, o IV Congresso Latino-Americano e Caribe de Espeleologia, e o 13th International Congress of Speleology, com a participação de 43 países.
3 – Informe SBE nº 78 de nov/dez de 2001: www.sbe.com.br/pains/arcos.
4 – Carta de Iguatama: documento da Expedição Américo Vespúcio 2001, que permaneceu por 3,5 anos no site www.americovespucio.com.br .