Gestão dos recursos hídricos

Educação para água

20 de dezembro de 2006

A água está no coração da história humana e de sua cultura. Sem educação e ações de cada indivíduo não há solução.

Raymundo Garrido: “O ser humano agride a água . Por isso, carece de um vigoroso programa de educação para o uso racional dos recursos hídricos ou, como se tem dito de modo simplificado, receber Educação para a Água. Os multimplicadores são educadores em potencial”.

 

 

Folha do Meio – Por que educação para água?
Raymundo Garrido – A água está na origem da vida. É fonte de vida. Três quartas partes do planeta estão encobertas com água, e os corpos vivos, animais e vegetais, armazenam expressivas quantidades de água. A história da Terra está estreitamente ligada à água. Basta que olhemos para trás e analisemos como tudo começou.
Há cerca de cinco bilhões de anos, a Terra estava encoberta por uma camada de gases a uma elevada temperatura. Entre os elementos gasosos presentes nesse cinturão, havia hidrogênio e oxigênio. Com o resfriamento que veio com o tempo, esses dois gases se combinaram dando, como resultado, enormes camadas de nuvens. Vieram, então, as chuvas a partir dessa formação gasosa original. Durante milênios, as águas da chuva foram preenchendo as concavidades da crosta terrestre, encobrindo três quartas partes da superfície do planeta, até estabilizar-se no volume atual.
 As chuvas de nossos dias já são chuvas geradas pela evaporação da água que está sobre a Terra.

FMA – E quando a vida apareceu?
Garrido – Os avanços científicos indicam que a vida apareceu na Terra há mais ou menos três bilhões de anos nas águas profundas dos mares e lagos, como resultado do aquecimento destas águas provocado pelos raios solares.
As primeiras formas de vida foram se transformando e se multiplicando por milhões de anos, dando lugar ao aparecimento de bactérias e seres unicelulares. Daí, gerando seres mais complexos, como os peixes, há cerca de 300 milhões de anos, em seguida os batráquios e os répteis, até chegar aos mamíferos, há mais ou menos 75 milhões de anos.
O homem, que descende dessa última família, apareceu há uns dois milhões de anos, sendo, portanto, uma espécie ainda jovem.

FMA – Jovem e dotado de inteligência…
Garrido – É verdade, a espécie humana é a única dotada de inteligência. O ruim disso tudo é que, mesmo inteligente, é o ser humano que está destruindo a base de recursos naturais da Terra. A água, por exemplo, que é parte da origem de tudo, é um dos recursos mais degradados. Por isso, a necessidade de educar e conscientizar o ser humano para usar a água de modo racional. Só a preservação vai possibilitar sua utilização pelas futuras gerações.

FMA – A raça humana está dando um verdadeiro "tiro no pé" …
Garrido – Seguramente. Note que a água, no corpo humano, contribui para a maleabilidade dos tecidos, torna possível a digestão ao dissolver os alimentos e garante a regulação térmica do corpo, além de permitir a evacuação dos dejetos.
O ser humano pode perder, sem necessidade de imediatamente recompor, até metade das proteínas e praticamente toda a gordura, mas precisa beber água tão logo a quantidade deste recurso se veja reduzida em apenas dois por cento. Uma perda de 15% da água pode levar o corpo à morte.
Mas não é somente isso. A água representa ainda muito mais para a Terra. Os cursos d'água escoam para o mar formando e ensejando as mais diversas formas de habitat.
As zonas úmidas atraem migrações de aves e são referência importante para os naturalistas ornitólogos. Além disso, a água é habitada por espécies animais e vegetais e gera, pela entrada da luz solar e seu calor, uma importante cadeia trófica.

FMA – E ainda é um bem econômico.
Garrido – Isso mesmo, a água ajuda o homem a viver pelos mais diversos modos. Permite gerar energia elétrica, irrigar cultivares, fabricar uma verdadeira miríade de produtos industriais, extrair minerais da terra, navegar, pescar, fazer lazer e turismo, abastecer cidades e zonas rurais, dessedentar animais, diluir os efluentes.
É exatamente no contexto desses usos, denominados usos múltiplos da água, que está o perigo. O ser humano agride a água e, por isso mesmo, carece de um vigoroso programa de educação para o uso racional dos recursos hídricos ou, como se tem dito de modo simplificado, receber Educação para a Água.

FMA – Sem água não há solução?
Garrrido – Pior ainda, sem água não há passado e nem futuro. Imagina que a  água está no coração da história humana e de sua cultura.
Os grandes rios foram berço de civilizações mais antigas, tanto em razão de constituírem fonte de alimento quanto via de escoamento, ou por razões que obedeceram a outras estratégias.
A água é, ainda, um importante fator de desenvolvimento da engenharia, tendo ensejado a concepção e construção de aquedutos e canais, barragens, adutoras, pontes e muitas outras formas de intervenção do homem na natureza em busca de seu bem-estar.
Nada obstante todos esses usos, a água potável marca sua ubíqua presença na vida doméstica e social, como parte das bebidas, para cozinhar e permitir outras formas de preparação de alimentos, para o asseio corporal e outras finalidades, e paradoxalmente vem sendo desperdiçada pelo homem em praticamente todos esses usos.

Educação para cidadania da água

Na educação para a água buscam-se soluções que globalizem os efeitos produzidos por todos os fatores, humanos, sociais e e políticos

  FMA – Quais são as grandes linhas de um programa de educação?
Garrido – Separemos, aqui, a educação formal, que já inclui o tema da água nas diversas disciplinas do conhecimento, da educação para o público. Na educação formal, a água é estudada nas engenharias, na biologia, na química, no direito, na economia e em muitos outros ramos do conhecimento técnico e científico, além das matérias dos cursos de primeiro e segundo graus. Tratemos da educação voltada para o uso racional da água no seio da sociedade, isto é, do grande público.
O primeiro ponto a considerar nesse contexto da educação do público para a água é a necessidade da presença constante dos valores humanos de que se reveste normalmente o tema da água, de maneira que o programa educacional beneficie à coletividade e não a grupos ou a indivíduos. Esse é o primeiro objetivo pedagógico, aliás.
É importante que a educação ambiental para a água, à semelhança do que ocorre com a gestão deste recurso que é participativa, também contribua para a solidariedade entre os cidadãos, fazendo integrar um mesmo grupo, adultos, jovens e crianças de culturas diferentes. Em outras palavras, as lições sobre o tema da água são para ser difundidas para grupos que acolham a todos, sem distinção de classes, ainda que com distinção de interesses na forma de usar a água.
Essa é a primeira grande linha da Educação para a Água, que pode ser referida, de modo mais apropriado, como Educação para a Cidadania pela Água.

FMA – E quais são as demais grandes linhas?
Garrido – Em segundo lugar, mas não menos importante, está a necessidade de respeito mútuo entre usuário e recurso. Historicamente, como a água não é um ser vivo, o homem sempre a teve como um recurso natural à sua disposição como se somente a água tivesse compromisso com ele e o tratamento recíproco não precisasse existir.
E o resultado aí está, bem visível, sob as mais diversas respostas que o meio ambiente vai silenciosamente dando às agressões que sofre. Assim, a segunda linha de trabalho na educação para a água inclui a necessidade suprema de jamais julgarmos que os recursos hídricos são algo que devam estar a nosso inteiro dispor sem um mínimo de consideração no tratamento de nossa parte.
Em verdade, o homem dificilmente tem presente o fato de que ele mesmo faz parte do ecossistema, o que é razão mais do que suficiente para lembrá-lo de sua inevitável simbiose com o meio natural.

FMA – E o processo educativo propriamente dito?
Garrido – Está na terceira linha. Situa-se ao nível do paradigma da seleção e determinação da conceptualização e das operações lógicas, definido pelo filósofo Edgar Morin em Os sete saberes necessários à educação do futuro. Por meio desse paradigma, os indivíduos conhecem, pensam e agem de acordo com seus valores culturais.
Em termos práticos, a educação para o uso racional dos recursos hídricos não é baseada em modelos fechados para diferentes tipos de problemas. Até porque os problemas nas diversas bacias hidrográficas são diferentes entre si. A educação para água implica a necessidade de o indivíduo pensar e atuar.
A quarta e última linha está no modo de abordagem, que busca combinar a abordagem da educação escolar com a abordagem da educação ambiental. A primeira é tipicamente setorial, compartimentando em disciplinas didaticamente estabelecidas, enquanto que a educação ambiental se concentra no enfrentamento do fenômeno como ele se apresenta na prática, de modo inteiro, global.
Portanto, na educação para a água buscam-se soluções que globalizem os efeitos produzidos por todos os fatores, humanos, sociais, políticos, econômicos, técnicos. Seu instrumento principal não é a persuasão, é antes a demonstração concreta do fenômeno a ser encarado.

FMA – Em termos práticos, que conhecimentos devem ser difundidos entre as pessoas a serem treinadas?
Garrido – Veja bem, como esses trainees (pessoas a serem educadas), ou pessoas a serem educadas, incluem todas as categorias sociais e intelectuais, o conhecimento a ser difundido vai do mais elevado até o mais baixo conteúdo em termos de tecnicalidade e mesmo de erudição.
Numa extremidade, a transmissão de informações e de conhecimento precisa ser procedida de modo accessível para que o fenômeno seja compreendido pelos indivíduos que têm formação escolar parcial e, na outra ponta, a transmissão das informações deve ser feita de modo a não se tornar enfadonha para os que tiveram oportunidade de completar a sua formação intelectual. A verdadeira grandeza de um programa de educação para a água está em atrair a todos quantos possam contribuir com a gestão e a preservação dos recursos hídricos. E mais: em nada importando o seu nível de formação intelectual.


FMA – Quais os principais conhecimentos a serem difundidos?
Garrido – Aí o espectro é bastante amplo. Em primeiro lugar, alinham-se os aspectos práticos relativos à legislação e às questões institucionais, por onde o programa de educação deve começar. E deve começar com essa abordagem porque as leis e as instituições são o ponto de contato mais imediato com que cada indivíduo se depara ao abordar uma questão relativa aos recursos hídricos.
Problemas como conflitos de uso, contaminação da água, por exemplo, desde o primeiro momento remetem a análise aos aspectos legais e institucionais. Quais os limites dados pela lei? Que instituições estão envolvidas com esse ou aquele problema? Essas são questões que as pessoas que vão contribuir com a solução dos problemas têm que ter em mente no primeiro momento.

FMA – Além das questões legais e institucionais, o que mais deve conter o programa de educação para a água?
Garrido – Soluções técnicas e custos associados vêm logo em seguida. Às vezes mesmo antes do problema legal. Quando um problema reclama por solução emergencial como, por exemplo, um acidente ambiental em um rio ou lago, de pronto se cogita de encontrar uma solução para conter e, se possível, corrigir os efeitos do acidente.
No universo dos problemas técnicos, vêm os conhecimentos da hidrologia, a hidrogeologia, o conhecimento sobre obras de concreto e de terra, os problemas de solos quanto à geologia e também quanto a geotecnia. Agregam-se a esses conhecimentos aqueles relativos aos setores usuários da água como a indústria, irrigação, mineração, geração hidroelétrica e outros mais, praticamente todos discutidos em entrevistas anteriores aqui no jornal.
Além desses conhecimentos, há inúmeros outros de grande realce na preparação do trainee para apoiar a gestão dos recursos hídricos. Tal é o caso da geografia, da sociologia, das comunicações interpessoais, da medicina coletiva, entre outros.

FMA – Será que os técnicos não complicam muito a transmissão destes conhecimentos à população em geral?
Garrido – Você tem razão. Os conhecimentos que devem fazer parte de um programa de educação para a cidadania pela água têm que ser práticos. Precisam corresponder à maior parte dos casos correntes na região. Precisam que sejam mostrados de maneira singela, sem rebuscos, nomes científicos complicados ou incursão no campo teórico puro.
É importante assinalar que o destinatário desses conhecimentos é o indivíduo que vai atuar imediatamente, ou que já está atuando, na gestão dos recursos hídricos e que precisa amealhar ou aperfeiçoar seu conhecimento prático.
Não se deve esquecer que entre os trainees (educandos) existem potenciais multiplicadores , que são divulgadores do conhecimento adquirido. Esses multiplicadores devem ser identificados e preparados para encorpar o time de novos educadores para a cidadania pela água.


O importante é que a educação ambiental  para a água, à semelhança do que ocorre com a gestão participativa deste recurso,  também contribua para a solidariedade entre os cidadãos.

A importância da mídia ambiental
A mídia ambiental ou a democratização da informação ambiental teria que ter muito mais apoio dos governos, das empresas e da sociedade.

Garrido: as reuniões dos Comitês de Bacia hidrográfica são verdadeiras sessões de educação para a água

 

 

 

FMA – Que ferramentas pedagógicas podem ser exploradas para que o programa produza os efeitos esperados?
Garrido – São muitas as ferramentas. Algumas estão no próprio método, outras constituem o instrumental de que se lança mão para estimular a vontade de aprender do trainee, dotando-o do conhecimento de interesse da gestão do uso da água.
Quanto ao método, é relevante anotar que a educação para a água é quase sempre plural, pois muito se tem aprendido pela transmissão de casos reais, o que implica a presença no cenário de um certo número de conferencistas. Vale lembrar que não se trata de um conferencista para cada caso, e sim conferencistas para transmitir a experiência ganha em conjuntos de casos classificados por determinados critérios que dêem direção ao conhecimento que se pretende construir.
Ao considerar a existência de vários conferencistas conhecedores de experiências reais, não se deve confundir educação com informação. Informação é apenas um conjunto de dados, qualitativos ou numéricos. O que é verdadeiramente importante nesse contexto é a reflexão que se faz sobre cada situação estudada, extraindo-se conclusões que contribuam de modo efetivo para solucionar problemas ou, o que é melhor, sequer deixar que estes se instalem. É a conscientização, a educação.
Ainda no que concerne ao método, a educação para a água é, por natureza, de caráter construtivista piagetiano, isto é, que considera que o indivíduo é o principal agente na construção do conhecimento e que a eficácia do método reside justamente em partir de algo já construído no ambiente do trainee.
Adicionalmente, nesse método, não há uma simples transmissão de conhecimento do professor para a pessoa treinada. O que se observa é uma co-construção envolvendo os binômios professor-trainee e mesmo trainee-trainee.

FMA – E como ficam as publicações, livros, revistas, jornais?
Garrido – Todo este tipo de acervo pedagógico é de suma importância. As publicações institucionais das entidades e órgãos públicos do setor, das ONGs, das universidades, agências de bacia, a maior parte reflete ou traz aspectos relevantes da gestão, normalmente soluções para problemas.
Esses documentos tanto podem ser impressos como estar em meio eletrônico, em CD-Rom ou na Internet por meio dos websites.
Queria fazer, aqui, um parênteses importantíssimo para mídia ambiental. Tudo que se faz em relação à educação é importante. Mas a mídia, os jornais como a própria Folha do Meio Ambiente e outros poucos que existem por ai, são eles que ajudam na formação da cidadania. Na  formação política do indivíduo.
Pela informação, pelo debate, pelos exemplos e até pelas denúncias os jornais, os programas de rádio e tevês e, hoje, os blogs  ajudam muito na formação  o cidadão responsável com a gestão das águas e com o seu meio ambiente.
Para falar a verdade, A mídia ambiental, que tem um papel importante na democratização da informação,  teria que ter muito mais apoio dos governos, das empresas e da sociedade.
Como bem diz Kevin Coyle, ex- presidente da Nacional Environmental Education and Training, "ambientalismo não se aprende no colégio e sim nos meios de comunicação.  O problema é que a mídia diária cobre muito mal as questões ambientais. Daí a importância das publicações especializadas".

FMA – Poderia citar programas de educação para a água?
Garrido – Certamente cometerei injustiça em citar alguns, porque há uma imensa quantidade de programas dessa natureza pelo mundo afora. Pode ser quantificada aos milhares.
No cenário internacional há muitos, podendo-se dar destaque aos diversos programas desenvolvidos pela Unesco, especialmente aqueles que estão no contexto da educação para o desenvolvimento sustentável, adotado pela ONU, para o decênio 2005- 2014, que inclui "Água, Fonte de Vida".
Para exemplificar um caso latinoamericano, é interessante notar os trabalhos do Instituto Mexicano de Tecnologia da Água – IMTA, que realiza pesquisa, desenvolve, adapta e transfere tecnologias de uso da água, preparando técnicos para tarefas nessas áreas.
No Brasil, podem ser destacados os inúmeros cursos práticos que têm sido patrocinados pela Agência Nacional de Águas, pelo Ministério do Meio Ambiente e pelos governos estaduais, abordando os mais diversos aspectos do planejamento e gestão dos recursos hídricos. Vale lembrar, também, a importante ação dos consórcios intermunicipais de bacia, como o caso do Piracicaba-Capivari-Jundiaí, que têm dado uma imensa contribuição para formação prática de gestores.

FMA – Existe hoje uma mentalidade de que se precisa correr atrás do tempo perdido. Há pressa em educar para a água?
Garrido – Em verdade, pressa há! Os rios e lagos estão combalidos em um grande número de casos e o setor precisa de agentes bem dotados do conhecimento prático.
 Quanto maior for o número de multiplicadores e de gestores tanto maiores serão as possibilidades de se reverter mais velozmente o quadro de degradação a que submetemos os recursos hídricos em muitos países do mundo. Daí a pressa. Daí o grande esforço que se tem assistido por toda a parte para fazer aumentar, sem perda de tempo, o exército dos que trabalham em favor da água. Enfim, correr atrás do prejuízo.


Queria fazer, aqui, um parênteses importantíssimo para mídia ambiental. Tudo que se faz em relação à educação é importante. Mas a mídia, os jornais e programas de tevês que existem por ai ajudam na formação da cidadania. Na  formação política
do indivíduo.

GLOSSÁRIO

CADEIA TRÓFICA – Também denominada cadeia alimentar. É uma seqüência de seres vivos, uns servindo de alimento a outros.

ORNITÓLOGO – Profissional da biologia que se dedica ao estudo das aves.

PIAGETIANO – Relativo à teoria criada por Jean Piaget, psicólogo e filósofo suíço, que se dedicou ao estudo da inteligência infantil, tendo influenciado fortemente o campo da pedagogia.

TRAINEE – Pessoa que está sendo preparada, que está sendo educada.