Carlos Alberto Ribeiro de Xavier - ENTREVISTA

O Homem, a Educação e a Natureza

21 de março de 2007

A evolução da questão ambiental na vida dos cidadãos e do estado brasileiro

Xavier: o ambiente não respeita linhas políticas ou imaginárias


 


 


Folha do Meio – Você e o Carlos Fernando de Moura Delphim fizeram, em 1987, a introdução do documento técnico do IPHAN “Diretrizes para Análise e a Classificação do Patrimônio Natural” citando o livro Nosso Futuro Comum. Esse documento teve grande repercussão e acabou por orientar os processos de tombamento. Isso há 20 anos. O que aconteceu de lá para cá?
Carlos Alberto Xavier  – Talvez, antes, valha a pena lembrar a citação para os leitores mais jovens. Trata-se de um trecho do livro “Earth, one World in Our Common Future”. Era o seguinte:
“Em meados do século 20 vimos nosso planeta do espaço pela primeira vez.
Talvez os historiadores venham a considerar que este fato teve maior impacto sobre o pensamento do que a revolução de Copérnico no século 16, que abalou a auto-imagem humana ao revelar que a Terra não era o centro do universo.
Do espaço o que se vê é uma bola frágil e pequena, dominada não pela ação e pela obra do homem, mas por uma disposição ordenada de nuvens, oceanos, vegetação e solos.
O fato de a humanidade ser incapaz de agir conforme essa ordenação está alterando fundamentalmente o sistema planetário. Muitas dessas alterações acarretam ameaças à vida. Esta realidade nova, da qual não há como fugir tem de ser reconhecida – e enfrentada”.


FMA – Essa é uma obra-documento que globalizou a questão ambiental…
Xavier – Essa obra coletiva foi escrita pela Comissão da ONU que preparou a ECO-92, e incluiu um único brasileiro, o Paulo Nogueira-Neto. É um documento-síntese do processo de globalização das questões ambientais, pois a Comissão presidida pela ex-Primeira Ministro da Noruega e ex-presidente da OMS, a médica Gro Brudtland, viajou por todo o mundo para discutir a questão com as comunidades.
Constatou-se a surpresa, apreensão e às vezes choque das populações com as mudanças climáticas que se anunciavam. As informações agora chegavam  precisas, pois os satélites monitoravam o planeta e o espaço.  Os estudos e análises detalhavam os buracos na camada de ozônio e suas conseqüências mais previsíveis. Tudo isso passou a provocar uma atenção globalizada do problema, pois um rio poluído que faz um percurso entre estados ou países não pode ser tratado sob a responsabilidade de apenas uma das comunidades. Todos os habitantes da bacia hidrográfica devem se envolver. O ambiente não respeita limites políticos ou linhas imaginárias entre os biomas e ecosistemas.
Em reunião do ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) em 1989, fiz uma palestra que tinha por título “O Patrimônio Submerso”. Fiz considerações sobre o fenômeno e os efeitos da alteração da entrada de raios solares sobre as calotas polares, o degelo, o aumento dos níveis dos mares e oceanos.


FMA – Quais eram essas considerações?
Xavier – Imaginava, apenas como especulação, como seria a Praça XV, no Rio, coberta de água. O Paço Imperial passando à condição de patrimônio submerso. E como seria inusitada a chegada, de barco, ao Mosteiro de São Bento, pois não haveria mais acesso por terra.
Imaginava, também, como seria a paisagem da Lagoa Rodrigo de Freitas e do Jardim Botânico, se o nível do mar subisse dois ou três metros. As imponentes palmeiras imperiais, submersas até certa altura…


FMA – Sim, e o que se passou de lá para cá?
Xavier – Para responder temos que retroceder o raciocínio um pouco mais. É uma questão histórica. O antropocentrismo e a explosão das idéias dos filósofos da Ilustração do século 18, do Iluminismo, enfim, poderiam marcar o momento histórico em que a razão passa a determinar as ações humanas.
É a partir daí que se observa a valorização das ciências do homem e da natureza, do racionalismo em todas as áreas do conhecimento, do desenvolvimento da ciência, dos conceitos de física, química, biologia como conhecemos. Isso tudo, somado aos efeitos da Revolução Industrial, nos levaria a mais um ciclo de mudanças, dessa vez com chegada das máquinas e a mecanização dos processos produtivos. A evolução das máquinas influenciou o comportamento humano de todas as maneiras e uma boa caricatura disso é feita no filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin.
 Os benefícios advindos de todo esse processo histórico não se deram sem custos. O maior deles, talvez, tenha sido o afastamento do homem de sua própria humanidade.


FMA – Mas isso tudo falando de mundo. E no caso do Brasil?
Xavier – No caso do Brasil, temos ainda a acrescentar que essas luzes do racionalismo nos chegaram bem mais tarde. Talvez com a diferença de um século. Isso porque a abolição da escravatura só iria acontecer no final do século 19, século marcado pelas expedições científicas que estudaram e catalogaram a flora, a fauna, a etnologia de todas as latitudes do Brasil.
Logo depois, o movimento que resultou na proclamação da República,  que demorou a decolar, foi arrastado para novos embates no que se chamou de República Velha. As mudanças pretendidas só aconteceriam de fato no processo histórico brasileiro, nas duas primeiras décadas do século 20, depois dos movimentos políticos, de militares, da Coluna Prestes, assim como dos artistas e intelectuais com a Semana de Arte Moderna de 22 e, quase como uma conseqüência, a Revolução de 30.


FMA – E como foi, no Brasil, este contraponto entre a industrialização e a conscientização pelo meio ambiente?
Xavier – Todos nós sabemos que a decolagem da economia brasileira e do processo de industrialização se deu tardiamente.
Foi a partir dos anos 30. E, na seqüência, com o surto de crescimento do pós-guerra e dos anos 50, foi se consolidando a diversificação do parque industrial do Brasil.
Justamente nesse período surgiu a primeira entidade de defesa do meio ambiente do Brasil, a FBCN – Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, como um contraponto às conseqüências do progresso, do avanço das fronteiras agrícolas e da industrialização acelerada, constantes ameaças às áreas naturais.
Muitos de seus fundadores já foram focalizados aqui no jornal. Um deles foi Luiz Simões Lopes. Gaúcho, formado em agronomia em Belo Horizonte, Simões Lopes foi Secretário de Getúlio Vargas. Foi ele o primeiro diretor-geral do Serviço Florestal e ajudou a criar a Fundação Getúlio Vargas. Eu sei que na primeira edição da Folha do Meio, em 1989, tem uma entrevista com Simões Lopes.
Na década de 60, em todo o mundo já começava a surgir uma preocupação maior com a natureza, culminando com a divulgação dos documentos do Clube de Roma.


FMA – Então vamos situar a preocupação com o meio ambiente, na década de 70, justamente com a epopéia do “Brasil Grande”…
Xavier – Sim, a primeira Conferência Mundial de Desenvolvimento e Meio Ambiente foi realizada em 72, em Estocolmo, quando o Brasil vivia um novo processo de crescimento, o “Brasil Grande”, “Pra-frente Brasil”, “Ninguém segura este País”.
Foi quando nasceram os pólos de desenvolvimento e os programas de interiorização do desenvolvimento, tipo PIN e Proterra, as transamazônicas etc.
A economia crescia a taxas que muito gostaríamos de ver hoje. Como o Brasil tinha assinado a Convenção resultante da reunião de Estocolmo, voltamos com muitos deveres de casa.
Durante o governo Geisel, a área de planejamento e da conservação da natureza do então IBDF, que havia sido esvaziada, e a SEMA no Ministério do Interior iriam ganhar cada vez mais espaço de trabalho.
O primeiro com o planejamento e estudos para criação dos Parques Nacionais e Reservas Equivalentes, coordenadas por Maria Tereza Jorge Pádua. A segunda com a criação de novas unidades de conservação, as Estações Ecológicas, essas sob a orientação de Paulo Nogueira Neto.
Criou-se um ambiente de diálogo dentro do governo, Criou-se, também, massa crítica. Grupos de servidores públicos bem treinados fizeram, a partir de 1977, o primeiro curso de sensoriamento remoto no INPE. Isso foi importante para o uso de imagens de satélites para monitorar os reflorestamentos e os desmatamentos. Foram feitos cursos de planejamento florestal que formou quadros para o futuro auto-sustentável da siderurgia e da então promissora indústria do papel e celulose.


FMA – E o papel da RIO-92?
Xavier  – Sim, 20 anos depois  veio a RIO?92, a grande conferência da ONU . Aí, sim, observou-se uma mudança radical no discurso do governo em relação ao assunto.
Se na primeira reunião, em Estocolmo, em 1972, o governo brasileiro brigava pelo desenvolvimento nacional e se convivia em um ambiente político em que alguns defendiam até a fumaça como sinal de progresso, na ECO-92 o Brasil patrocinou a realização do encontro trazendo 174 Chefes de Estado e de Governo, para defender o oposto. De fato, foi um divisor de águas.


FMA – Depois da reunião de Estocolmo, em 72, foi criada a Secretaria Nacional de Meio Ambiente. Depois de 92, o Brasil lutou para deixar de ser vilão ambiental e colocou o meio ambiente em pauta. Foi nesta época que a questão ambiental passou a ter espaço maior?
Xavier – Isso mesmo, 1992 é o momento em que todo o governo se compromete com a questão ambiental, formalmente. Mas antes, em 1989 – no governo José Sarney – fora criado o Ibama, uma autarquia nova que juntou o IBDF, a Sema, a Sudepe e a Sudhevea. Também foi na década de 80 que começaram a se organizar em todo o país as ONGs para complementar a ação do governo, como foi o caso da Funatura, da SOS Mata Atlântica e muitas outras.
O governo Fernando Collor elevou o status institucional nomeando José Lutzenberger para uma Secretaria do Meio Ambiente, diretamente ligada à Presidência da República. Mas era fogo de palha e durou pouco.
 Depois, no governo Itamar Franco, a secretaria virou Ministério do Meio Ambiente e assumiu uma posição forte dentro da estrutura do governo, incorporando a Amazônia Legal e chamando o Embaixador Ricupero de Washington para assumir a Pasta.


FMA – Isso no caso da administração, mas a questão fundamental é a conscientização pela educação?
Xavier – Foi também na gestão do presidente Itamar Franco que ocorreu formalmente uma mudança, quando se criou o primeiro núcleo de educação ambiental do MEC.
Este núcleo, ligado diretamente ao gabinete do ministro, na época Murílio Hingel, desenvolveu um importante trabalho de base, em todas as Secretarias do MEC, e em todos os estados treinando agentes públicos vinculados ao MEC por intermédio das Delegacias Estaduais.
Esse trabalho fez surgir a semente de uma nova mentalidade para a questão ambiental na educação. Diferentemente da cultura que foi se afastando da escola e da educação, a Educação Ambiental é um tema que tem um histórico bem particular, pois se trata de um conteúdo novo que chegou ao Ministério, às Secretarias de Educação e às escolas por pressão da sociedade.
As organizações da sociedade já agiam politicamente na Constituinte, na preparação da ECO 92, e continuaram pressionando. Hoje, mais de  90% das escolas públicas pesquisadas desenvolvem alguma atividade de educação ambiental.


FMA – E os instrumentos para o desenvolvimento da política ambiental?
Xavier – É preciso lembrar, mais uma vez, que para chegarmos ao estágio atual, com a educação ambiental colocada nos parâmetros curriculares nacionais como tema transversal e interdisciplinar, em todos os níveis e modalidades de ensino, percorremos um longo caminho: em 1981 surgiram a lei que estabelece a Política Nacional de Meio Ambiente, o Conama, e o Sistema Nacional de Meio Ambiente, em vigor até hoje. Também surgiu e se consolidou o Direito Ambiental, a partir da Lei dos Direitos Difusos do Cidadão, editada em 1984, fazendo valer as ações de defesa, conservação, proteção e recuperação do patrimônio cultural incluídas as áreas ecológicas de interesse relevante.


FMA – E como foi o envolvimento da sociedade neste processo?
Xavier – Sim, isso é muito importante, pois foi por meio das organizações espontâneas das comunidades das Associações de Bairro, de Amigos da Escola, de Pais e Mestres, de Amigos de Museus ou Parques.
Para se ter uma idéia do envolvimento já antigo da sociedade com a questão ambiental, a partir da década de 70, basta citar que a publicação do primeiro cadastro de ONGs, voltadas para a defesa do meio ambiente, editado pela SEMA em 1983, já contava mais de 1.000 entidades. Eram associações de pescadores, de comunidades diversas em todo o país e um bom exemplo é a AIPA – Associação Ituana de Preservação Ambiental.
A Aipa foi a primeira entidade a se inscrever no cadastro do Ministério da Cultura para obtenção de recursos incentivados para atuar localmente, pensando no global, e também comemora 20 anos.
Surgiram ainda entidades maiores e mais organizadas, com corpo técnico e administrativo, conselhos representativos, capazes manejar recursos externos e do governo e de executar projetos de grande porte, com sucesso. Hoje, essas organizações do terceiro setor são um importante braço executivo, parceiras indispensáveis nas três esferas de governos.


FMA – E quando essa educação formal e não formal foi devidamente regulamentada?
FMA – Olha, estão em vigor o Decreto Nº 4.281,  de 25 de junho de 2002, regulamentando a Lei no 9.795, de 27 de abril de 1999, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências.  Para além da educação ambiental formal e não formal, essa e outras normas legais estabelecem hoje, claramente, os papéis dos vários atores sociais.
Tudo está estabelecido para cumprirem e fazerem cumprir as funções dos órgãos governamentais e de regularem a participação dos diversos segmentos organizados da sociedade.
A Funatura e outras ONGs são partes importantes dessa história.