Frutos do Cerrado

Gastronomia como instrumento de conservação

23 de outubro de 2007

Chefs de cozinha e consumidores se rendem aos sabores regionais e entram na luta pela preservação

Fotos: Marcelo Bresolin


“Seu” José, produtor de Pequi: “Saboroso
 e sem espinhos”


Receitas com produtos nativos são a última moda em restaurantes descolados adeptos da culinária sustentável. Além de emprestar sabor, cor e charme aos pratos, os produtos do Cerrado também podem entrar no cardápio das crianças nas escolas. Basta que os governos locais adotem políticas de compra baseadas no comércio justo e sustentável e façam seus pedidos nas centenas de associações de produtores organizadas em toda a região, realimentando o ciclo virtuoso.
Espalhado pelos estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, parte de Minas Gerais, Bahia e Distrito Federal, o Cerrado tem cerca de dois milhões de quilômetros quadrados. Segundo bioma mais ameaçado do Brasil, o Cerrado é um hotspot. No bom Português, isso significa que a região possui altíssima diversidade de animais e plantas, muitas delas endêmicas. São cerca de 10 mil espécies, sendo 4,4 mil exclusivas da região. Estão identificadas 837 espécies de aves, 67 gêneros de mamíferos, 150 espécies de anfíbios, 120 espécies de répteis, mil espécies de borboletas e 500 espécies de abelhas e vespas. À medida que as pesquisas avançam, o Cerrado revela novas espécies de animais e plantas.
Isso sem contar que o Cerrado é o “berço das águas”, pois abriga nascentes que ajudam a formar seis das mais importantes bacias hidrográficas do País, entre elas a do São Francisco, Tocantins, Araguaia e Paraná – uma riqueza que os brasileiros estão perdendo pouco a pouco. Desde que o Brasil adotou a política de interiorização do desenvolvimento, a partir da década de 1950, o Cerrado já perdeu quase metade de sua cobertura vegetal.



Para Dudu Camargo o uso de produtos regionais é uma tendência


 


 


Gastronomia
Mesmo com esse desfalque, o Cerrado é uma fonte de inspiração para a gastronomia. Sua diversidade biológica, assim como a variedade de sabores, ainda não foram totalmente descobertas. O uso tradicional de frutos típicos como o pequi, a cagaita, o jatobá e a castanha de baru ganha novas versões nas mãos de coroados chefs de cozinha e gourmets  sempre atentos à receita do sucesso.
Alice Mesquita, comandante de um dos mais badalados restaurantes de Brasília é que o diga. A chef – que tem se destacado na gastronomia com produtos nativos – é uma das pioneiras na elaboração de pratos com elementos do Cerrado. Alice sempre se aventurou em direção aos sabores inusitados da região. Como sua homônima da história de Lewis Caroll, a Alice também descobriu um mundo encantador que a fez viajar pelo universo dos insuspeitos paladares que ela descobriu e que agora difunde entre sua clientela requintada nos dois restaurantes (com seu nome) que mantém em Brasília.
Sua mousseline de feijão azuki com ragu de lingüiça caseira e o minicrepe recheado com chantilly, calda de cagaita e crocante de baru causaram frisson durante um evento que reuniu cerca de 400 pessoas ligadas ao mundo da alta gastronomia brasileira, em São Paulo, no ano passado. O sucesso se repete em seus cardápios temperados com as cores e sabores do Cerrado. 
Dudu Camargo, dono de cinco casas em Brasília, faz sucesso com seu robalo em crosta de baru guarnecido com arroz de cajuzinho-do-cerrado em passa. Para o chef, a tendência no uso de produtos regionais está se consolidando à medida que os clientes deixam de lado o preconceito com os produtos nativos e se abrem à experiência de novos paladares. “Os frutos do Cerrado têm gosto peculiar. É preciso sensibilizar o paladar do público para essas iguarias”, aposta ele.
Conquistados pelo paladar, os consumidores dos produtos da empresa Nona Pasqua, de Goiânia, já preparam o almoço ou jantar com produtos feitos à base dos sabores do Cerrado com a consciência tranqüila de que estão ajudando a manter os agricultores familiares e, ao mesmo tempo, colaborando para preservar a biodiversidade.
O espaghetti ao pesto de baru e o licor Baruzetto – também à base da castanha nativa – criados por Gennaro Salvemini são campeões de venda da empresa no Brasil e já chegam à mesa dos bons de garfo em países com tradição na alta gastronomia como Espanha e Itália.


Simon Lau: produtos dinamarqueses colhidos no Cerrado


 


 


 


 


Os frutos do Cerrado têm uma rica realidade de sabores. Pão de jatobá, tradição em Pirinópolis


 


 


 


 


Framboesas do Cerrado
Outro pesquisador de produtos do Cerrado é o dinamarquês Simon Lau Cederholm que tem no seu Aquavit, em Brasília, a maior experiência do uso de produtos brasileiros, combinando com sabores europeus. “Acho que meus clientes merecem”, costuma dizer Simon. “Aliás – acrescenta – todos nós merecemos sair um pouco da rotina do dia-a-dia e nos mimarmos de um pouco de ostras, trufas, foie-gras com o abundante leque de produtos locais”.  Neste mês de outubro, o Aquavit serviu os produtos tipicamente nórdicos, mas produzidos aqui no Distrito Federal.
Conta Simon que aqui em Brasília tem um agricultor que produz framboesas realmente fantásticas. “Fiquei até emocionado quando experimentei pela primeira vez. Senti a mesma coisa que o temido crítico no filme Ratatouille sentiu, quando comeu o prato feito pelo ratinho”.  Diz ele que chega a lembrar dos tempos dinamarqueses quando colhia framboesas com sua avó na floresta de Tokkekoeb Hegn. Para Simon, o saputi com queijo roquefort, a baunilha do cerrado e cajá são benesses dos deuses na gastronomia mais sofisticada.
Na hora da sobremesa, a sorveteria Sorbê, criada em Brasília pela empresária Rita Medeiros, oferece sabores como o jatobá, a cagaita, o pequi, o baru, o buriti, mama-cadela, o araticum e o babaçu. Sem o uso de gorduras hidrogenadas, os sorbês com frutos do Cerrado viraram mania entre os descolados da capital da República.
Com menos de um ano, a sorveteria já abriu uma filial, dobrou o número de funcionários e se mantém fiel na aquisição de matéria-prima diretamente de produtores familiares, sem atravessadores, gerando renda no campo e movimentando a economia local. Mais bom gosto, impossível.


Educação dos sentidos
Encravado em meio a um arvoredo que dá nome a uma pousada em Pirenópolis, a 145 km de Brasília, o restaurante Table D’hôtes oferece pratos com sabores regionais servidos à moda francesa.
A chef  Murielle Dargaud tira da horta caseira alguns dos principais ingredientes para seus pratos. Taioba, ora-pro-nobis, caruru e beldruega eram horta liças muito usadas pelas mães e avós do interior de Goiás. Com o advento de novas espécies (muitas delas estranhas ao Cerrado) e do aumento da oferta de produtos industrializados, essas jóias verdes cultivadas há séculos estavam se extinguindo das hortas e do imaginário popular. Murielle Dargaud tratou de resgatá-las e dar-lhes status de iguarias servidas em receitas exclusivas feitas para clientes seletos.


Slow-food X fast-food
A chef personifica os ideais do movimento gastronômico slow-food, criado por Carlo Petrini, em 1989, na Itália. Com cerca de 85 mil associados em todo o mundo, organizados em núcleos chamados Convivia, o movimento busca o resgate de alimentos preciosos, bem como os modos tradicionais de prepará-los. Essas tradições muitas vezes acabavam soterradas pela cultura da massificação gastronômica do fast-food.


 


Roberta Martins de Sá, coordenadora do Slow-Food


 


 


Cultura local
O slow-food tem uma recomendação: olhar para a região onde se vive e extrair dali os produtos e todo o conhecimento tradicional que a eles se agregam, valorizando as culturas locais, protegendo os ambientes e estimulando o consumo de alimentos saudáveis.
 De acordo com Roberta Marins de Sá, coordenadora dos projetos do slow-food no Brasil, a ética do movimento é a do alimento bom, justo e limpo. Além de organizar eventos para difundir a cultura gastronômica e apoiar mercados de produtores ao redor do Planeta, o slow-food mantém uma fundação que capta recursos internacionais para salvaguardar alimentos nativos em países em desenvolvimento, mais ricos em biodiversidade.


Arca de gosto
Com cada vez mais adeptos, o Slow Food mantém ainda o projeto Arca do Gosto, que  preserva alimentos de excelência gastronômica, ameaçados de extinção e vinculados à história dos lugares de onde são originários. A farinha de batata-doce dos índios Krahô, de Tocantins, faz parte da arca junto com a marmelada Santa Luzia, produzida artesanalmente por remanescentes quilombolas de Goiás. Alguns dos alimentos presentes na Arca do Gosto funcionam como as espécies-bandeira da conservação ambiental.
Chamados de “Fortalezas Gastronômicas”, esses alimentos são levados para os eventos internacionais de degustação e difundidos juntamente com os aspectos socioambientais dos seus locais de origem.
Do Cerrado brasileiro, a castanha de baru ganhou projeção mundial. Tornado uma Fortaleza, a castanha agora ajuda a chamar a atenção para o bioma ameaçado. 


Trem do Cerrado: saúde, sabor e charme
Base de funcionamento da rede de produção: produtores orgânicos, produtores familiares, índios, quilombolas e agroextrativistas.


 


Trem  Cerrado
Saúde e sabor juntos dão o charme às guloseimas produzidas pelo estudante de Tecnologia da Gastronomia da Universidade de Goiás, Manoel Aponte. Há quatro anos, ele criou a empresa Trem do Cerrado que fabrica barras de cereais com castanhas nativas do baru e do pequi (www.tremdocerrado.pirenopolis.tur.br). Ricas em carboidratos, sais minerais e vitaminas, as barras de cereais estão ajudando a nutrir consumidores nas regiões Centro-Oeste e Sul do País.
O pão integral com farinha de jatobá feito por ele também caiu no gosto dos consumidores. De aroma incomparável, o pão tem ainda a vantagem de ser um alimento funcional, rico em fibras e mais potente em cálcio do que o leite de vaca, ou seja: o pão de jatobá vale mais que um danoninho.
“Esses alimentos poderiam fazer parte da merenda escolar. Bastaria que as prefeituras fizessem suas compras de mantimentos das inúmeras comunidades agroextrativistas existentes na nossa região”, sugere o gourmet. 
As qualidades nutricionais dos frutos do Cerrado são tema de pesquisa em instituições como a Embrapa, a Universidade de Brasília e a Unicamp, centros de excelência quando o assunto é descobrir o que vem junto com o sabor dos alimentos nativos da savana brasileira.
Os resultados das análises mostram que os frutos do Cerrado são fontes de vitaminas e minerais de alto valor nutricional. Podem ser usados desde a cosmética até a nutrição avançada.  O baru, por exemplo, é rico em ferro e zinco. A macaúba ajuda no controle hormonal e possui bastante cálcio, assim como o jatobá.
O buriti tem substâncias que ajudam a proteger a pele. O pequi é rico em cobre e tem efeitos comprovados no melhor funcionamento do cérebro, ou seja: nutrir-se do Cerrado é um ato de inteligência.


Produtos Ecossociais
 A educação do paladar encontra-se com a preservação de ambientes naturais e culturas tradicionais e ambas se encontram na recém-criada Central do Cerrado. Trata-se de uma rede de apoio às comunidades, gerida com recursos de cooperações internacionais, mas que caminha para a auto-sustentação financeira.
A base de funcionamento da rede é articulação com organizações comunitárias que realizam atividades produtivas com base no uso sustentável da biodiversidade da região. Entre as comunidades estão produtores orgânicos, produtores familiares, índios, quilombolas e agroextrativistas.
 De acordo com Luiz Carrazza, idealizador do projeto, a Central do Cerrado faz a ponte entre os produtores comunitários e os consumidores que buscam uma alimentação consciente. As comunidades ligadas à central são apoiadas por instituições nacionais e internacionais, conferindo credibilidade aos produtos e procedimentos utilizados na produção dos alimentos. Controle de qualidade, procedimentos sanitários, embalagens, marketing e distribuição fazem parte do dia-a-dia das associações ligadas à central.


Pequi de Japonvar
Um dos casos de sucesso apoiados pela Central do Cerrado é a Cooperativa de Produtores Rurais Catadores de Pequi de Japonvar, no Norte de Minas Gerais. As cem famílias ligadas à cooperativa triplicaram a produção de pequi a partir do momento em que a matéria-prima que eles coletam de modo sustentável chegou a mercados consumidores dentro e fora do Brasil.
 Das quase 15 toneladas colhidas este ano, parte seguirá para os Estados Unidos, aumentando a renda da comunidade. A organização opera na base do comércio justo e solidário e promove a inclusão social por meio do fortalecimento de iniciativas produtivas comunitárias que aliam a conservação do Cerrado com geração de renda para as comunidades. Os principais produtos são castanhas, frutos, farinha, mel, geléias e bebidas.