Arara-Azul-deLear

24 de março de 2008

Batalha de vida ou morte no Raso da Catarina, nas terras de Canudos

A sobrevivência da arara está intimamente ligada ao licuri, uma palmeira endêmica ma Caatinga. Os frutos são descascados e partidos ao meio pelas araras com uma precisão impressionante para terem acesso à amêndoa

 

 

 

Descrita em 1956, a espécie permaneceu no vácuo do conhecimento científico por mais de um século, quando em 1978, pesquisadores do Museu Nacional do Rio de Janeiro identificaram seu habitat, no Raso da Catarina, uma extensa, inóspita e arenosa região baiana com cerca de 400 km2, onde foram localizados os primeiros exemplares em ambiente natural, que passaram a ser monitorados desde então.  O trabalho de proteção e recuperação da espécie, que já dura cerca de 20 anos. Passou por etapas. Em 1986 Judith Heart, em parceria com a fundação Biodiversitas, iniciou os estudos preliminares sobre a arara em Canudos. Cerca de 10 anos depois, em 1996 o Ibama e a Biodiversitas retomaram ao trabalho de campo. Dois anos depois, a mesma parceria criou o Projeto Arara-Azul-de-Lear. Em 2001 o Ibama instituiu o programa de conservação da arara-azul-de-lear e instalou uma base de campo em Jeremoabo e duas ao sul em Canudos, conduzida pela Biodiversitas. Também foi criada um Comitê Internacional para proteção da espécie.

Parceria perfeita
A parceria tem dado certo. Uma verdadeira revolução ambiental, educativa e cientifica vem se estalando no vale do Vaza Barris. Intesificaram-se as ações de fiscalização, monitoramento e pesquisa. A população da arara, que era 60 indivíduos no início, saltou para 650 em 2006. A previsão para próxima contagem é que ultrapasse 700 indivíduos. A área de ocorrência hoje ocupa um raio 34.274 km2 e já inclui sete municípios: Jeremoabo, Canudos, Euclides da Cunha, Uauá, Santa Brígida, Paulo Afonso e Campo Formoso, onde apenas dois indivíduos são monitorados. Os biólogos Eduardo Araújo e Kleber Gomes, que atuam na base de Jeremoabo advertem, entretanto, que os avanços não significam que arara já pode sair da lista vermelha dos animais ameaçados a qualquer momento. "Ou tras variantes precisam ser consideradas, como a proteção e o desafio da oferta de alimentos na natureza", completa Diego Mendes, biólogo do Proaves, que também atuam na mesma base. Segundo eles, a degradação do habitat tem reduzido a ocorrência do licuri (Syagrus coronata), cujos frutos são o principal alimento. Os bandos chegam a voar a até 30 km por dia para se alimentar. "A escassez da palmeira, por sua vez, gerou um novo problema: o ataque das araras aos cultivos de milho dos agricultores de base familiar, provocando prejuízos", observa Eduardo.

Ressarcindo prejuízos
aos agricultores

Os ataques já vinham sendo registrados desde 1990. A busca de solução para o problema envolve um rigoroso levantamento dos estragos, o perfil sócio-econômico dos agricultores, e a importância do cereal para a sobrevivência das famílias. Munidos destes dados, o projeto conquistou o apoio da Parrots International e da Fundação Lymington.  Estas entidades vêm ressarcindo os prejuízos dos agricultores em caráter emergencial desde 2004, por um período de 10 anos. Os estragos são pagos em sacas de milho. Em 2006, 48 famílias foram cadastradas e ressarcidas em três municípios. Os estragos do ano passado chegam a 200 sacas, a serem pagas brevemente. A questão é considerada um desafio e preocupa. As aves costumam ser alvo de agressões durante os ataques.

A arara-azul-de-lear virou o xodó da comunidade. Os biólogos Kleber Gomes e Diego Mendes monitoram o dia-a-dia das araras

  

 

 

 

 

Estação Ecológica do Raso da Catarina

 

 

 

Parceria envolve aventura, ciência e paixão

O Rally dos Sertões de Alex França e Sayonara Oliveira

Licuri: árvore
sagrada da arara

Para os biólogos do Projeto, a sobrevivência da arara está intimamente ligada ao licuri, que é endêmica da caatinga. Os frutos são descascados e  partidos ao meio pelas araras com uma precisão impressionante para terem acesso à amêndoa interna. "É imprescindível aumentar a disponibilidade de licuri na natureza. Sua proteção e regeneração são vitais para conservação da espécie", observa Diego Mendes. 
Consciente dessa necessidade o projeto botou a mão na muda, literalmente. O cultivo do licuri de forma experimental vem sendo feito desde 1998, com as 600 primeiras mudas plantadas na fazenda Santa Ana, em Jeremoabo.  O índice de perda, entretanto, foi muito elevado.
Em 2004, o remanescente foi com a utilização de irrigação e adubação. O resultado foi animador. Um novo campo experimental de dois hectares foi plantado novamente. As perdas giraram em torno de aceitáveis 30%. Recentemente, um outro campo recebeu 250 mudas, além de árvores nativas, numa parceria com a prefeitura e educadores. Apenas 2% morreram. As conquistas têm animado o pessoal.
A construção de um viveiro com capacidade para duas mil mudas/ano, já está em andamento. Os biólogos acreditam que uma maior oferta do licuri vá diminuir os ataques aos milharais. Uma lei municipal (no 302/2002) proíbe o corte e a queima do licuri em Jeremoabo. Recentemente a portaria do Ibama no 147/2007 ampliou essa proteção, definindo a palmeira como "espécie vegetal relevante", permitindo apenas a exploração sustentável, uma vez eu as folhas são tradicionalmente utilizadas pelos sertanejos no artesanato, bem como a cera e os frutos.
Eles acordam de madrugada, enfrentam quilômetros de sacolejo em estradas esburacadas de terra, chuva, lama, sol escaldante, caatinga espi nhenta, animais peçonhentos, carro atolado na escuridão. Mas não, eles não estão no Rally dos Sertões.
Alex França e Sayonara Oliveira são apenas dois dos inúmeros jovens voluntários do Programa de proteção da arara-azul-de-lear em Jeremoabo. Eles atuam na contagem das araras.  O trabalho é realizado duas vezes ao dia, durante três dias seguidos, nos locais de reprodução e dormida. Os ninhos ficam em buracos nos paredões areníticos de cânions com até 800 me tros de altitude. A contagem se dá ao amanhecer, quando elas deixam o local para se alimentar, e ao entardecer, quando retornam. "Participei sete vezes. É apaixonante", conta Alex, que é agente de saúde. Já Sayonara que acaba de fazer vestibular de biologia, não está nem aí para os desconfortos dessa peleja sertaneja: "Me sinto na obrigação de contribuir com um projeto de tamanha responsabilidade e respeito".
Outros jovens atacam em outras frentes dessa luta. É o caso de alunos da Escola Agrícola da cidade que participam, em regime de campo de estágio, do acompanhamento e da avaliação dos cultivos de milho atacados pelas araras para posterior ressarcimento dos agricultores pelo projeto. Já educadores como Fátima Oliveira, a Tia Fá, colegas e alunos da sua escola municipal contribuem plantando a palmeira licuri no vale do Vaza Barris. Mas não são apenas os jovens e os educadores que contribuem para a salvação da arara.
Uma significativa contribuição é dada por proprietários rurais. Gente como Breno Toreiro, Otávio Nolasco e José Bonfim, conhecido Zé Miúdo. A mera preocupação dos três se transformou em ação concreta, que se reflete no controle rígido do acesso às áreas e apoiando a fiscalização, acolhida de animais feridos, readaptação de animais em grandes viveiros, reintrodução na natureza e até suplementação alimentar nos tempos de escassez. O poder público local se juntou ao projeto em 2005, especialmente na área da educação ambiental, envolvendo a rede escolar.
A arara virou o xodó da cidade e é a logomarca da administração. Os biólogos também realçam a importância das Ongs mantenedoras, cujos recursos captados tornam possível às ações de proteção.

Áreas protegidas
Todo a Raso da Catarina é recomendado pelo MMA como área de proteção integral, em função da existência de espécies ameaçadas, alta fragilidade da área, ocorrência endemismo e a pressão antrópica (do homem) sobre o meio ambiente. Cinco unidades de conservação oficiais já estão implantadas no território de influência da arara, sendo a maior concentração de unidades no bioma caatinga.
A Estação Ecológica do Raso da Catarina foi criada em 1982, e tem uma área de 99.772 hectares. É a segunda maior área de preservação da Bahia. A APA Serra Banca foi criada em 2001 pelo governo estadual e tem 67.234 hectares, sendo contínua à estação do Raso, onde se concentra área de dormitório e de reprodução da espécie. A Estação Biológica de Canudos pertence à Biodiversitas, que adquiriu a área tornando-a oficialmente protegida por lei em 1989, onde mantém duas bases de pesquisas. Já o Parque Estadual de Canudos, foi criado em 1986 e tem 1.321 hectares. Há também na região a área de Relevante Interesse Ecológico de Cocorobó. E duas áreas indígenas, Pankararé e a Tuxá.