Mar do descaso

14 de fevereiro de 2009

As descargas e água de lastro dos navios são mais uma grave ameaça à poluição e equilíbrio da diversidade marinha


Os grandes navios de cruzeiro aportam na baía de Búzios – RJ


Entre os meios de transporte, os navios são os que menos despejam na atmosfera dióxido de carbono. Em compensação a frota mundial transporta entre 7 e 10 mil espécies de criaturas marinhas diariamente, causando uma enorme confusão no ambiente em que aportam. A questão dos derrames de água de lastro é tão preocupante que a Organização Marítima Internacional (IMO na sigla em inglês), uma agência especializada das Nações Unidas, elaborou em 2004 a “Convenção Internacional para Controle e Gerenciamento de Água de Lastro e Sedimentos de Navios”.
A IMO tem como objetivo principal reduzir a introdução de espécies exóticas por meio da água de lastro dos navios, o que acarreta grandes implicações econômicas e ambientais. Mas esta Convenção ainda não entrou em vigor, isso só vai começar a funcionar após um ano de ratificação por 30 estados membros, o que ainda não aconteceu. Somente o Brasil e mais 11 estados membros ratificaram a Convenção até agora.


80% do movimento
Atualmente, o transporte marítimo movimenta mais de 80% das mercadorias do mundo. E isso significa a transferência de um porto a outro de 3 a 5 bilhões de toneladas de água de lastro por ano. Esta água, carregada nos porões dos navios, proporciona equilíbrio e estabilidade aos navios de carga e é absolutamente essencial para a eficiência e segurança das modernas operações de navegação.
A água de lastro é jogada ao mar toda vez que o navio vai ser carregado. Nos portos brasileiros chegam e saem diariamente embarcações de várias partes do mundo, com isso o risco de contaminação ambiental aumenta.
Com a água podem vir inúmeros mariscos, peixes, algas, ovos, bactérias e larvas de espécies exóticas que não são comuns em nossos ecossistemas, por isso não encontram aqui seus predadores naturais.
Hoje em dia existem sistemas de filtros que ainda conseguem impedir que organismos maiores entrem nos tanques dos navios, mas quanto aos minúsculos seres, como vírus e protozoários, não há muito o que fazer.
Grande parte das espécies marinhas que são carregadas nessas águas muitas vezes não sobrevive à jornada , já que o ambiente dentro dos tanques não é apropriado. As que sobrevivem e são descarregadas podem sofrer ainda predação ou competição com espécies nativas. Mas quando uma espécie se instala num ecossistema que lhe é favorável e se dá bem, começa aí uma tremenda confusão na comunidade local.
Nos EUA, a Universidade de Cornell fez uma pesquisa e constatou que o comércio marítimo internacional chega a causar um prejuízo de US$ 4 bilhões por ano, isso só com o despejo das águas dos tanques e seu impacto na saúde pública e no meio ambiente. No mundo há vários exemplos de contaminação causada por água de lastro.
O mexilhão zebra (Dreissena polymorpha), espécie européia, invadiu a região dos grandes lagos nos EUA e provocou gastos de milhões de dólares para seu controle. Uma espécie predadora de estrela-do-mar (Asterias amurensis), originária da China, foi introduzida na Nova Zelândia pela água de lastro e provocou um grande impacto nas populações nativas. O dinoflagelado tóxico Gymnodinium catenatum, natural do Japão, foi introduzido na Australia prejudicando sobremaneira a pesca e a aquicultura industrial.



Grandes navios aproveitam as reentranças “escondidas” do mar para lavar tanques e liberar cargas poluentes


 


 


Bilhões em prejuízo
Acredita-se que a bactéria Vibrio cholerae, causadora da cólera, chegou à América Latina por volta de 1894 através das águas derramadas de porões de navios. A contaminação por água de lastro mais conhecida até hoje é do molusco bivalve Limnoperna fortunei, natural da Ásia. Este mexilhão obstrui as tubulações das companhias de abastecimento de água e entope as turbinas das hidrelétricas.
Os prejuízos são enormes e exigem manutenções constantes a custos altíssimos. Além disso prejudicam a pesca de populações ribeirinhas e os motores das pequenas embarcações.



Técnicos usam aparelhos para medir a poluição deixada por navios


Experiência em Sepetiba
De acordo com a Organização Marítima Internacional – IMO – é preciso adotar um sistema de avaliação de risco. Cada país decide se vai utilizar o sistema uniforme (para todos os navios) ou o seletivo (para os navios de alto risco). No último caso medidas mais rigorosas podem ser aplicadas em navios considerados de “alto risco”. Mas é claro que o sucesso depende da disponibilidade e da qualidade das informações obtidas. As informações dependem das pesquisas. No Brasil, o principal estudo sobre a água de lastro dos navios é feito no porto de Sepetiba, no Rio de Janeiro. 
Esta pesquisa faz parte de um projeto coordenado pela IMO. Cientistas concordam que fazer comparação com as águas do entorno de outros portos ao redor do planeta pode indicar quais são as chances de ocorrer uma invasão biológica por aqui. É prevenir antes de remediar.
Os estados membros da IMO são encorajados a iniciar pesquisas biológicas nos portos e imediatamente divulgar os resultados. O levantamento de dados bióticos na área de influência dos portos é primordial para o conhecimento científico: microorganismos (bactérias e protozoários), plâncton (fitoplâncton, zooplâncton, ictioplâncton), bentos e nécton. 
Os países que assinaram a Convenção da ONU sobre o Direito do Mar já tinham uma preocupação com a introdução de espécies exóticas em ambientes marinhos desde 1982. Mas foi durante a Convenção da ONU sobre biodiversidade, em 1992, que essa idéia foi enfatizada.
No Brasil a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável aprovou (dezembro/ 2008) proposta que estabelece critérios e obriga navios que utilizam instalações portuárias brasileiras a inspecionar a água de lastro de seus tanques. As embarcações que desobedecerem ficam sujeitas a multas e sanções administrativas e penais segundo a lei 9.605/98, para os casos de danos ambientais; e pelo Decreto-Lei 2.848/40 nos casos de prejuízo a saúde pública.


Situação limite
Os critérios obedecem a um plano de gerenciamento de águas de lastro que inclui, dentre outras coisas: 1) Ações para diminuir a transferência de organismos aquáticos patogênicos; 2) Indicação de pontos para coleta; 3) Nome do oficial de bordo responsável pelo plano. Cabe às autoridades marítimas identificar e divulgar quais os pontos onde é proibida a descarga e a tomada de águas dos navios. Dentre os pontos proibidos estão os locais onde há descarga de esgotos, locais onde a maré turbilhona sedimentos e sistemas ecologicamente sensíveis.
É possível que no futuro algumas mudanças nos projetos de navios e tanques de lastro possam solucionar essas questões. Para os cientistas, a introdução de espécies exóticas é apenas uma das grandes ameaças aos oceanos. As outras são as eternas fontes terrestres de poluição marinha, alteração e destruição física do habitat marinho e a exploração desenfreada dos recursos biológicos do mar.
A verdade é que, tanto para as embarcações como para as próprias indústrias e populações costeiras, fazem dos oceanos e mares sua grande lixeira. Para a ONU e órgãos ambientais esta situação chegou no limite.