Provações filosóficas
16 de junho de 2010Na Semana do Meio Ambiente, as reflexões não-biocidas de um filósofo propositivo
“Somos um animal biocida em relação à vida”
Mais: convida a pensar sobre qual direção estamos tomando como sociedade: se a de novos rumos, que nos permitem abrir, não sem resistência, um grande leque de modos sustentáveis de estar no planeta, ou a das surradas escolhas nocivas, as quais Cortella apropriadamente denomina de “biocidas”. Nesta entrevista, o filosofo militante reflete sobre temas relacionados à sustentabilidade e à ética. A maneira como coloca suas ideias revela o porquê de o educador Paulo Freire ter dito que Cortella “é um dos poucos filósofos brasileiros que pensa o novo”.
ENTREVISTA – MÁRIO SÉRGIO CORTELLA
FMA – O senhor usa o termo sociedade biocida para qualificar a forma como a humanidade tem habitado o planeta. Esta é uma escolha coletiva consciente?
MARIO SERGIO CORTELLA – Nós, homens e mulheres, somos seres que em nossa evolução, isto é, em nossa trajetória de mudança, em um determinado momento que se corporificou por volta de dez mil anos atrás, nos distanciamos da determinação biológica e ganhamos um nível de consciência e de atividade que passou a nos permitir fazer escolhas. Ao nos “descolarmos” da nossa pura natureza, nós humanos ganhamos a possibilidade de sermos um animal deletério. Por escolha e juízo, optamos por ser destrutivo-predatórios.
FMA – O instinto de sobrevivência falou mais alto nesta escolha?
MARIO SERGIO – Evidentemente que há toda uma lógica da predação no mundo do equilíbrio natural relacionada à sobrevivência, mas uma coisa é a relação com a sobrevivência, outra coisa é o ser humano movido pela brutalidade da consciência, pelo egoísmo, pela escolha consciente de diminuir um outro ser vivo. São caminhos que tomamos como espécie, mas a grande esperança é que podemos deixá-los de lado. Por que se houvesse aí uma determinação biológica, atávica, não haveria alternativa. Nós, seres humanos, somos inclusive capazes de romper com a ideia, e direito estabelecido em nossa legislação, de legitima defesa, pois podemos, conscientemente, ficar quietos enquanto alguém nos machuca.
FMA – Somos livres para fazer escolhas, e isto parece ótimo à primeira vista. E quanto às escolhas incorretas que fazemos?
MARIO SERGIO – O problema é que ainda somos um animal biocida em relação à vida em geral e à nossa própria vida. Somos capazes de fazer o que já fizemos no passado e continuar criando, no século 21, com base em nossas lógicas ocidentais, a fazer megalópoles extremante biocidas onde nos habituamos a um ar apodrecido, ao rio apodrecido, à relação de convivência apodrecida. Nós nos habituamos, enquanto coletividade, ao putrefato, mas podemos nos habituar a uma nova realidade, onde predomina o perfume das flores, o abraço fraterno, a solidariedade sincera. Não podemos perder de vista que nossa ciência e filosofia são gregas, nosso direito é romano, mas a nossa moral é judaico-cristã. Ela parte do principio da escolha. Na lógica do judaísmo herdada pelo Ocidente, Adão e Eva fizeram o que fizeram porque assim o quiseram, e foram alertados quanto as consequências de sua escolha. Talvez o grande principio da escolha, e o que vai determinar se uma conduta será ou não biocida, seja aquele colocado um dia por um autor cristão, o judeu Paulo, que disse na primeira carta aos Coríntios da Bíblia: “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm”. Nosso desafio como civilização está em aceitar que, sim, somos seres humanos livres, mas cada um de nós não deve praticar o biocidio em relação a si mesmo, às circunstâncias e às múltiplas manifestações da vida.
FMA – Os avanços tecnológicos e científicos desafiam nosso modo de ver e pensar a vida, haja vista experiências como a clonagem, a eutanásia e a produção de sementes transgênicas, só para ficar em alguns exemplos.
MARIO SERGIO – O grande pensador Francis Bacon, no século 16, criou a frase “Saber é poder”. As discussões hoje travadas em torno de procedimentos, como a clonagem, são um convite, individual e coletivo, para pensarmos seriamente sobre a serviço de quem está o poder do saber e se esse saber precisa de mecanismos de controle social. Até 1990, antes da entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, quem detinha o pátrio poder tinha autorização legal para espancar uma criança, algo inadmissível hoje em dia. No Renascimento, a abertura de cadáveres iniciada pelo anatomista André Vesálio era um procedimento proibido porque era tido como violador da vida. Só a partir do século 18 a eutanásia passou a ser uma questão polêmica. Antes desse período, quem quer que tivesse conhecimento de alguém que sofresse, não tinha dilemas morais: ajudava a pessoa a morrer. Certo é que vamos sempre estar diante de dilemas e serão mais tranquilamente ultrapassados quanto mais sólidos forem os princípios que tivermos para responder a três perguntas fundamentais: Quero? E se quero, devo? E se devo, posso?