Dia Mundial da Água

Água, Educação e Cultura

21 de março de 2011

A literatura sobre a água é ampla, verdadeiramente fantástica e ajuda a escrever a história dos povos.

Educação é um processo muito amplo e está
ligado à cidadania, civilidade, boas práticas ecológicas, treinamento, gentileza e respeito.
Evidente que tudo isto também envolve a água.

Entrevista –  Raymundo Garrido

Folha do Meio – Água e educação é uma boa mistura?
Raymundo Garrido – Se é! Educação é um processo muito amplo e está ligado à cidadania, civilidade, boas práticas ecológicas, treinamento, gentileza e respeito. Evidente que tudo isto também envolve a água. Embora a educação seja maior do que a simples construção e transmissão de um conjunto de informações, para efeito prático vale uma abordagem no limite de questão relacionada aos recursos hídricos. De início um considerando, dada a importância da transmissão da informação no processo educativo. Tem que ser levada em conta a didática. Quanto mais clara e melhor apresentada esta questão, tanto mais eficientes a assimilação e o aprendizado.

FMA – O que o senhor chama de didática neste processo?
Garrido – É justamente como o processo de conhecimento sobre a água pode ser repartido: em duas dimensões principais: a da ocorrência desse recurso natural e a de sua utilização em tantos fins a que a água serve. Nessa análise, estão presentes, em ambas as dimensões, os aspectos relacionados com o espaço e o tempo.

FMA – Em outras palavras, para ficar mais claro…
Garrido – Como a questão água está presente na geografia e na história da humanidade. A geografia e a história da água na Terra começam juntas e vêm de longe, quando da formação do planeta e o estabelecimento do ciclo hidrológico, fenômeno pelo qual a água vive a cumprir um gigantesco percurso entre a Terra e a atmosfera passando pelas fases de precipitação, escoamento e/ou infiltração, evapotranspiração e, novamente, precipitação. A quantidade de água nesse ciclo é sempre a mesma, mudando apenas de estado físico e de localização.

FMA – Explique melhor estas mudanças.
Garrido – Essas mudanças no ciclo hidrológico foram ocorrendo, em certa medida, pela presença dos seres vivos, animais e vegetais, todos dependentes da água. O importante é que a essência do grande circuito hidrológico se manteve a mesma. Mais recentemente, na larga dimensão do tempo geológico, esse ciclo passou a sofrer perturbações visíveis em razão da ação humana e do aquecimento global.

FMA – Quando essas perturbações apareceram?
Garrido – A trajetória da vida humana mostra que a busca do bem-estar tem sido uma constante no procedimento das sociedades. Para tanto, o ser humano tem modificado o meio ambiente para produzir riquezas. Com esse comportamento, ele também impôs alterações significativas sobre os recursos da água, muitas de efeito positivo, outras deletérias. Essas alterações significativas é que são as perturbações sofridas pelo ciclo hidrológico. Elas têm início com a própria história do ser humano, mas somente começam a entrar na agenda de preocupações com os primeiros pensadores que contribuíram para a formação das correntes de pensamento econômico.

A Revolução Industrial trouxe muita  degradação dos recursos hídricos

FMA – E quando essas teses começam a aparecer?
Garrido – Essas doutrinas começam a tomar forma por volta de 1500 com o mercantilismo. Mas são os textos de David Ricardo e de Thomas Malthus, autores do período clássico, a partir de 1776, que vão apresentar os primeiros registros que demonstram a preocupação com o caráter finito dos recursos naturais da Terra.
No caso de Ricardo, o seu interesse pela questão da produtividade da terra é um primeiro sinal de que essa finitude não estava descartada, e, no caso de Malthus, são notáveis os estudos sobre a previsão do crescimento das populações em progressão geométrica em face do crescimento da produção de alimentos em progressão de razão aritmética. Bem mais tarde, na segunda década do século 20, viria Arthur Cécil Pigou a sugerir a cobrança de uma taxa sobre a emissão de poluentes emitidos, abrindo espaço para a precificação do uso de recursos ambientais. Este é o marco histórico que nos trouxe até a cobrança pelo uso da água do modo como é hoje. Veja que o crescente uso dos recursos hídricos é uma ação perturbadora do equilíbrio dos corpos d?água.

FMA – Está óbvio que a Revolução Industrial está inserida nesse contexto. Qual é o seu o papel?
Garrido – Realmente, a Revolução Industrial foi o momento inicial da intensificação dos processos agressivos ao meio ambiente. Especialmente a partir do período que convencionou-se chamar de Segunda Revolução Industrial, quando os processos fabris se sofisticaram com a invenção da eletricidade, a siderurgia e, já no final, os motores a combustão e os primeiros automóveis. A Revolução Industrial desempenhou um papel considerável na história do uso dos recursos naturais ignorando o processo de degradação.

FMA – Então a Revolução Industrial foi boa num sentido e péssimo em outro?
Garrido – É verdade. Nesse sentido de degradação, a Revolução Industrial representou um exemplo a não ser seguido. Por quê? Pela absoluta despreocupação com o descarte de resíduos sobre o ambiente. Pelo descaso com a vida do trabalhador e pela utilização desordenada dos espaços para a finalidade suprema da produção em busca do lucro. O sistema econômico trabalhava enfurecidamente em busca do lucro. Tudo estava subordinado ao lucro. Todas as demais preocupações, inclusive a preservação do meio ambiente, estavam fora de cogitação.

FMA – Ou seja, a preocupação veio quando se chegou ao fundo do poço…
Garrido – Isso mesmo. Quando as chaminés fabris se multiplicaram nas zonas urbanas de Londres e os descartes líquidos no rio Tâmisa e outros cursos d?água ingleses proliferaram aí vieram duas mortes terríveis: do bom ar e das águas.

FMA – Uma questão pedagógica: a educação científica compete com a educação prática no que diz respeito à água?
Garrido – É bom que elas se superponham. Aos que se dedicam às ciências, devem destinar-se ambas as facetas da educação: a científica e a prática. E aos que não necessariamente se relacionam com o estudo ou a atividade profissional científica, pelo menos a educação prática. No campo técnico-científico, a água se abre em uma ampla multi-disciplinaridade envolvendo importantes ramos do conhecimento como as diversas denominações da Engenharia, Geologia, Economia, Direito, Medicina, Sociologia, Administração. Na verdade, toda uma gama de ciências que derivam dos campos do conhecimento mais diretamente relacionados com a água.
 
FMA – E como isto se desenvolve?
Garrido – Isto se desenvolve de maneira ampla. Desenvolve-se nesse espaço do conhecimento, metodologias, processos e tecnologias que vão desde ações gerenciais sobre como mais adequadamente utilizar a água, passando pela busca de soluções sobre como arbitrar conflitos e estendendo-se até a criação de técnicas sofisticadas como, por exemplo, a dessalinização da água, o seu represamento, o seu transporte a distância, e muito mais.
 
FMA – E a educação prática que o senhor falou anteriormente?
Garrido – A educação prática para a água deve alcançar a todos inclusive os que se dedicam às ciências. Nesse contexto, ganham importância os trabalhos realizados pelos comitês de bacia, tema já explorado numa entrevista anterior à Folha do Meio Ambiente. E, mesmo fora dos comitês, destacam-se trabalhos relacionados com a capacitação para o gerenciamento hídrico, seja em grupos escolares, prefeituras, paróquias e templos, instituições de classes, clubes de serviços, empresas, ONGs, todos imbuídos da ideia de difundir as noções básicas sobre como utilizar racionalmente a água. Importante, também, nesse mesmo espaço de ação, é a formação de multiplicadores que são as pessoas que difundirão o conhecimento no seu dia-a-dia, promovendo a necessária mobilização em favor do conhecimento sobre a boa relação do ser o humano com os recursos hídricos, uma importante faceta da ética ambiental. Conforme se pode observar, os processos educativos científico e prático atuam mutuamente, um preenchendo as lacunas do outro.

FMA – Como organizar melhor o conhecimento sobre a água para melhor disseminá-lo?
Garrido – Já o disse na resposta anterior, mas vale complementá-lo. A água, por sua ubiqüidade, é objeto do interesse de praticamente todos os ramos do conhecimento dos setores institucionalmente estabelecidos.
Veja bem: a água, difere, por exemplo, da  cirurgia que só interessa ser estudada na medicina. Ou da resistência dos materiais, que só interessa aos estudos da engenharia, a água é um tema presente em todos os redutos do conhecimento humano. Em face dessa característica peculiar, não deve haver uma receita única para a disseminação do conhecimento sobre a água.
O que importa é que os objetivos em cada campo do conhecimento sejam alcançados e somente pelo concurso de técnicas de ensino dirigidas para os fins que interessam em cada situação é que se pode organizar melhor o conhecimento sobre a água.

FMA – Mas, hoje as propostas no ensino não são mais particularizadas? Engenheiro tem saber tudo de hidrologia. Os advogados de conflitos sobre água?
Garrido – Mas é isto mesmo. Hoje já se sugere a organização do ensino sobre a água a partir de determinados prismas. Por exemplo, os geólogos colocando no centro da questão o estudo dos aqüíferos. Os engenheiros com um olhar mais firme sobre a hidrologia que, em sua visão, deve ser o carro-chefe. Os advogados com o interesse centrado no direito da água, e assim por diante.

A água, por sua ubiquidade, é objeto do interesse de praticamente todos os ramos do conhecimento dos setores institucionalmente estabelecidos.

Recursos hídricos ou água: qual a diferença conceitual

Em geral são propostas boas, mas com visões do tema água em grande medida específicas de cada ramo do conhecimento. A verdade é que organizar o conhecimento sobre a água implica a participação de todos. Essa tarefa continua desafiando educadores, governantes e tantos outros agentes que precisam implementar ações educativas.
 Nesse sentido, o princípio dos usos múltiplos da água veio para comandar o processo organizativo, não só da gestão, como também da estruturação do conhecimento sobre a água para fins educacionais.

FMA – Uma explicação: às vezes falamos água e às vezes recursos hídricos. Qual o sentido mais profundo dos dois termos na transmissão de conhecimento?
Garrido – Está aí uma boa questão. Nos nossos dias, o conceito de água transita de bem natural para recursos hídricos e volta a bem natural em uma mesma conversação sem que os interlocutores muitas vezes sequer se apercebam da diferença entre os significados dos dois termos. Mas há uma diferença. De modo simplificado, a substância água é sempre um bem natural para o qual está reservada alguma função social. Entretanto, quando, para a função social a que se deva destinar a água, houver prenúncio de escassez, mínima que possa ser, a água é considerada, também, um recurso econômico produtivo, situação em que cabe a denominação recursos hídricos.
O crescimento das sociedades levou a que vários diferentes usos da água passassem a competir por este recurso natural. É nesse cenário que floresceu o princípio dos usos múltiplos da água. Assim, também se poderia dizer usos múltiplos dos recursos hídricos, que é o  ponto de partida para a repartição harmônica dos volumes a serem utilizados. É essencial que se diga que, quando a referência é feita aos recursos hídricos, está-se tratando de um fator de produção para a análise técnica e econômica. Esses comentários são indicativos de que tratar do tema da água ou do tema dos recursos hídricos vai do contexto em que o diálogo ou a análise se situe.

FMA – Mas aí, professor, não chega a ser um exagero considerar a água como bem econômico já que a água é um bem social?
Garrido – O conceito de bens e serviços econômicos implica uma série de aspectos que compõem o estudo da economia. Entre esses aspectos, inclui-se aquele que costuma ser equivocadamente entendido como o conteúdo total das ciências econômicas, que é o pecuniário, o qual está intimamente relacionado com a formação de preços. Mas a economia não se restringe aos aspectos monetários exclusivamente.
Há também a economia real que inclui a produção e a distribuição de bens e serviços. A economia real então abrange a dimensão tecnológica, cultural e social sendo que, nesta última, se inserem as preocupações ambientais que, normalmente se apresentam sob a forma de externalidades, positivas ou negativas.

FMA – Mas ainda há muita confusão e pouca distinção destes conceitos, não é?
Garrido – Mais do que confusão, há equívocos mesmo. Aliás, esses pontos fazem parte do processo educacional. De fato, a gente escuta muitos comentários que separam o econômico do social como se o primeiro fosse estritamente monetário e, conseqüentemente, dissociado deste último.
Esse equívoco parece generalizado, pois a verdade é que o caráter social dos bens e serviços está necessariamente embutido na análise econômica. Assim, ao ser catalogada como bem social, a água está sendo classificada, também, como bem econômico.


FMA – Como um bem a que todos devem ter acesso seguro, não está aí um aspecto importante da educação?
Garrrido – Definitivamente! Como a água é fonte de vida e todo o cidadão tem direito à vida, resulta que todo o cidadão tem direito à segurança hídrica. Esse tem sido um debate que já vem de duas décadas e que tem ocupado a agenda de governantes, sobretudo em relação aos países com grandes disparidades sociais, mais especificamente com um olhar sobre as populações pobres. Vamos deixar claro. Esse é o papel da educação. Ela é a mais potente arma de cidadania não só para vencer o problema de acesso à água quanto do acesso a uma renda digna.

FMA – Vamos a uma questão prática. Como educar, o que um jovem deve saber sobre a água?
Garrido – Não são muitos conceitos, mas alguns são básicos. Em primeiro lugar, conhecer a geografia da região é fundamental. Nesse conhecimento, algumas características básicas das bacias hidrográficas devem ser apreendidas. Bacia abundante ou escassa, a existência ou não de aqüíferos que possam contribuir com o aprovisionamento de água e, também, as atividades predominantes com o destaque das que são intensivas em uso da água. Além da inserção da bacia no ambiente do(s) Território(s) de Identidade a que pertence.
São informações básicas. Mas educação tem uma característica importante: quanto mais se estuda, mais se quer estudar e aperfeiçoar. E aí tem muitas questões que vêm como que em cascata…

FMA – E o que são os Territórios de Identidade?
Garrido – Trata-se de um conceito absorvido da geografia humana e já utilizado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário em contraposição ao conceito de regiões econômicas.
Os Territórios de Identidade são grupamentos de municípios que apresentam problemas similares e cujas populações têm expectativas de desenvolvimento comuns com as quais a maior parte dos habitantes se identifica.
É extremamente útil para compreender o papel que os recursos hídricos desempenham em cada região. Educar-se a partir do conhecimento da bacia hidrográfica, que é a unidade de planejamento, em articulação com o Território de Identidade é uma maneira mais abrangente de enxergar as questões da água.
É, também, uma forma de disciplinar o que precisa ser assimilado já que a continuação do conhecimento vai encontrar uma grande fragmentação pelas muitas e distintas abordagens que são feitas nos diversos cursos e disciplinas onde a água comparece.

FMA – Por que o conhecimento sobre a água é fragmentado?
Garrido – A história também consegue explicar esse fenômeno. Em primeiro lugar, o utilitarismo comandou o processo do uso dos recursos da natureza. Com o tempo, o ser humano buscou aumentar a produtividade nos modos de produção e este intento foi se refugiar nas noções da especialização do trabalho, que dividiu tarefas e estudou-as elementarmente para que se pudesse produzir mais com menos recursos aplicados.
Aliás, a Revolução Industrial mais uma vez vem à baila, pois é de Adam Smith, um dos grandes da doutrina clássica da economia, praticamente toda a conceituação da divisão do trabalho. Essa divisão do trabalho reforçou o conceito de disciplinas, fragmentando o conhecimento existente e a produção do conhecimento novo.

———————————————————–

ASA BRANCA
( Luiz Gonzaga
 Humberto Teixeira )

Quando oiei a terra ardendo
Qual a fogueira de São João
Eu preguntei a Deus do céu,ai
Por que tamanha judiação

Que braseiro, que fornaia
Nem um pé de prantação
Por farta d'água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão

Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
"Intonce" eu disse adeus Rosinha
Guarda contigo meu coração

Hoje longe muitas légua
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortar pro meu sertão

Quando o verde dos teus óio
Se espanhar na prantação
Eu te asseguro não chore não, viu
Que eu vortarei, viu
Meu coração

———————————————————–

Literatura e águas andam juntas


FMA – Como se pode associar o tema da água ao tema da cultura?
Garrido – Os hábitos e a cultura de uma sociedade são moldados por diversos fatores. A água, por sua abundância ou escassez, constitui um desses fatores.
 Vamos aos exemplos. Em um país que tenha pouca água, mas conte com generosas quantidades de petróleo, seus cidadãos, e o próprio mercado, valorizam muito mais uma garrafa d?água do que um litro de gasolina. Mesmo que há sobra de dinheiro para importar água.
Nessas mesmas circunstâncias, a mídia e os cidadãos dão muito mais atenção ao petróleo do que a água nas relações internacionais justamente porque o petróleo é matéria prima presente na maioria das pautas de exportações de todas as nações, o que não ocorre com a água.

FMA – Ou seja, se um país tem muita água, tem a cultura da abundância. Se tem pouca, tem a cultura da escassez…
Garrido – Exatamente. Em regiões sem água e sem petróleo, para ficar no exemplo que envolve o petróleo, a água molda com contornos ainda mais fortes a cultura do povo. Basta um olhar mais atento para a água de um espanhol da meseta central ou andaluz ou de um habitante de Israel. Aqui no Brasil, de um cearense. O cearense tem a cultura moldada pela escassez de água. No Ceará, na mesa do governador se vai encontrar uma estação de trabalho que informa, em imagem de tempo real, os dados de tempo e clima de todo o Estado. É a expectativa, claro, de boas chuvas.

FMA – Faz sentido, isto não vai acontecer com o governador do Amazonas…
Garrido – E isto vai entrando na cultura de cada povo. O Ceará é o estado com maior porção de território no ambiente da seca. E de secas severas. O cearense aprende desde cedo que o tempo só é bom quando chove, contrariamente à expressão popular que se usa para falar de tempo bom, que é um dia ensolarado para o lazer externo.

FMA – Estou pensando aqui como a água – na abundância e na escassez – faz parte da literatura, do cinema, da poesia, das artes plásticas, do teatro. Rachel de Queiroz se lançou como escritora com "O Quinze". Vidas Secas? de Graciliano Ramos. "Morte e Vida Severina", de João Cabral. Enfim, sem água as pessoas, os amores e a esperança seca…
Garrido – Muito bem lembrado. Isso desde a Antiguidade. Quanta mística em torno dos Egípcios e o rio Nilo, da Mesopotâmia dos rios Tigre e Eufrates, do rio Jordão e o batizado de Jesus…
Enfim, o tema água é um argumento recorrente na literatura. Sabe por quê? Simples, porque tem relação direta com o viver. Na abundância e na seca, a água tem relação com vida, com o sofrimento ou alegria. Fartura ou escassez.
As grandes obras literárias têm relação com a seca e com a fome. Com a biodiversidade. Desde as 7 pragas sobre o Egito, de Moisés atravessando o deserto, até o nosso Luiz Gonzaga cantando ?Asa Branca?. Só este tema água e a literatura dá um tratado. Mais do que um livro.
Aqui falamos de algumas obras mais importantes, mas e se formos buscar escritores e pensadores iniciantes que produzem peças, músicas e livros hoje com este tema? É algo fantástico!

FMA – Puxa, o senhor desenrolou um tema que desce igual cachoeira…
Garrido – Pois é, no Ceará a água entrou até no humor, aliás um outro traço cultural forte por lá. E não é que dia o sol foi vaiado em plena praça pública? Há mais de 60 anos, o fato ocorreu na Praça do Ferreira.
Foi nos primeiros dias de janeiro, quando as chuvas que caíam fora de época, em Fortaleza, foram interrompidas pelo sol pelas 9 horas da manhã. Um imenso sol! Não deu outra: houve uma convocação geral de comerciantes e humoristas para se dirigirem à Praça do Ferreira. E foi organizada uma sonora vaia ao Astro-Rei.

FMA – É verdade, na abundância e na escassez a água não escapa do dia-a-dia das pessoas…
Garrido – Daí, compreender o papel da água é, portanto, uma questão também de ordem cultural, o que faz com que o binômio água e cultura ocupe importante espaço na agenda de debates.
A relação homem-natureza depende de vários fatores, entre estes, em certa medida, a história que a água escreveu nesse ou naquele território. Nesse ou naquele tempo. Essa relação vai se incrustando na cultura local.

FMA – Que outros episódios poderíamos associar água e cultura?
Garrido – Para ficar no plano da escassez, a gente pode lembrar, por exemplo, o caso de Israel que, para abastecer Tel Aviv, aduz água do rio Jordão. Depois de utilizada, trata os esgotos produzidos, purifica-os parcialmente injetando-os no sub-solo. Tempos depois, os efluentes são devolvidos rio Jordão. A prática do re-uso da água faz há muito tempo parte da cultura local.
Como se pode ver, a água está presente na cultura de povos que sofrem de escassez. Outro exemplo é a Califórnia. Estado rico e seco de um país capitalista. Onde quem manda é o mercado. Daí o que foi feito? Há alguns anos, a Califórnia criou um banco da água para permitir transações entre seus usuários. São exemplos que, evidente, modelam a formação de quem nasce e vive ali.
Tem um fato interessante que vale lembrar. Em 1961, quando a notícia da renúncia de Jânio Quadros chegou a Israel, o então premier, Ben Gúrion, questionou na imprensa: como é possível renunciar o presidente de um país que tem tanta água como o Brasil? Ou seja, um país sem problemas…

FMA – Filosoficamente, tem, também as comparações entre a vida e a água. Exemplos para auto-ajuda…
Garrido – É verdade, a começar pela água benta que traz energia espiritual. O batismo com água. Além de outros papéis subjetivos que a água pode ensinar. Por exemplo: perseverança é a primeira delas, já que as águas do leito de um rio só se movimentam para frente. A perseverança de se chegar ao destino: o mar.
A segunda circunstância reside no fato de que a água só se movimenta com a gravidade. Sempre buscando o seu chão. Isso pode traduzir firmeza, pés no chão. A terceira circunstância está em que a água, quando agredida, responde silenciosamente apresentando-se, logo em seguida, como água conspurcada, como que a dizer que, neste estado, não pode mais útil à vida.
A desutilidade da água suja é um prejuízo. Há o ensinamento da preservação. A quarta circunstância resulta de a água constituir grande parte do organismo humano: nesse sentido, ela é fonte de vida.

FMA – Mas o ser humano, por ser racional, pode tirar proveitos dela…
Garrido – Evidente. Mas veja quão valiosa ela é e quantos significados ela tem. A água só não é maior do que o homem que pode domesticá-la, construindo barragens para formar reservatórios e gerar energia, aumentar a piscosidade, irrigar campos, potabilizá-la e bebê-la, navegar, minerar, diluir substâncias que precisam ser abatidas em seu poder de agressividade, transformar produtos industrialmente e tantas outras maneiras de colocá-la a operar em favor de seu bem estar.
 Mas, em muitos episódios, o homem fica menor do que a água: é quando ele a polui ou a desperdiça. Para essa atitude menor, há um único e eficaz remédio: a Educação.

 Em muitos episódios, o homem fica menor do que a água: é quando ele a polui ou a desperdiça. Para essa atitude menor, há um único e eficaz remédio: a Educação.