O canto das horas
21 de março de 2011“Já não penso nos relógios como algemas torturantes ou antipáticos lembretes de obrigação e pressa. Os pássaros recordam que o tempo existe na natureza muito antes de ser distorcido pela vida urbana”. Ora, o tema em questão é justamente sonoro e inefável. Mas não se concentra num artista ou obra particular. Ao contrário, espalha-se por… Ver artigo
“Já não penso nos relógios como algemas torturantes ou antipáticos lembretes de obrigação e pressa. Os pássaros recordam que o tempo existe na natureza muito antes de ser distorcido pela vida urbana”.
Ora, o tema em questão é justamente sonoro e inefável. Mas não se concentra num artista ou obra particular. Ao contrário, espalha-se por muitos cantos, muitas aves dispostas num rodízio mágico. Estou falando de um relógio, presente que ganhei da Folha do Meio Ambiente.
É um objeto circular, com desenhos de pássaros correspondendo aos números. A cada hora, ouve-se por alguns segundos um canto típico, seja do uirapuru, do galo-de-campina, do curió ou de tantos outros bichos que jamais entrariam por minha janela e agora, milagrosamente, povoam minha rotina.
Lembro quando voltei da viagem e achei o lugar ideal para o relógio. Fiquei como criança, contemplando os desenhos curiosos – o penacho do quero-quero, a plumagem da juruva – enquanto esperava que os ponteiros se aproximassem. Em minutos, o corrupião cantou, marcando o meio-dia, e a cozinha se encheu com o trinado do Hino Nacional. Meus gatos correram por todos os lados, procurando a presa invisível por debaixo das cadeiras ou em cima dos móveis. Demorou até que eles percebessem que os pássaros moravam dentro do relógio.
Os piados, assovios e gorjeios eram tão vivos que de fato os animais pareciam estar ali. Houve até uma vez em que o relógio ficou mudo, “saltando” o registro de um dos pássaros e, antes que eu trocasse as pilhas, cheguei a pensar se de fato um dos bichos não tinha sumido, ou fora engolido por um dos gatos – hipótese absurda… mas nem tanto, se pensamos que se tratava de um sabiá, dentro de uma casa em que reina a ficção.
Hoje, depois de meses de convívio com o relógio cantante, posso dizer que fiz as pazes com esta categoria de objetos. Já não penso nos relógios como algemas torturantes ou antipáticos lembretes de obrigação e pressa.
Os pássaros recordam que o tempo existe na natureza muito antes de ser distorcido pela vida urbana; é por isso que o meu relógio silencia, à noite. Deve ter um sensor que desliga, quando não há luz – mas prefiro pensar que as aves se aninham num abrigo imaginário, dentro das engrenagens. Em algum lugar do país, elas de fato dormem, naquele momento; e apesar de que no dia seguinte eu as ouvirei novamente, de hora em hora, o melhor de tudo é saber que nenhuma delas está de fato ali, presa por uma gaiola.
(*)Tércia Montenegro é
escritora, fotógrafa e professora
da Universidade Federal do Ceará. Blog de Tércia Montenegro: http://literatercia.blogspot.com
Dalgas Frisch é autor de vários livros e o criador do relógio que que marca
o tempo com o cantos
dos pássaros
Para saber mais:
www.avesbrasileiras.com.br