Porto Alegre: cidade em guerra contra as bicicletas

29 de abril de 2011

Atropelamento proposital ao grupo Massa Crítica, que defende o transporte limpo, foi o mais recente e duro golpe ao ciclismo urbano na capital gaúcha

Testemunhas contam que o condutor do Golf preto xingou os ciclistas, os ameaçou acelerando e, como não abriram espaço – afinal, essa é a proposta do movimento: chamar a atenção dos motoristas ?, simplesmente passou por cima, arrastando quem não conseguisse sair do caminho a tempo. Dezenas de ciclistas caíram, 17 ficaram feridos, oito precisaram ser levados ao Hospital de Pronto Socorro e dois sofreram fraturas.


 


Politraumatizado, Marcos Rodrigues, 27 anos, vive da bicicleta, que ficou destruída: é sócio da empresa de bike-entregas Pedal Express (PedEx). O jovem bateu a cabeça e chegou a ficar inconsciente. ?Ele usou o carro para ameaçar os ciclistas. Podia ter saído em qualquer esquina. Não tem nenhuma explicação. Foi um ato hediondo e esperamos que a justiça seja feita?, contou. Já Ricardo Ambus, 23, teve um braço quebrado e levou pontos na cabeça. Alguns dias após a atentado, ele ainda voltou ao hospital com dores e tonturas e foi diagnosticado com hematoma intracraniano. Ninguém morreu por sorte.


 


Lista de imprudências


O proprietário e motorista do carro é Ricardo José Neis, 47 anos, funcionário de confiança do Banco Central e com longa ficha de infrações de trânsito. Entre julho de 2009 e dezembro de 2010, foi multado cinco vezes: por ultrapassar em local proibido, excesso de velocidade, conduzir sobre a calçada, dirigir em marcha a ré por um longo trecho e, a mais leve, conversão proibida. Ele também tem uma queixa na Delegacia da Mulher por agressão contra a ex-namorada: Neis teria perseguido a moça com uma machadinha que leva embaixo do banco do carro.


 


Golpe contra os ciclistas


O que parece ser apenas mais um caso de polícia é na verdade um novo golpe contra o ciclismo não só em Porto Alegre, mas em todas as grandes cidade brasileiras. A intolerância é geral. No caso gaúcho, não bastasse o atropelamento, naquela mesma noite, o diretor da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), Vanderlei Capellari, chegou a classificar o passeio ciclístico como ?irregular?, pois o órgão não teria sido avisado da atividade que interfere no trânsito de automóveis – e que ocorre mensalmente. Ou seja, para a EPTC as vias servem apenas para os carros, ignorando o próprio Código de Trânsito Brasileiro, que determina que veículos motorizados e bicicletas tenham livre direito de transitar pelas ruas. E é dever dos condutores dos veículos maiores respeitarem e primarem pela segurança dos menores e pedestres.


 


Apenas 16 dias depois, um novo atropelamento voltou a ocorrer na capital gaúcha. Dois ciclistas foram levantados por um Tempra branco quando pedalavam num domingo à tarde próximo ao meio-fio, no bairro Sarandi, na zona norte. Eles foram levados ao hospital e se recuperaram dos ferimentos. A polícia constatou que o dono do veículo, Edmilson Vieira de Moraes, 45 anos , não possui carteira de habilitação e está em liberdade condicional. Não é possível afirmar que ele estivesse ao volante, mas até o fim de março não foi encontrado.


 


Multas


Enquanto o número de feridos em acidentes envolvendo ciclistas aumentou de 293, em 2009, para 322 no ano passado e, apenas em janeiro e fevereiro de 2011, Porto Alegre já contava 38 vítimas, a quantidade de multas é praticamente inexistente. Até fevereiro deste ano, a cidade registrava uma única penalidade a motorista por ultrapassar um ciclista sem respeitar a distância mínima de 1,5 metro. A multa foi aplicada por uma policial militar que trabalhava de bicicleta.


 



 


BOX 1


 


Massa Crítica


O movimento Massa Crítica começou em 1992 em São Francisco, Estados Unidos, como uma forma de pedestres e ciclistas se manifestarem e buscarem soluções para o caos no trânsito. Hoje, há diversos grupos pelo mundo, que se organizam para pedalar por pontos movimentados das cidades, mostrando como o ciclismo, além de limpo e barato, pode ser divertido e saudável. É uma celebração da bicicleta como meio de transporte. Sem hierarquias, os encontros são marcados pela internet, de forma horizontal, dando o mesmo grau de importância a todos os membros do grupo.



 


 


Reserva de espaço para bikes


 


Enquanto não houver tolerância dos motoristas, apoio dos serviços públicos e reserva de espaços para bicicletários, os confrontos vão continuar. O que não é bom para o trânsito, para a sociedade e para o meio ambiente. Para a deputada federal Manuela d’Ávila (PCdoB) o caso de Porto Alegre é, além de tudo, um desrespeito à lei. Quando foi vereadora em Porto Alegre, de 2004 a 2006, ela apresentou o projeto que prevê a instalação de bicicletários em todos os prédios municipais, o que nunca foi cumprido. Na Câmara Federal, Manuela também apresentou o PL 3437/08, que tornaria ?obrigatória a reserva de espaço para estacionamento gratuito de bicicletas em toda área pública e privada que gere tráfego de pessoas e veículos? e que segue em tramitação.


 


?Não existe a aplicação da lei dos bicicletários?, concorda a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL). ?Há a necessidade urgente, imediata, de uma campanha de educação para o trânsito, tanto para a prefeitura quanto para os cidadãos, que passe pela valorização e respeito dos ciclistas e pelo cumprimento do Código de Trânsito, no que se refere ao tema de que o veículo motorizado é o responsável pela segurança dos ciclistas, dos pedestres e das carroças?, defende a parlamentar, que cobra da administração municipal a implementação imediata do Plano Diretor Cicloviário, já aprovado pela Câmara de Porto Alegre.