Série Expedição Américo Vespúcio 10 anos - 2

VEIOS DE ÁGUA

22 de novembro de 2011

Lendas do rio São Francisco e outras histórias

O Velho Chico atravessa a Bahia
Corre com águas por outras terras
Com água que mata a sede
Com água que dá comida
Com água que permite o plantio
O Velho Chico dá dinheiro
À gente da região
Tem amor e pede proteção.
O Velho Chico continua
O seu percurso por este mundão
Vejo o meu rosto refletindo no rio
Oh Deus! O rio é uma riqueza
Oh!… Salva vidas e vidas
O Rio São Francisco é nosso”.
(Boca do povo)


Em toda região do Velho Chico, as lendas correm mais velozes que o vento, mas é possível ouvi-las quando se anda nos altos das serranias cobertas de brumas. Dizem que ficam grudadas na 365ª prega da saia de pregas de uma velha de 99 anos, como li naquele velho livro de lendas. Esta a seguir vem na voz de Lico Paiva, um velho pescador de Iguatama-MG.


ERA UMA VEZ…


A lagoa de Inhumas e todas as outras suas irmãs rio acima e rio abaixo, foram escavadas quando Deus fez o mundo. A terra retirada foi amontoada mais acima, surgindo assim a serra da Canastra. E das suas entranhas, de dentro das pedras e dos capins que se formaram, brotou um jequitibá gigantesco. E as suas raízes eram tão fortes e profundas que buscavam a água dos veios. Assim, dos veios de diamantes brotaram veios de água cristalina. E do maior veio junto às raízes da mais alta árvore nasceu o rio São Francisco que rolou, rolou e caiu na Casca d?Anta rumando para o mar, tão longe que ninguém sabe onde fica. De outro veio na vertente contrária, em meio aos diamantes e às raízes como garras, nasceu o rio Santo Antônio. Do outro lado, no Planalto do Araxá, brotou dos veios e das raízes de frondoso ipê, o rio Samburá. Para trás, contrário a todos os outros, de outras vertentes, fluíram o Araguari e o Paranaíba, que se juntaram mais abaixo até desaguar no rio Paraná. Foi assim que das folhas minou o orvalho e derreteram dos capins as geadas, que rolaram pelos flancos das escarpas, formando as cachoeiras que despencam pelos precipícios num eterno, cristalino e doce murmúrio.


Nascente da Casca d`Anta


A Casca d’Anta é uma cornucópia de riquezas. Sobre a origem do nome Casca d’Anta, a onírica cachoeira que despenca do alto dos seus 186 metros, correm várias versões. Vamos à primeira, do sábio francês St. Hilaire que ali passou em lombo de mulas vindo de São João del Rey no rio das Mortes [sic]: “O S. Francisco deve sua origem à magnífica cascata denominada cachoeira da Casca d’Anta (a árvore conhecida pelo nome de casca d’anta é o Drymis granatensis dos botânicos), que se despenca por cerca dos 20°40′ , da Serra da Canastra, montanha situada na parte oriental do rio das Mortes”.


Uma outra versão diz que as pedras da cachoeira se parecem com a cor escura do casco da anta. Outra diz que os bandeirantes surpreenderam um bando de antas banhando-se no local. Umas, estendidas nas pedras e outras nos matacões. Uma outra afirma que as antas foram surpreendidas descascando árvores próximas que as curavam de males, daí Casca d’Anta. Mas, também, casca é desinência de cascata, cachoeira ou queda d’água, do mesmo modo que se diz d’anta, da anta, comum no português arcaico: cascata da anta, derivou casca d’anta.


Acredito em cada uma em particular e em todas ao mesmo tempo, uma vez que retratam o mesmo paradisíaco lugar. As crianças desde cedo ouvem os pais contarem que o “arco da velha” (arco íris) bebe água no rio São Francisco despejando-a na lagoa de Inhumas, onde tem um poço encantado, que atraiu pessoas que tinham visões. Alguns viam uma santa. Padre Dante Maria Pozzi viu uma cabeça de burro. Eu nada vi. Era criança. Nesse ecossistema, ainda existem aves aquáticas, jacarés, sucuris e revoadas de pássaros, que atraíram a pesquisadora suiça Anita Studer, da Fundação Nordestá.


Histórias de rio e de gente. O pescador Lico Paiva contava casos parecidos, ele sabia a mania de cada bicho do mato, e sua fértil imaginação criava histórias fantásticas. Ele vivia num rancho de sapê de duas águas à beira do rio em Marialves, sujeito às cheias anuais e só assim visitava sua casa de alvenaria na rua da Ponte. Sua mente era povoada de rios e riachos, montanhas, peixes e bichos fantásticos, assim era o imaginário daquele homem rústico. Cada um e cada rio tem a sua lenda. O São Francisco tem muitas. (GG)