IV - Série Expedição Américo Vespúcio - 10 anos

O Ribeirão dos Patos e o São Miguel

16 de fevereiro de 2012

Lendas do Velho Chico e outras histórias

ERA UMA VEZ…


Percorrer as estradas de terra cruzando os primeiros afluentes, vem atraindo ecoturistas que buscam novas paisagens, horizontes, realidades e histórias…


No início dos tempos o rio São Miguel corria onde hoje fica a Bocaina e a Pedra Grande. A nascente é a mesma, perto da gruta do Mastodonte. Naqueles tempos remotos o São Miguel caía no Ribeirão dos Patos. Hoje eles banham os municípios de Arcos, Iguatama e Pains. Nessas remotas eras eles eram dois rios fartos de peixes e riquezas da terra. Os índios viviam da coleta de frutas, folhas e raízes de espécies que só eles conheciam. Comiam formigas, gafanhotos, larvas do solo e de pau podre, e tantas coisas que eles apreciavam. Plantavam em seus roçados a mandioca, fermentando o cauim. Cantavam e dançavam seus cultos, viviam felizes.
Um dia um velho cacique que dominava aquelas terras, sentindo que ia partir, deixou as duas metades do rio para seus dois filhos. Mas tão logo o velho cataguá morreu, eles se desentenderam pela posse da barra do rio que cada um dizia ser sua, e ficava na altura do Jatobá e Marins. Não chegando a um acordo, eles viram aterrorizados raios riscarem os céus, os rios levantarem como serpentes enfurecidas até as nuvens, e mudarem de curso. Desde então o Ribeirão dos Patos corre paralelo ao São Miguel em meio aos maciços calcários, submergindo em cavernas com estalactites, estalagmites e outras maravilhas e reaparecendo mais adiante, até caírem no São Francisco.
Desse tempo restou uma linha de ressurgências onde nascem os córregos do Atalho, Doce, Marins e tantos outros. Uma região cênica em meio a uma das áreas minerárias mais devastadas do país, a destruição pela destruição. É em Marins que tenho uma mata escura povoada de tamanduás, macacos, tucanos, pássaros, répteis, aranhas e cipós, uma RPPN.


Arqueólogos da UFMG resgataram, em 2007, uma urna indígena em Iguatama.


Itapecerica é a cidade-mãe das cabeceiras do São Francisco, a décima mais velha cidade mineira, onde situa-se a Aldeia Indígena Muã Mimatxi. Pinturas rupestres e achados arqueológicos como utensílios, ossadas e urnas funerárias em Iguatama, Arcos e Pains comprovam a existência de tribos na região. Esses achados autóctones pertencem aos municípios onde são encontrados e assim devem ser considerados. Sabemos que Iguatama perdeu urnas funerárias indígenas para um município vizinho, e todos os esforços serão envidados para recuperá-las.
Velhos fazendeiros como Mário Doutor e Neca da Barra levavam seus rebanhos para as pastagens na Canastra no período chuvoso, uma atividade chamada transumância. As boiadas desciam dos altos da Canastra passando em frente a nossa casa, uma fazenda suburbana que dava a frente para a rua que desemboca na ponte da Carranca. A poeira levantada por aqueles mil bois tudo cobria como a neblina das frias manhãs. A boiada era embarcada na estação de Garças de Minas para o Rio e frigoríficos em Campo Belo. Ainda hoje essas áreas contíguas são desprovidas de vegetação devido ao forte pisoteio.
Cada lugar tem seu Dom Quixote. Arlindo Barbosa contava casos exagerados de onças, engenhos, tempestades. Como aquele em que o raio caindo, entrou pela torneira e o perseguiu casa adentro, só saindo quando abriu esbaforido a janela e o corisco caiu numa velha árvore do descampado. Meu pai dava pouso na fazenda Marins aos forasteiros. Abel aparecia com um carneiro chifrudo levado por uma corda curta. Preferia dormir no paiol, onde podia dar boas espigas ao animal lanudo e chifres recurvos. Já o português Abílio tocava uma manada de perus cada vez mais numerosos, embarcados na estação de Garças para as festas de fim de ano no Rio de Janeiro.
Percorrer as estradas de terra cruzando os primeiros afluentes do rio São Francisco, vem atraindo ecoturistas que buscam novas paisagens, horizontes e realidades, ouvindo histórias que hoje perderam o sentido em meio a tanta informação. Mais além ficam os divisores do rio Grande em Capitólio, São João Batista do Glória, Delfinópolis e Sacramento, um subir e descer por estradas curvas de terra batida, cujos cenários parecem saídos de filmes iranianos.
Quem se deslocar até a Canastra saindo de Iguatama por Bambuí pela Ponte da Carranca na margem esquerda, e retornando pela direita por Piumhy (topônimo com mais de mil grafias diferentes) percorrerá o circuito das Dez Cidades-Mães do São Francisco. Paisagem do homem palmeriano, saído dos romances Chapadão do Bugre e Vila dos Confins, de Mário Palmério. Histórias, de onças e zagaias, do rio que passa na minha aldeia.