VI - Série Expedição Américo Vespúcio - 10 anos

As três Marias

22 de abril de 2012

Lendas do Velho Chico e outras histórias

 

“As três Marias foram para as corredeiras quando abriu-se uma tempestade e no regaço das águas revoltas nas pedras nunca mais foram vistas. Um dia as ilhas desapareceram com a construção do lago, ficando a barragem e a cidade conhecidas como Três Marias: Marisol, Marilu e Maristela”.
 
O rio Borrachudo nasce no município de São Gotardo, a uma altitude de 1.125m. Deságua no reservatório de Três Marias, após um percurso de 230 km. Emparedado pelas sub-bacias dos rios Indaiá e Abaeté, a cidade de Matutina é a única existente na sua bacia. Tão pequena como Vargem Bonita, São Roque e Medeiros nas cabeceiras do Velho Chico e Samburá, a uns bons 600km.
Barbara Johnsen sabe as lendas de cor e chora quando fala sobre a extinção das veredas e buritizeiros. Ela contou sobre Rosa, Andrequicé, Manuelzão, o pescador Norberto e Tineco. Este conta histórias de pescadores dos rios que caem na represa, na sua pousada e restaurante Tineco, num recanto bucólico ao lado da ponte em Três Marias, onde é servida a melhor moqueca de surubim da cidade e cachaça das boas. Por que tantas Marias?, perguntamos a eles.
Era uma vez… 
Conta a lenda que há muitos e muitos anos, viviam às margens do rio São Francisco nas proximidades do rio Borrachudo, a família do estalajadeiro Miguelim e Helena, com suas filhas trigêmeas Maria Antônia Tita, Maria Loredo Já e Maria Tereza Lia. Atarefadas, Tita recebia e despachava os hóspedes, Já servia o café da manhã e Lia cuidava da horta e do jardim. Das janelas da casa avistavam-se três ilhas, onde a flora e fauna eram exuberantes em meio às águas cristalinas dos rios que passavam murmurantes por entre as pedras. As trigêmeas irradiavam uma beleza suave com seus longos cabelos e sorriso alegre. 
Após o trabalho iam banhar-se nas águas dos rios São Francisco junto à foz do Borrachudo, onde havia muitas pedras que formavam corredeiras. Naquelas pedras esculpidas pelo tempo, as Marias ficavam a sentir o afago da brisa, vendo o rio descer estrepitoso, e os pescadores na dura faina. Eram como sereias naquelas águas e gostavam de cantar ao pôr-do-sol, naquele momento mágico quando o rio se envolve com a noite. Certo dia, como de costume, as três Marias foram para as corredeiras quando abriu-se uma tempestade e no regaço das águas revoltas nas pedras nunca mais foram vistas. Depois que elas desapareceram os barranqueiros, barqueiros, pescadores, agricultores e viajantes passaram a chamar as três ilhas de Três Marias. E um dia as ilhas desapareceram com a construção do lago, ficando a barragem e a cidade conhecidas como Três Marias: Marisol, Marilu e Maristela.
 
Em 2001 a barca PIPES foi retirada por tratores das águas do rio entre Pompéu e Martinho Campos numa custosa operação que durou quatro dias, para ser trasladada em carreta Volvo até o porto de Pirapora. Amotinados, Enio Fraga (da Embrapa) e eu descemos num barco-voadeira operado por um exímio barqueiro do Ibama de Três Marias. Vencemos um trecho de águas brancas encachoeiradas de 125 km até Pirapora, e assim nenhum trecho ficou sem ser navegado. Na Expedição Vespúcio, em audiência pública no auditório da Cemig, foi publicada a “Carta de Três Marias”, com teatro ambiental da sergipana Graça Melo, que viajava em ônibus mambembe especial das nascentes à foz. [Veja em www.caminhodosaofrancisco.com.br.] 
Enquanto isto, Lico Paiva o pescador, foi conhecer uma vereda e buritizeiros, um velho sonho seu, aqui elas começam. É esta uma região de pecuária com pastagens e eucaliptais que avançam e impactam inexoravelmente as veredas. Passamos junto à foz de rios como o Abaeté e o de Janeiro, de onde da fazenda Sirga partiu a expedição de Guimarães Rosa e Manuelzão, em cavalgada rumo aos sertões. Embora com tempo fechado, chuvoso e frio, registramos este trecho de fundamental importância para a piracema e desova da ictiofauna a jusante de Três Marias. 
 
 Os ambientalistas de Três Marias chamam o Cerrado de “mãe das águas”. Muito atuantes, desenvolvem inúmeras atividades ambientais na região. Rio acima, em Luz (aqui as professoras são engajadas no meio ambiente), Bom Despacho, Moema e Lagoa da Prata – está no Guinness Book of Records, pelo plantio de 116 mil árvores em 1998, onde poderia estar também pela agressão maior ao rio São Francisco, desviado em 7,5km de extensão por uma usina. Estudantes e fazendeiros revitalizam os ribeirões Jorge Pequeno (Jorginho), Capivari, Santana e outros. É preciso quebrar paradigmas, mudar o status-quo, salvar cada bacia hidrográfica, mesmo as pequenas microbacias. Deixemos por um instante a máquina, vamos respirar ar fresco lá fora, sujar as mãos dos pequeninos plantando nas covas adubadas as tenras mudinhas de jatobá, ingá e sangra d’água. Revitalizar é preciso! 
É preciso conhecer o rio até o mar e conhecer o mar que recebe os rios. Descobri um maravilhoso cântico polinésio do alto mar no livro “O Oceano, nosso Futuro”, um extenso relatório da Comissão Mundial Independente sobre os Oceanos, vinculada à Fundação Mário Soares, ex-premier português. Lendo este livro sabemos quão pequena, vulnerável e susceptível é esta Terra azul.
Nas sociedades do Pacífico, em que a escrita era desconhecida até a chegada do europeu, as informações sobre a navegação, de que dependia a vida da população e do navegador, era transmitida por meio de cânticos, facilmente memorizáveis devido a seu ritmo e à rima. Assim, ficou registrada uma grande parte das movimentações dos povos da Oceania através de uma vasta área do oceano. A Austrália é mapeada pelos aborígenes por trilhas ou rotas de cantos. E pagaia, termo usual na canoagem portuguesa, é o remo de duas pás do caiaque esquimó, esse que conhecemos. É um belo canto, o título do poema pode ser lido como “o sol nasce no horizonte a leste”: 
 
O horizonte a nascente
(Cântico polinésio do alto mar).
 
O punho da minha pagaia-leme estremece 
para a ação,
A minha pagaia chamada Kautu-ki-te-rangi.
Ela guia-me em direção ao horizonte que mal se distingue.
Ao horizonte que ante nós se levanta,
Ao horizonte que recua sempre,
Ao horizonte que se aproxima constantemente,
Ao horizonte que levanta a dúvida,
Ao horizonte que incute temor,
Ao horizonte de poder desconhecido,
Ao horizonte ainda por desbravar.
Os céus que sobre nós se abatem,
As águas que por baixo de nós se revoltam,
Defrontam o rumo não traçado
Que nosso barco tem de prosseguir.