ULTRAJE E ESCÂNDALO NO JARDIM BOTÂNICO DO RIO

22 de abril de 2012

Invasões comprometem um patrimônio natural histórico inestimável. E com o aval de quem deveria protegê-lo: o Ministério do Meio Ambiente.

 

"É um exemplo constrangedor. A cidade que sediou a RIO’92 e que vai sediar a RIO+20,  permite que um santuário como o JB seja invadido e que um rio de água mineral, que nasce perto de suas dependências,
[na Vista Chinesa] seja  completamente poluído. Nasce água mineral e 1.700m depois é esgoto a céu aberto. Onde está a fiscalização?"
 
 
 
FOTOS: GUSTAVO PEDRO
 
 
 São quase 600 casas e mais de 2 mil invasores do maior
santuário histórico, científico e cultural do Brasil. Até quando?
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FOTOS: GUSTAVO PEDRO
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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A cada ano que passa mais invasões acontecem.  Até quando?
 
 
 

 

 

CARLOS ALBERTO de XAVIER – Entrevista

 

Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, formado em contabilidade, Administração e Economia, naverdade é mesmo um educador. Ou, quem sabe, um agrônomo honorário? Xavier foi diretor do antigo IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal e do Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico Nacional, onde presidiu o conselho consultivo; foi chefe de Gabinete de dois ministros: Embaixador Sérgio Rouanet, da Cultura, e Murilo Hingel, da Educação. Já trabalhou com 22 Ministros. E, por três anos, foi Diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1983 a 1985). Nesta entrevista exclusiva, Carlos Alberto de Xavier explica porque o abandono do Jardim Botânico está atrelado a três fatores: ditadura militar e autoritarismo, interferência de políticos e omissão das autoridades.

 

 

“Um vídeo de 1985 denuncia e revela a escandalosa agressão ao patrimônio público com a conivência de autoridades públicas e com o apoio de políticos fisiológicos que só se alçam ao poder por meio desses tipos de votos”.

 
Folha do Meio – Carlos Alberto, como começou verdadeiramente sua luta para defender o Jardim Botânico do Rio?
Xavier – Em 1977, eu era Diretor do IBDF e contratei Ângela Trezinari e Carlos Fernando de Moura Delphim, da Fundação de Amparo à Pesquisa da Universidade de Lavras, para realizar o Plano Geral de Orientação para a área do Jardim Botânico. Esse estudo desnudou as contradições, o abandono, as invasões e a degradação que vivia o Jardim Botânico.
 
FMA – Mas como uma entidade de tanto conceito e qualidade perdeu, de repente, esta proteção?
Xavier – Simples, porque desde a mudança da capital para Brasília e, sobretudo, desde 1964 quando SE iniciou a ditadura militar, as pessoas esqueceram que o JB não ia mudar para Brasília. Mesmo “imexível ou imutável”, tinha que ser preservado e cuidado. Mas aconteceu o contrário. O JB foi abandonado. Pior! Começou a ser invadido. O grosso das invasões ocorre justamente nesse período. A situação ficou tão absurda que, no início dos anos 80, havia uma troca constante de diretores (quatro em três anos) porque todas as notícias que saiam do JB eram para as páginas policiais. Virou um caso de polícia mesmo. Então, em 1983, eu fui nomeado diretor para literalmente arrumar a casa.
 
FMA – Vamos voltar no tempo. No que tange às invasões, o problema vem desde 1927…
Xavier – Sim, sempre houve ocupação, a área inteira da antiga fazenda do Jardim Botânico pode-se ver naquele vídeo de 1985 que está na internet [www.sosjardimbotanico.com.br]. A fazenda que D. João VI mandou comprar para fazer a Fábrica de Pólvora e o Jardim Botânico incluía desde a praia até a montanha. Incluía os bairros de Ipanema, Leblon, Lagoa e Gávea. Tudo aquilo era uma fazenda. O JB era uma experimentação botânica e agrícola dentro dessa área grande. Então houve uma perda de território, meio sem controle até os fins do século 19. Depois, no primeiro Reinado, D. Pedro I dividiu algumas áreas em chácaras e, durante o segundo Reinado, D. Pedro II mandou recuperar parte do que Pedro I tinha permitido. O JB é um patrimônio da Colônia, do Reinado, do Primeiro Império, do Segundo Império e da República, aconteceu de tudo lá. É a verdadeira História do Brasil.
 
FMA – A degeneração começa com a omissão administrativa?
Xavier – Soube que durante o II Encontro de Gestores de Jardins Históricos realizado em Nova Friburgo, em novembro de 2011, foi apresentada formalmente uma denúncia da Associação dos Moradores e Amigos de Jardim Botânico no Rio de Janeiro sobre as invasões. Nesse Encontro, os participantes tiveram acesso ao Acórdão do STJ, aprovado por todos os ministros, em unanimidade. O Acórdão colocou um ponto final em um processo iniciado pelo Ministério Público em 1985, a partir da denúncia apresentada pelo então Diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. 
Nessa mesma reunião foi exibido um vídeo do mesmo ano da denúncia, revelando a escandalosa agressão ao patrimônio público com a conivência de autoridades públicas e com o apoio de políticos fisiológicos que só se alçam ao poder por meio desses tipos de votos. 
O processo de degradação do Jardim Botânico e da invasão e destruição de coleções e experimentos científicos centenários continuam no mesmo pé, 27 anos depois. É estarrecedora a má fé de autoridades do meio ambiente, omissas em relação ao abuso, tanto no nível municipal quanto estadual ou federal. Todas as autoridades têm alguma parcela de responsabilidade sobre as águas, esgoto, lixo e preservação da cobertura vegetal.
 

"O JB é um patrimônio da Colônia, do Reinado, do Primeiro Império, do Segundo Império e da República, aconteceu de tudo lá. É a verdadeira História do Brasil."

 
FMA – A Justiça então cumpriu seu papel…
Xavier – Não só cumpriu como indicou as providências necessárias à execução da sentença. Como pode a sociedade brasileira deixar de ser cética em relação ao cumprimentou das decisões da Justiça se o Executivo encarregado de cumpri-las permanece abúlico, inerte ou, o que é pior, comprometido com os interesses antagônicos ao dever constitucional de salvaguarda do patrimônio cultural e natural do Brasil? 
 
FMA – É bom salientar, um patrimônio de valor único e excepcional localizado no coração de uma das mais populosas e visitadas cidades do País…
Xavier – Perfeito! E o que esperar da ação governamental em sítios longínquos, fora do alcance dos olhos do povo e da mídia? Pode o patrimônio nacional ser objeto de raciocínios compensatórios para situações de interesse pseudo-sociais? Pode o cumprimento da lei e da ordem jurídica SER confrontado por compromissos políticos e administrativos espúrios que privilegiam interesses privados ilegais e danosos ao patrimônio de toda a população brasileira em detrimento dos interesses públicos e coletivos? 
 

"Mesmo  “imexível ou imutável”, o Jardim Botânico do Rio  tinha que ser preservado e cuidado. Mas aconteceu o contrário. O JB-RJ foi abandonado. Pior! Começou a ser invadido."

 
FMA – É estarrecedor… Mas o que você pensa do Jardim Botânico?
Xavier – Eu estava lá no JB desde o início de 1983, fazendo todos os levantamentos necessários. Em 1984, surgiu a lei dos direitos difusos do cidadão, (Lei …/84) mas só com a Constituição de 88 a legislação cultural e ambiental se consolidou, pois tornaram-se normas garantidas pela Lei Maior. Minha missão era essa: resolver aquele assunto específico, ou seja, reorganizar o Jardim a partir do plano geral de orientação que havia sido preparado anos antes. Aquele assunto envolvia desde contratar psicólogos do Instituto Psicologia, o Isope da Fundação Getúlio Vargas, mais ou menos uns oito técnicos, que atuaram por cerca de dois anos como várias outras providências. Sim, porque as pessoas que ali trabalhavam ficaram neurotizadas, completamente enlouquecidas. Estavam há anos restritos cada um a seu pequeno espaço de pesquisa. Conversas e reuniões eram proibidas. Eram dezenas pesquisadores do mais alto nível No CNPq, nomes famosos no Brasil, na Botânica internacional, todos abandonados e perdendo uma guerra aberta contra uma das mais importantes instituições brasileiras.
 
FMA – Voltamos a 1964, o governo militar praticamente abandonou o Jardim Botânico.
Xavier – Sim, em 64 houve a mudança do diretor do Jardim Botânico. Mandaram para diretor uma pessoa que tinha sido diretor de um presídio. Ele era irmão do Sobral Pinto.  A crônica do Jardim indica que o dr. Gil Sobral Pinto era um ‘coronel’ que colocou sargentos por todo lado. Valorizados eram os militares em detrimento dos pesquisadores. Então quando eu cheguei lá vinte anos depois, fui fazer um seminário para ouvir o que cada um estava pesquisando. As pessoas começaram a se apresentar. Foi terrível! Gente completamente descontrolada. Problemas e mais problemas. Eu contratei topógrafos, consultores, me reuni com uns amigos durante dois dias e fizemos como na revolução russa: primeiro as primeiras coisas, segundo, as segundas coisas, terceiro as terceiras coisas. Fizemos uma lista de 50 prioridades do “que fazer”. É claro que eu não consegui fazer as 50 coisas, mas fiz todas as coisas possíveis e as que precisávamos para entregar uma denúncia para o Ministério Público que se instalou no Rio logo no início da vigência da Lei. O procurador deu uma entrevista e falou: “Amanhã, vou estar na Avenida tal, no escritório do MPF para receber as denúncias que qualquer cidadão tiver contra as ameaças ao patrimônio, ao meio ambiente, ao consumidor”. 
 
FMA – E o Procurador se instalou para ouvir as denúncias?
Xavier – No dia que ele se instalou, eu já estava com tudo pronto. Peguei o carro com minha procuradora jurídica, mais um assistente para carregar dois carrinhos de documentos e entregamos tudo para ele: levantamento topográfico, censitário, sabíamos quantas pessoas moravam lá, projeto arquitetônico, projeto paisagístico de recuperação de áreas degradadas. Tudo que precisava fazer. Ao mesmo tempo, começamos a publicar os primeiros trabalhos científicos como os do historiador do Jardim, João Conrado Niemeyer Lavor; um dicionário de dois grandes pesquisadores, Carlos Toledo Rizini e Armando de Matos, um pesquisador de dendrologia e outro médico e latinista e também pesquisador diletante de dendrologia que é estudo da madeira. Mais as publicações dos Arquivos do Jardim Botânico e da revista Rodriguesia, homenagem ao ex-diretor Barbosa Rodrigues.
 

 
 
 
 A cada encosta do JB uma nova invasão.
Privilégio de poucos. 
 
 
 
 
 
FMA – Chegou o tempo da restauração?
Xavier – Montamos uma equipe multidisciplinar e interinstitucional compromissada. Inventamos um grupo de trabalho com o SPHAN-PRÓ-MEMÓRIA, composto por Carlos Fernando de Moura Delphim, Marta Amoroso Anastácio e outros. A gente fazia o que precisava fazer. Com dedicação. Para falar a verdade, era um Jardim adormecido que estava acordando. Demos mais condições de trabalho aos funcionários, jardineiros, guardas e incentivo aos técnicos.
 
FMA – Uma pergunta: por que só agora a sociedade civil acorda para esse assunto? Por que ela ficou tão adormecida? Porque a associação de bairro não fazia nada? 
Xavier – As Associações de Moradores surgiram com a Lei do Meio Ambiente e do Conama. A primeira foi a AMA-Gávea. E a primeira campanha foi a movimentação para a defesa da figueira da Rua Faro. Na Rua Faro, ali no Jardim Botânico, queriam fazer um prédio e iam tirar a figueira. A população se organizou para não deixar tirar a figueira. Isso foi em 1981, era o início de aplicação da lei do Meio Ambiente. Então, antes não tinha mobilização nenhuma, a sociedade quase não participava. Augusto Ruschi e Roberto Burle Marx, Graziela Maciel Barroso, Luiz Emídio, Paulo Nogueira Neto e poucos outros falavam por todos.
 

"Há omissões e abusos. Não sou eu quem fala em má fé. É o processo. A Justiça fala em má fé em vários sentidos. Má fé de quem construiu, má fé de quem deixou construir ou arrendou. Também má fé de quem transferiu “direitos” e de quem deixa permanecer como está".

 
 
FMA – O abandono do Jardim Botânico está atrelado a três fatores: ditadura militar, interferência dos políticos e omissão das autoridades.
Xavier – Justamente. Mas vamos ser proativos: se a Justiça já disse que está errado, que os invasores têm que sair, porque não se cumpre a decisão? O Iphan tem que enfrentar esta situação em defesa do patrimônio. Se alguém quebra a torre de uma igreja tombada, o que vai fazer o Iphan? É a mesma coisa. É estarrecedora a má fé das autoridades do meio ambiente. Há omissões e abusos. Não sou eu quem fala em má fé. É o processo. A Justiça fala em má fé em vários sentidos. Má fé de quem construiu, má fé de quem deixou construir ou arrendou. Também má fé de quem transferiu “direitos” e de quem deixa permanecer como está. Isto está no processo, não sou eu quem diz.
 
FMA – Você falou em poluição das nascentes dentro do Jardim Botânico?
Xavier – Sim, esse é um exemplo constrangedor. Na cidade que sediou a RIO’92, que vai sediar a RIO+20, dentro de um santuário como o JB,  um rio de água mineral que nasce perto de suas dependências,[na Vista Chinesa] deixa-o ser completamente poluído. Nasce água mineral e 1.700 metros depois é esgoto a céu aberto. Onde está a fiscalização? A Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura, do Estado do Rio ou até mesmo a fiscalização federal?
 
FMA – Quantas invasões, quantas pessoas moram dentro do Jardim Botânico?
Xavier – Olha, hoje não sei. Nosso censo registrou 1950 pessoas. Deve ser, talvez, umas duas mil pessoas. E não é de gente CARENTE não. Tem jornalistas, artistas, advogados. Tem até família de ex-ministro. Então é uma briga com quem tem algum poder, alguma influência.
 
FMA – E o prédio do Serpro dentro do Jardim?
Xavier – Esse prédio do Serpro é um equívoco ainda maior. O Serpro foi construído ali dentro a partir de uma decisão autoritária, um decreto ilegal; o que a Justiça decidiu é que o decreto é ilegal. Eles fizeram um prédio em cima de uma pedra que era nascente do rio Rainha, um braço do Rio dos Macacos. Então, como o lugar era muito úmido, eles aterraram. Evidente que não resolveu o problema. O prédio tem muitos andares. Em todo lugar se percebe a umidade. Umidade não combina com computador. Então o prédio do Serpro, dentro do Jardim Botânico não tem futuro. O que fazer? Implodir? Se fosse vivo, Rodrigo Melo Franco, certamente mandaria implodir de forma exemplar. Ou deixar lá como um monumento ao autoritarismo. O mais sensato é a direção do Jardim usá-lo para suas finalidades com as adaptações necessárias.
 
FMA – O que esperae do Iphan?
Xavier – O Iphan sempre fez tudo o que podia ser feito. Lá tem o arquiteto paisagista Carlos Fernando de Moura Delphim, nossa maior referência. Tem um bom presidente o Luiz Fernando de Almeida, tinha o Augusto Silva Teles no passado. Não são da responsabilidade do IPHAN as providências que se fazem necessárias.  Espero que o Iphan dissemine a verdade sobre a situação do Jardim Botânico do Rio, quais sãos os valores culturais reconhecidos pelo tombamento para que as pessoas não falem bobagem. A questão do JB-RJ é simbólica. É um retrato da omissão, da falta de recursos para prioridades de pesquisa, para a cultura, para preservação de instituições centenárias. Obediência às decisões judiciais, é que se espera. Todos valores da ética e da estética convergem para este tema. Se você visita o Jardim Botânico, além do trânsito infernal que invadiu o bairro, hoje de passagem, o santuário esconde coisas mais graves: invasões de área pública Tombada e Patrimônio maior do Brasil.   
 



"Dentro do Jardim Botânico nasce um rio de água mineral puríssima
e apenas 1.700 metros depois o rio já é esgoto a céu aberto."

 
 

 
 
 
 
Quem não quer uma casinha bonitinha e morar
dentro do Jardim Botânico do RJ? Tão fácil…