VII - Série Expedição Américo Vespúcio - 10

RIOS NO BOLSO

22 de maio de 2012

Lendas do Velho Chico e outras histórias

 

Estamos falando do rio São Francisco e de suas estórias. Guimarães Rosa é a própria lenda. Ele resgatou e criou quase uma nova língua dentro da língua-mãe, universalizou o rio, os riozinhos, a vastidão daquela erma geografia, sua gente mítica e lendária. Quem nunca leu “A Terceira Margem do Rio”? Vamos citar algumas pérolas fluviais, sendo que o mais indicado mesmo é reler a vasta e imortal obra de um dos maiores escritores brasileiros.
 
Em 2001 na Expedição Américo Vespúcio, na barca PIPES, dia após dia, descemos pelo lendário rio, o pai de todos, e assim navegamos pela veia rosiana, pela pena do escritor que soube captar a paisagem como um espelho: 
“Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão”. Continuemos guiados por quem conhece.
 
RIO ABAETÉ
O rio Abaeté é o curso d’água mais a sul da geografia rosiana, dos cerrados típicos. Assim o define Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”:
“O senhor sabe – o rio Abaeté, que é entristecedor audaz de belo: largo tanto, de morro a morro”. E em carta ao seu tradutor alemão diz que “… esta é uma das passagenzinhas do livro de que mais gosto (…). Na maior parte dos trechos, aquele rio nem tem vale, corre de morro a morro”.
Descendo a corrente sãofranciscana, levados pelo mestre das savanas e das águas que fluem, o Rio de Janeiro é um pequeno rio que deságua na margem direita do rio São Francisco, entre as cidades de Três Marias e Pirapora. 
Mais acima deste curso d’água fica Andrequicé, onde viveu Manuelzão, a lenda viva rosiana. 
Imortalizado por Rosa naquele estilo único e universal de narrar, da fazenda Sirga partiu a expedição do escritor pelo interior dos sertões. Hoje as águas estão turvas, barrentas e rasas. E os quelônios, onde estão eles?: 
“Saiba o senhor, o de-Janeiro é de águas claras. É rio cheio de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente desses – em cima da pedra, quentando sol ou nadando descoberto, exato”. 
 

RIO MEU AMOR
 
“Bela é a lua, lualã, que torna a sair das nuvens, mais redondada, recortada.
Viemos pelo Urucuia. Rio meu de amor é o Urucuia”.

 
RIO URUCUIA
E chegamos ao Urucuia, o cenário maior junto com o Paracatu, de “Grande Sertão: Veredas”. O Urucuia era o preferido: “Bela é a lua, lualã, que torna a sair das nuvens, mais redondada, recortada. Viemos pelo Urucuia. Rio meu de amor é o Urucuia”. A melhor definição da bacia do Urucuia veio de Guimarães Rosa:
“Sertão é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta… O sertão está em toda a parte”.
Lá o pescador conversa com o peixe: “E urucuiano conversa com peixe para vir ao anzol – o povo diz”.
 
RIO PANDEIROS
O rio Pandeiros, um dos mais importantes berçários de peixes do rio São Francisco, é outro pequeno-grande rio rosiano. De Rosa disse Drummond que ele “Guardava rios no bolso cada qual em sua cor de água”: 
“E seguimos o corgo que tira da lagoa Sussuarana, e que recebe o do Jenipapo e a Vereda-do-Vitorino, e que verte no Rio Pandeiros – esse tem cachoeiras que cantam, e é d’água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem acordo: – É verde! É azul! É verde! É verde!… E longe pedra velha remêleja”. De “Grande Sertão: Veredas”.
 
Riobaldo conversou com o rio: 
“O tanto assim, que até um corguinho que defrontei – um riachim à-toa de branquinho – olhou para mim e disse: – Não… – e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para diante. O riachinho me tomava a bênção”. 
E foi assim sonhando com os rios e a paisagem bucólica que lembrei dos pobres rios de hoje, tirados do meu diário de bordo “Como vi o rio São Francisco 500 anos após Américo Vespúcio”. A dura observação foi feita por Calderón Canessa: “Essas garrafas sempre nos acompanham na viagem, como se fossem os olhos do rio observando um transeunte”. 
Para a decomposição dessa escroqueria industrial mais aquela de via única, sem retorno, como as sacolas plásticas, garrafas PET, pneus e companhia, são necessários centenas, milhões de anos.
O pescador Lico Paiva diz que o rio não merece tanta sujeira e nem tampouco São Francisco, emendando com uma sonora gargalhada. 
O geólogo Ernesto Telles Ferrante, sempre medindo a qualidade das águas turvas e revoltas, concorda e vai para cima da cobertura: de lá observa a monótona paisagem a perder de vista.
Geraldo Gentil