IX - Série Expedição Américo Vespúcio - 10

AS CARRANCAS

19 de julho de 2012

Lendas do Velho Chico e outras histórias

 

A origem das carrancas do São Francisco é nebulosa como uma lenda. Pode ser que algum marujo com talento de artesão viajando por mares distantes, tenha ouvido histórias de tótens nas proas de barcos egípcios e vikings. Aqui chegando esculpiu numa tora de madeira a primeira carranca, cravando-a na proa de um barco-gaiola do Velho Chico no século 19, e por mais de cem anos singraram suas águas. E um dia cantou o poeta, “Eu embarquei no Benjamim Guimarães em Pirapora com carrancas à proa…”.

Diz a lenda que ela afasta os seres mágicos do rio, levando os barqueiros a uma feliz viagem e chegada a um porto seguro. Olhos atentos, não gosta que as pessoas deixem lixo nas margens e dentro do rio, sendo esta falta imperdoável, afogando nas profundezas o sujismundo. Frente ao perigo, a carranca dá três longos gemidos e aí é um salve-se quem puder. 
Os barqueiros as colocavam na proa de suas embarcações como amuletos, esconjurando os seres mágicos do rio, cachoeiras repentinas, protegendo contra cobras, o jacaré, o surubim. Como adorno, atraíam a curiosidade dos ribeirinhos destacando a embarcação nos portos. São seres mitológicos que aqui habitam e não existem… e se existem deixam de existir quando chega um novo dia, quando desperta a natureza.
Olhos esbugalhados, boca escancarada, a língua como gravata, as sobrancelhas cheias e arqueadas, a longa cabeleira em mechas, assim é a carranca. A cabeça e o pescoço esculpidos no tronco da umburana-de-cambão, árvore da caatinga em extinção. Pintadas de branco, exceto os cabelos sempre pretos, a boca, os olhos, narinas e orelhas com destaque vermelho. 
As carrancas nas barcas integravam a paisagem do São Francisco. Hoje, ao longo do rio, podem ser vistas uma ou outra embarcação com carranca à proa. Quanto às barcas movidas a varas e remos, hoje operam com motores convencionais, e as carrancas ou jazem no fundo do rio ou são cobiçadas pelos museus e colecionadores. 
 
 
“Uma carranca do rio São Francisco deve ter a feição horrenda e amedrontadora, no estilo ‘quando o feio é bonito’: cabeça grotesca, testa ampla, dentes encavalados e a boca cuspindo fogo”.
 
 
Ana das Carrancas em Petrolina e seu marido cego esculpiram no barro, tenho deles uma carranca: “A minha arte é fazer carranca, a arte dele é tirar as pedrinhas do barro”, dizia ela entre sorrisos moldando os olhos de mais uma carranca, todas de olhos vazados. 
Francisco Guarany, de Santa Maria da Vitória, destacou-se no primitivismo da sua arte fantástica e alegorias antropomorfas como o cavalo encantado, a índia que vira onça e tantos outros. 
Sebastião Branco em Juazeiro, Moreira do Prado em Januária, Afrânio em Barreiras… mestre Davi em Pirapora foram ou são famosos carranqueiros. Outra arte que retrata as carrancas e coisas do rio é o bordado das irmãs Diniz Dumont em Pirapora, premiadas pela Unesco.
Paulo Pardal, no livro “Carrancas do São Francisco”, descreve as barcas com carrancas e figuras de proa que hoje não mais se vê. Elas se foram com os remeiros e suas canções tipo menestréis medievais, ao sabor da corrente. As rodovias levaram as embarcações e as tradições, as pontes levaram as balsas, e até o peixe frito.
Mais recente, “Navegantes da integração: os remeiros do rio São Francisco” de Zanoni Neves, retrata a sua saga. Barqueiros do São Francisco, barqueiros do Volga, de Veneza e do Nilo… Barcas, canoas de toldas, gôndolas e feluqas. Lá eles recebem incentivos e até salários para continuarem mantendo suas tradições e corporações. 
Enquanto barqueiros e pescadores tradicionais remarem seus velhos barcos embalados por toadas e canções, podemos acreditar que os rios, os canais, os mares e os peixes não morrerão. 
Na Expedição Vespúcio, há dez anos, tivemos um encontro com ambientalistas piraporenses numa escola, tudo registrado pelo “Caminha” José Carlos, da Embrapa Solos, Recife. Até aqui ocorreram quatro audiências públicas (Iguatama, Abaeté, Pompeu, Três Marias) e duas reuniões técnicas (Lagoa da Prata na Câmara, e Pirapora), sempre com teatro ambiental da sergipana Graça Melo, que viajava em ônibus mambembe especial das nascentes à foz. 
Lico Paiva “para não perder tempo com reuniões, isso não leva a nada!”, foi pescar nas cachoeiras junto à famosa ponte, onde fisgou um moleque surubim para a moqueca, o almoço de bordo. Curioso, conheceu também o navio-gaiola Benjamin.
Enquanto a barca PIPES – Pedro Iran Pereira Espírito Santo, de Carolina/MA, sob a coordenação de Niude P. E. Santo – a eles nossa gratidão, o rio São Francisco agradece – era retirada do rio por buldozzers, patrol e retroescavadeiras da Prefeitura e DER, ocorreram os eventos de Três Marias e Pirapora. 
No dia seguinte sob chuva torrencial a heróica barca com trinta expedicionários, com uma carranca na proa e uma pequena imagem protetora de São Francisco (doada pela professora Maria Paraíso, de Iguatama, que a trouxera de Assis, Itália) largou para Januária, onde outra audiência pró-revitalização nos aguardava.