IX - SÉRIE EXPEDIÇÃO AMÉRICO VESPÚCIO - 10

LENDAS DO VELHO CHICO

22 de agosto de 2012

Os lendários navios-gaiola

“Os pioneiros pagaram um alto preço pela façanha: o primeiro barco a vapor na bacia do São Francisco, mais precisamente no rio das Velhas em Sabará, foi lançado às águas em torno de 1864, pelo engenheiro Guilherme Kopke. Mas adernou-se antes de chegar ao próximo porto”.

 

 

"A siderurgia e os grandes fazendeiros com incentivos fiscais
fizeram e fazem o resto. O rio está nu."
 
 

Um dia disse o poeta, “Eu embarquei no Benjamim Guimarães em Pirapora com carrancas à proa…”. Os vapores-gaiola do São Francisco marcaram época e se tornaram lendários. Trazidos do Mississipi, rio imortalizado por Mark Twain, por mais de cem anos singraram as águas do Velho Chico desde Pirapora até Juazeiro, vencendo lentamente 1371 km entre ambas. Jorge Amado em “Seara Vermelha”, contou a saga dos retirantes embarcados em Juazeiro. Lendários, porém movidos a

lenha.
 
Um breve histórico conta como iniciou a navegação a vapor na segunda metade do século XIX: Os governos imperial e provinciais contrataram serviços e levantamentos topográficos e batimétricos indispensáveis à navegação a vapor no rio São Francisco e afluentes. Até então, neles navegavam apenas canoas, barcas a remo e ajoujos, que são canoas conectadas por couros e cordas com um estrado por cima.
 
Era preciso conhecer as condições do rio: o imperador Pedro II contrata os serviços do engenheiro Henrique Guilherme
Fernando Halfeld, alemão radicado em Juiz de Fora, onde havia uma colônia de cerca de mil imigrantes. De 1852 a 1854, levantou o rio de Pirapora até a foz no oceano, cujo trabalho foi publicado em 1860. Assim, viabilizou a navegação de Pirapora a Juazeiro, e abaixo de Itaparica a Piranhas previu a construção de um canal com eclusas paralelo ao rio nas cachoeiras.
 
Como sempre os pioneiros pagaram um alto preço pela façanha: o primeiro barco a vapor na bacia do São Francisco, mais precisamente no rio das Velhas em Sabará, foi lançado às águas em torno de 1864, pelo engenheiro Guilherme Kopke. Mas adernou-se antes de chegar ao próximo porto.
 
Em 1867 o engenheiro Henrique Dumont, pai do “pai da aviação” Santos Dumont, traz desmontado em carro de bois desde o Rio de Janeiro, o famoso barco Saldanha Marinho, que é lançado às águas em Sabará no alto rio das Velhas em 1869. Aí ele fez história, desceu o Velhas, subiu o Paracatu, desceu e subiu o rio São Francisco por décadas, e hoje a carcaça é restaurante em terra fi rme em Juazeiro. Deve o seu nome ao presidente da província de Minas Gerais, Joaquim Saldanha Marinho, incentivador da navegação fl uvial e que nele viajou oito léguas experimentais. Se não adernou na primeira viagem, lucro não deu, por falta de planejamento geral das rotas terrestres com a fl uvial, hoje chamado transporte intermodal.
 
O engenheiro Carlos Krauss foi contratado em 1868 para levantamentos entre Piranhas e Sobradinho, na região de cachoeiras do Sub-Médio São Francisco, já estudados por Halfeld, propondo a construção de uma ferrovia na região de Paulo Afonso para conexão de portos fluviais, além de obras de desobstrução na calha do rio.
 
O engenheiro norte-americano William Milnor Roberts em 1879/80 realizou estudos e levantamentos sobre a navegabilidade desde o oceano até Pirapora, já levantados, mas ao que tudo indica, havia necessidade de um tertius. Este relatório reforçou a necessidade de interligar Pirapora ao Sub-Médio e o Baixo São Francisco, reconhecendo a importância da estrada de ferro de Paulo Afonso e obras de desobstrução na própria calha do rio mais eclusas. Estes trabalhos na calha do rio jamais foram executados; caso contrário, hoje estariam submersos pelas represas de Sobradinho, Itaparica e Moxotó, que inundaram os trechos recomendados.
 
Muita mata ciliar destinada à navegação desde então foi extinta. O desmatamento ribeirinho em escala institucional é
secular. No seu volumoso relatório de 1862, Halfeld faz inúmeras referências e recomendações para a eliminação pura e simples das árvores de barranco em certos trechos, para não “atrapalhar” a navegação dos vapores quando o talvegue ou canal beirasse o barranco. Os fazendeiros e incentivos fiscais fizeram o resto. A propósito da primeira viagem do vapor baiano Presidente Dantas em dezembro de 1872, de Juazeiro a Januária, o pesquisador Matta Machado escreveu em
“Navegação do São Francisco”:
 
“A pressa caracterizou a viagem inaugural. O navio pouco demorava nas vilas e povoados. Mello e Alvim deu prioridade à faina de cortar lenha, de preferência no final da tarde e do percurso diário, com o objetivo de estar já a embarcação provida para partir na manhã seguinte. Algumas outras ocasiões, estacionava o vapor em arraiais ou povoados para comprar ou receber lenha dos moradores. Em conseqüência, o vapor parou maior número de vezes em localidades desertas do
que habitadas. Como a lenha infl uísse muito na velocidade do vapor, aconselhava a utilização apenas de achas de jurema preta, aroeira, angico escuro e braúna (…)”.
 
E mais adiante, “Dizia a empresa em julho de 1896 que a lenha, combustível dos vapores, fi cava cada vez mais escassa nas margens do São Francisco, e os preços se elevavam exageradamente. Às vezes, os vapores eram obrigados a parar a fi m de os marinheiros irem tirar lenha na margem, gerando o descumprimento do horário da viagem. Parece que tinha chegado o momento de substituir a lenha pelo carvão de pedra, que não deveria sair mais caro”.
 
Uma das raras formas do morador ribeirinho angariar alguns réis para o bolso era o corte da abundante lenha das margens. Zanoni Neves (1998) citando Carvalho (1937), dizia que: “Uma indústria lucrativa para os ribeirinhos é a de vender lenha para os vapores. Elles cortam a madeira e a alinham no barranco por metros cúbicos. O preço varia de 2$500 a 4$000 o metro. Com esse dinheiro compram um pouco das mercadorias que as barcas passam vendendo, especialmente rapadura, cachaça e sal”. 
 
A siderurgia e os grandes fazendeiros com incentivos fiscais fi zeram e fazem o resto.
O rio está nu.