Não é fácil trabalhar com cultivo de peixes, como o cavalo-marinho que se alimenta de presas vivas. É necessário reproduzir toda a cadeia alimentar até chegar no peixe: cultivamos microalgas, rotíferos, copépodos, artemias e ainda utilizamos pós-larvas de camarões.
ROSANA BEATRIZ SILVEIRA – Entrevista
Folha do Meio – Em 2004, fizemos uma matéria sobre o Projeto Hippocampus. Lá se vão nove anos. O que mudou?
Rosana – Olha, em pesquisa e em educação, nove anos é tempo demais. Mudou muito. A começar por mim. Lembro bem daquela matéria da Folha do Meio Ambiente, pela forma didática e pela repercussão que teve. Na época fazia um doutorado pela PUC-RS que foi concluído em 2005 com o tema de dinâmica populacional dos cavalos-marinhos em Pernambuco. No final de 2012, concluí um pós-doutorado pela Federal Rural de Pernambuco, trabalhando com histologia, é claro, de cavalos-marinhos e as atividades do Projeto Hippocampus cresceram consideravelmente, tanto em campo como em laboratório.
FMA – Então conta as novidades de laboratório. Vocês já desenvolvem cultivo de cavalos-marinhos?
Rosana – Sim, desenvolvemos o cultivo. Fechamos o ciclo de vida de Hippocampus reidi e Hippocampus erectus, duas das três espécies de cavalos-marinhos que existem no Brasil. Obtivemos várias gerações de H. reidi, que inclusive, podem ser vistas em nossa sala de visitação. Não é fácil trabalhar com cultivo de peixes, como o cavalo-marinho que se alimenta de presas vivas. É necessário reproduzir toda a cadeia alimentar até chegar no peixe: cultivamos microalgas, rotíferos, copépodos, artemias e ainda utilizamos pós-larvas de camarões marinhos que são gentilmente doados pela maricultura da Queiroz Galvão Alimentos S.A. O trabalho é grande, mas o resultado é muito gratificante.
FMA – Você falou anteriormente em três espécies de cavalos-marinhos no Brasil, não eram duas espécies na última vez que conversamos em 2004?
Rosana – Bem lembrado, porém essa foi outra novidade! Desde 2002 estamos estudando a sistemática dos cavalos-marinhos brasileiros e recentemente concluímos por meio de análises clássicas e moleculares que, na verdade, possuímos três espécies: H. reidi, H. erectus e Hippocampus patagonicus. O manuscrito elucidando essa antiga confusão está sendo publicado em parceria com o professor Cláudio Oliveira, da Unesp, que desenvolveu as análises genéticas, nesse caso.
FMA – Rosana, vocês fazem repovoamento em algum local? Parece que nascem muitos cavalinhos no Projeto Hippocampus toda semana, como é isso?
Rosana – Não, ainda não. O que fazemos é liberar os recém-nascidos para o manguezal e aí é com a natureza, pois a taxa de sobrevivência nesse estágio é baixíssima, não sendo significativo liberar os peixinhos. Trabalhamos com cavalos-marinhos reprodutores somente da nossa região.
Estamos trabalhando num programa de revigoramento populacional para o Pontal de Maracaípe que será, caso necessário, o primeiro revigoramento de H. reidi em nosso País. Porém, isso inclui obedecer a uma série de critérios para que possa ser uma decisão segura e benéfica à população remanescente.
FMA – E quais são esses critérios?
Rosana – Em primeiro lugar, é preciso conhecer a história de vida da população local, densidades passadas e presentes, e a dinâmica do próprio local, é o caso de Maracaípe que acompanhamos há 12 anos. Em segundo lugar, coletamos os reprodutores de Maracaípe e avaliamos a diversidade genética existente nos indivíduos, esse resultado nos diz se a população poderá se reconstituir naturalmente, se cessarem os estresses a que está submetida (exploração turística e degradação ambiental), ou se haverá necessidade de um revigoramento populacional com os animais criados no Projeto Hippocampus. O conhecimento do perfil genético dos reprodutores permite também direcionarmos os “casamentos” entre os pares de modo a produzir uma maior variabilidade genética possível na prole, o que aumenta bastante as chances de adaptação ao meio. A prole a ser liberada também tem seu perfil genético avaliado para que tenhamos a certeza do que estamos introduzindo na população.
FMA – Mas esse trabalho tem acompanhamento?
Rosana – Tem sim. Depois da liberação de juvenis marcados com etiquetas próprias para essa finalidade, haverá um período de acompanhamento dos indivíduos marcados por, pelo menos, seis meses. Nova coleta se processa e a prole desses indivíduos que foram liberados é também analisada em relação ao seu conteúdo genético. Nenhuma análise necessita sacrifícios.
Todo esse trabalho de avaliação genética é desenvolvido com nossos parceiros Martin Montes, da UFRPE, e a professora Ana Garcia, da UFPE, tendo como colaborador um aluno que é o Theo Wanderley.
FMA – Essa avaliação é feita também em campo?
Rosana – Sim, pois temos ainda, a avaliação do estado de conservação do estuário do rio Maracaípe em relação à qualidade da água e do sedimento onde vivem os cavalos-marinhos e onde será efetuado o revigoramento populacional.
Necessitamos saber se o local encontra-se apto a receber os animais e qual o seu papel na drástica diminuição ocorrida na população original de cavalos-marinhos desse estuário (80% nos últimos 10 anos).
Essa atividade é desenvolvida em parceria com a professora Valdinete Lins, da UFPE. Somente após desenvolver todos esses passos, estaremos aptos a proceder a um revigoramento populacional com segurança e com conhecimento de causa.
Como suvenires, decoração de aquários ou como fantasias farmacèuticas, os cavalos-marinhos são caçados, secados e vendidos livremente nas feiras.
FMA – O que se sabe sobre o estado de conservação dos cavalos-marinhos no Brasil?
Rosana – Bem, Silvestre, nossa maior certeza é de que sabemos muito pouco ainda sobre esse grupo. Porém, já sabemos que ocorrem ao longo de toda a costa brasileira, tanto no mar como nos estuários, sendo que sua conservação está diretamente ligada também ao tratamento que dispensamos a estes corpos d’água com seus particulares habitats.
Embora tenhamos registro desse peixe em toda costa, a maneira como estão distribuídos e suas densidades ainda são alvos de nossas pesquisas. Desde 2011, estamos trabalhando em cincos estados: RS, SC, RJ, PE e CE, a fim de entendermos a dinâmica populacional das espécies ao longo do gradiente térmico, bem como para estudar a variabilidade genética que começou a ser mapeada desde então.
FMA – E a partir desse ano de 2013?
Rosana – Agora vamos entrar numa segunda fase. Com base nos resultados iniciais obtidos para os cinco estados, estaremos incluindo mais cinco estados nas pesquisas. Os resultados finais dessa pesquisa – se existe satisfatória variabilidade genética ou não, estimativa dos estoques naturais, entre outros – nos revelarão o grau de vulnerabilidade a que se encontram expostos esses animais.
Acasalamento: a fêmea deposita os ovos na
bolsa incubadora
do macho que é quem fica grávido
FMA – Existe mais algum fator que ameace os cavalos-marinhos?
Rosana – Sim, o cavalo-marinho é comercializado como peixe ornamental ou como produto desidratado para uso medicinal, simpatias e suvenires, além de ter seu ambiente altamente agredido pela poluição que geramos. O impacto dos desmatamentos e aterramentos de manguezais, da poluição dos mares, pela exploração turística (“passeio do cavalo-marinho”) é muito grande. E ainda sofre com a pesca incidental, principalmente de arrasto, onde milhares deles são removidos de seu ambiente anualmente. É o famoso “Bycatch”. (Bycatch são criaturas vivas que são capturados acidentalmente durante a pesca de espécies-alvo).
Antigamente o cavalo-marinho figurava como simples fauna acompanhante sem importância comercial, hoje, a exemplo da pesca que acompanhamos em Pernambuco, é um produto de valor no comércio, tantos vivos como mortos.
FMA – Questão de suvenires e artesanato, como a legislação brasileira ainda permite isso?
Rosana – Infelizmente, em nosso País, o cavalo-marinho não consta na lista oficial das espécies ameaçadas de extinção e sim na lista de espécies sobre-explotadas. Para o grupo ainda não existe legislação específica além de cotas para exportação e uma sugestão de plano de manejo publicado pelo Ibama que não tem poder de lei.
As denúncias feitas e os pedidos de fiscalização esbarram nesse fato, os próprios fiscais se queixam da falta de um instrumento jurídico que permita uma ação mais enérgica. Dessa forma, acabamos sempre recorrendo ao Ministério Público para auxílios e encaminhamentos. Deveríamos observar no Brasil os critérios da IUCN (União Internacional para a Proteção da Natureza), por onde a maioria das espécies de cavalos-marinhos existentes no mundo são protegidas, como tantos outros animais. Inclusive H. reidi e H. erectus.
FMA – Em 2004, vocês faziam um trabalho muito isolado. Já conseguiram parcerias?
Rosana – Sim, hoje temos excelentes parceiros na Federal do Rio Grande do Sul, como a professora Clarice Fialho; Na Federal de Santa Catarina, o professor Sérgio Floeter; Na Estadual do Rio de Janeiro, o professor Joel Creed.
Temos também a parceria do ICMBio. Todas as parcerias estão representadas pelos chefes das respectivas unidades de conservação: da área de proteção ambiental APA de Cairuçú-RJ (Eduardo Godoy), na estação ecológica ESEC Tamoios-RJ (Regis Lima), no Parque Nacional de Jericoacoara-CE (Wagner Cardosos) e contamos também com o apoio de Rodrigo Rocha, da Reserva Ecológica de Juatinga- INEA-RJ.
Pesquisa e o trabalho social
FMA – Quantas pessoas trabalham no Hippocampus?
Rosana – Somos nove biólogos e dois “práticos de campo” que trabalham diretamente para o Projeto Hippocampus nos cinco estados, além das parcerias universitárias e ICMBio. Aqui em nossa sede, em Porto de Galinhas, temos mais sete pessoas em áreas diversas e dois estagiários que fazem o Projeto funcionar de forma harmoniosa.
FMA – Uma questão: vocês só fazem trabalho de pesquisa?
Rosana – Não! Fazemos e desenvolvemos outros programas na área de educação ambiental e desenvolvimento social também. Mantemos uma sala de visitação com 37 aquários, onde os visitantes podem ver bem de pertinho os cavalos-marinhos e outros representantes da nossa fauna.
Lá eles são recebidos com informações técnicas, em linguagem simples, sobre hábitos de vida, estado de conservação e curiosidades a respeito desse singular animal. Assistem a um pequeno vídeo que mostra a alimentação dos cavalos-marinhos, o namoro, o casamento e o nascimento dos filhotes. Nosso espaço não é grande, mas recebemos, em média, três mil turistas ao mês, de todos os locais do Brasil e do mundo. Também temos uma agenda específica para escolas.
FMA – Fale do lado social?
Rosana – O programa de desenvolvimento social é fundamental para nosso trabalho. Trata-se de projetos de geração de renda para famílias de nossas comunidades de entorno.
Em 2009, equipamos o grupo de mães da Pastoral da Criança de Porto de Galinhas, com máquinas de costura reta, overloqueira, galoneira, bordadeira, insumos diversos para costura e artesanato e uma instrutora para este fim. Além disso, durante todo o primeiro ano do projeto social, o grupo recebeu uma ajuda financeira mensal para reposição de matéria prima e fortalecimento dos trabalhos.
Após esse apoio, tornamos também o primeiro cliente do grupo, que tem sua própria barraca na feira de artesanato de Porto de Galinhas e atende outras lojas também.
FMA – A ideia deu certo?
Rosana – Verdade, a ideia deu certo. Pelo projeto, a partir do segundo ano, o grupo deveria se manter somente com o retorno do seu trabalho. Sem mais a ajuda financeira mensal. E que seus produtos tivessem preço para concorrer no mercado. Tinha que ter sustentabilidade. E isso aconteceu.
Esse grupo se mantém e nos encorajou a formar outro grupo semelhante para as mulheres de Serrambi que é outra localidade do município de Ipojuca. Essas mulheres passaram pelo mesmo processo. Atualmente seguem com o trabalho, tendo conquistado um espaço para o grupo no shopping Passo Alfândega em Recife.
FMA – E quem dá o suporte financeiro para tudo isso?
Rosana – Mais do que justo é citar o nome da Petrobras, que através da refinaria Abreu e Lima de Pernambuco financia as atividades do Projeto Hippocampus desde 2008, Isso possibilitou ao projeto dar um grande salto na aquisição do conhecimento sobre a história de vida dos cavalos-marinhos ao longo de nossa costa.
Este patrocínio é fundamental para que nossas atividades tivessem continuidade . Você sabe e a Folha do Meio Ambiente tem batido muito nesta tecla de que fazer pesquisa não é construir ponte ou viaduto. Ponte, se não se constrói hoje, se constrói amanhã. Pesquisa não: se você interrompe, perde uma série de informações e o trabalho terá que começar tudo de novo. Tem que ter continuidade.
PARA SOBREVIVÊNCIA DA ESPÉCIE
Cavalos-marinhos curiosidades e advertências
MACHO ENGRAVIDA – Estando grávido, os embriões começam o desenvolvimento na bolsa incubadora do macho. A duração do tempo de incubação dos filhotinhos depende da temperatura da água e devem durar entre 12 e 21 dias. Em regiões tropicais é de 12 dias. Nascem então os alevinos perfeitamente formados. Cada macho adulto pode incubar em sua bolsa cerca de 700 embriões, que ao nascerem são completamente independentes dos pais até para comer.
ALIMENTAÇÃO – Os cavalos-marinhos são carnívoros, tanto em ambiente natural como em laboratório comem muito e sempre seu alimento deve ser constituído por presas vivas, em geral animais microscópicos: rotíferos, copépodas e náuplios de Artemia (crustáceos).
HABITAT – No Brasil, os cavalos-marinhos habitam regiões estuarinas e águas costeiras de norte a sul, incluindo manguezais. Eles são animais de baixa mobilidade e podem ser encontrados com muita facilidade na maré baixa, agarrados à raízes dos mangues. Os manguezais têm uma importância ímpar na vida marinha, pois são os verdadeiros berçários da fauna dos mares.
ESPÉCIES EXISTENTES – No mundo todo existem aproximadamente 38 espécies e no Brasil temos somente três: H. reidi, o cavalo-marinho do focinho longo; o H. erectus, cujo focinho tem tamanho intermediário entre o H. reidi e o H. patagonicus. Os cavalos-marinhos, que são fontes de pesquisa no Projeto Hippocampus, em Porto de Galinhas, apresentam as mais variadas cores e tonalidades. Isso é explicado pelo fator genético, pois seus cromossomos carregam genes para expressar várias cores. Também o ambiente onde vivem determina muito as cores destes animais que costumam se confundir com algas e pedras para driblar seus predadores.
AFRODISÍACO? – A cultura popular diz que os cavalos-marinhos são bons para saúde humana, para curar unha encravada, câncer, doenças respiratórias e muitas outras doenças. E é aí que está o perigo, porque atraídos por estas fantasias farmacêuticas e pela fama de curadores, os cavalos-marinhos são caçados aos montes e vendidos como peças secas nos mercados pesqueiros por míseros R$ 5,00. Chegam a estar ameaçados de extinção.
ORNAMENTAIS – Evidente que além do comércio para remédios e simpatias, têm um outro comércio forte: peixes ornamentais para aquários. No exterior existem empresas fazendo o cultivo de cavalos-marinhos para venda como peixes ornamentais.
DEGRADAÇÃO – Aliado ao comércio desenfreado, existe uma outra grande preocupação: a degradação do ambiente, a poluição das áreas costeiras, o aterramento de mangues, a pesca predatória, tudo isso levou a espécie a entrar na lista dos animais ameaçados de extinção (IUCN- União Internacional para a Conservação da Natureza).
Projeto HIPPOCAMPUS – O projeto pesquisa a biologia dos cavalos-marinhos brasileiros em laboratório e em ambientes naturais para confecção de programas de manejo e repovoamento para as espécies.
ADVERTÊNCIAS
1 – Não comercialize, não compre e não use cavalos-marinhos como remédio e como decoração, pelo menos até que este animal sai da lista de espécies ameaçadas em extinção (IUCN) ou sobre-explotada (Ibama).
2 – Cuide das águas estuarinas, dos mangues e da água do mar. Eles precisam de muita qualidade de água para sobreviverem.
3 – Não retire estes animais de seus habitats.