Série Expedição Américo Vespúcio - 10
LENDAS DO VELHO CHICO – XIII
21 de fevereiro de 2013O Caboclo d’Água ou Nêgo d’Água
“Dizem também que o rio dorme na lua cheia, que nesses poucos momentos não se pode despertá-lo, pois as águas se enfurecem virando as canoas e inundando as terras. Não se deve, portanto desrespeitar o leve sono das águas”.
Caboclo d’Água ou Nêgo d’Água é um ser mítico que assombra os pescadores e barqueiros do rio São Francisco, virando e afundando barcos e prendendo na rede os pescadores. De uns tempos para cá descobriram o vinho das adegas. Para esconjurá-lo, os barcos trazem carrancas na proa e lançam fumo nas águas. Dizem que é um ser troncudo, musculoso, bronzeado, com grandes olhos despertos. Ele pode viver dentro e fora d’água, nunca se afastando das margens do rio junto às pedras, onde protege as matas ciliares.
É manhoso. Se não gosta de um pescador, afugenta os peixes, mas se o pescador lhe faz um agrado, ele o ajuda para que a pesca seja farta. Não gosta que as pessoas joguem lixo nas margens e dentro do rio, uma falta imperdoável, afogando nas profundezas o sujismundo. Ele também pode aparecer sob a forma de bichos.
É comum ver o Caboclo d’Água agarrado à beirada, tentando virar o barco. Então o pescador lança nas águas o fumo tirado da sacola. Num átimo o Caboclo d’Água dá uma cambalhota e uma risada e mergulha nas profundezas do rio. Sua companheira é a Mãe d’Água, amiga das lavadeiras. Barqueiro que a vê fica enfeitiçado e perde o controle do barco. São seres mitológicos que habitam o rio e não existem… e deixam de existir quando chega um novo dia.
Zanoni Neves é natural de Pirapora e escreveu um livro sobre os barcos e barqueiros. Eles acreditam que o rio dorme, fica imóvel em certos trechos, tudo parece estático e frio como um espelho, o cenário se enleva e tudo é pura magia:
O rio São Francisco dorme. Segundo os barranqueiros, à noite ele adormece: simplesmente ele deixa de correr. As cachoeiras não se precipitam. As corredeiras aquietam-se. Os peixes ficam mudos e acomodam-se nas profundezas. Toda a vida fluvial perde instantaneamente o seu pulsar, o seu movimento. Não se pode acordar o rio. Nesses momentos não se deve beber de sua água. É necessário esperar o seu despertar.
Os beiradeiros não sabem, com certeza, o dia e a hora em que o rio dorme: uma vez a cada ano, à meia noite – afirmam alguns. Outros dizem que o sono do rio dura apenas alguns minutos, mas acontece todas as noites. Quando o Velho Chico adormece, a Mãe d’Água vem à tona e, em silêncio, sentada nas “crôas”, coroas de areia, penteia seus longos cabelos. Então, vencido pelo encantamento e de volta ao pego do rio, o barqueiro canta:
Mãe d’Água, ai.
Mãe d’Água, ei.
Nas cachoeiras
Me socorrei.
Outra versão diz que o rio dorme na lua cheia, que nesses poucos momentos não se pode despertá-lo, pois as águas se enfurecem virando as canoas e inundando as terras. Não se deve, portanto desrespeitar o leve sono das águas.
Quando o rio dorme o caboclo d’água se acalma, as almas dos afogados sobem aos céus, a mãe d’água senta nas pedras e croas no meio do rio e enxuga os longos cabelos, os peixes param no fundo do rio e ficam mudos, as cobras perdem o veneno.
Qual seria o fundamento dessa lenda? É o chamado “pego do rio”. De Pirapora a Juazeiro-Petrolina existe carta náutica indicando o canal navegável, por entre pedras submersas e bancos de areia. Nas cheias o leito do rio é largo e regular, com estirões naturalmente navegáveis em boas condições.
No período da estiagem o pego ou talvegue corre entre ilhas e bancos de areia, que é desobstruído para a navegabilidade, mantendo a segurança da hidrovia. Existem também travessões rochosos e pedrais em alguns trechos, pedrais junto à margem e pedras isoladas no leito do rio, que são devidamente sinalizados e balizados, garantindo navegação segura. Nesses pontos é feita sinalização com bóias e placas fixas nos barrancos ora numa ora noutra margem. As cartas são elaboradas pela Capitania Fluvial do São Francisco.
TELVEGUE
Talvegue é o canal mais profundo do leito de um curso d’água. O termo significa “caminho do vale”. Pego (do gr. pélagos e latim pelagu) tem o mesmo significado, é a parte mais profunda de um rio, lago, etc.
Há que se mostrar às crianças todas essas belezas e diferenças. Em um roda-pé de Johann E. Pohl (Viagem no interior do Brasil), li que “os portugueses distinguem um rio navegável e um que só se navega durante a época das chuvas com nomes diferentes. O primeiro chama-se rio e o último ribeirão. Chamam a um riacho corgo ou córrego e a uma fonte olho”.
O timoneiro experiente segue o pego do rio, como o comandante do PIPES João Murilo e o prático Luiz Simas na Expedição Américo Vespúcio. Seguiram o canal, talvegue ou pego mesmo à noite, pelo brilho mágico da corrente profunda em meio às águas mais rasas.
O Luiz navegou feliz da vida porque seu sonho era conhecer Juazeiro; o máximo que descera até então era São Romão; ele vêm do tempo dos remeiros e já navegou em vapores, ajoujos, canoas e até rebocou barcos por meio de sirgas. O do auxiliar de bordo Aldenor foi descer este rio da nascente à foz, e do Murilo conhecer mais e mais rios deste Brasil. Niude P. Espírito Santo, a coordenadora da PIPES, conhece rios e mares.
Expedicionários e tripulação estão preocupados com as nuvens negras que ameaçam a bombordo. Para provocar, consultam o velho pescador Lico Paiva se vai chover. Recompondo o chapéu de lebre furado, cofia a hirsuta barba e dispara: “É só olhar prá cima e se o céu estiver sereré é sinal de chuva, vento ou outro tempo qualquer”.
PS: O rio São Francisco entre Pirapora e Juazeiro-Petrolina deixou de ser navegado regularmente pelo assoreamento, desde a Expedição Américo Vespúcio 2001. É resultado da redução das suas águas para uso múltiplo como abastecimento, irrigação e geração de energia. É bom saber que a água armazenada para hidrelétricas evapora-se. A essa redução antrópica soma-se outra lenta agonia também antrópica, causada pelo desmatamento para pastagens e das margens ciliares, da extinção de inúmeras nascentes de suas sub-bacias e pequenos afluentes.
De rio permanente nosso querido velho Chico pode se tornar temporário, a um passo, efêmero. Ontem, isso era isso impensável, hoje ainda é improvável, mas são tantas as intervenções agressivas do homem que, no futuro, se não chover o suficiente nas cabeceiras das Minas Gerais, tudo pode acontecer. Até o mar virar sertão.