Caminho de Goiás: imagens de satélites reconstituem rotas dos colonizadores

26 de março de 2013

Tese do arquiteto Antônio da Costa Santos estuda urbanização de Campinas e a rota das Entradas e Bandeiras

 

De acordo com o levantamento histórico executado pelo arquiteto, em locais como a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Arquivo do Estado de São Paulo, Centro de Memória da Unicamp e instituições de Portugal, Campinas e outras 19 cidades brasileiras foram criadas no contexto de restauração da Capitania de São Paulo pelo governador Luis Antônio de Sousa Botelho Mourão, o Morgado de Mateus. O Morgado de Mateus havia sido indicado em 1765 pelo Marquês de Pombal para restaurar a Capitania de São Paulo, extinta em 1750 e anexada ao Rio de Janeiro.
 
Anhangüera
No caso de Campinas, a criação da cidade – inicialmente a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso – foi estimulada pelo Morgado de Mateus, por sua localização estratégica, no traçado do Caminho de Goiás, aberto entre 1722/25 pelo bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera.
Para identificar o local exato onde estaria o primeiro pouso de tropeiros localizado no trajeto do Caminho de Goiás, e que deu origem a Campinas, Costa Santos recorreu aos relatos dos viajantes que passaram pela cidade nos séculos 18 e 19 e, depois, à tecnologia de ponta do Núcleo de Monitoramento Ambiental (NMA) da Embrapa. O NMA executa o sensoriamento remoto com a utilização de imagens de satélite, por exemplo para monitorar as queimadas em território brasileiro.
Para chegar ao trajeto do Caminho de Goiás, os especialistas do Núcleo da Embrapa examinaram inicialmente os mapas elaborados no século 18 sobre o território brasileiro e, em especial, a Capitania de São Paulo. Entre outros registros cartográficos estão preciosidades como um mapa elaborado entre 1743 e 1758, por Francisco Tosi Columbina.
O documento recebeu um nome quilométrico: "Mapa da Capitania de São Paulo e seu sertão em que se vêem os descobertos que lhe foram tomados para Minas Gerais como também o Caminho de Goiases com todos os seus pousos e passagens delineado por Francisco Tosi Columbina". Apesar das inevitáveis imprecisões, este e outros mapas da época "apresentam uma impressionante aproximação com os mapas atuais", constatou Evaristo Eduardo Miranda, coordenador de pesquisas do NMA-Embrapa.
De acordo com o pesquisador, as diferenças nascem entre outros motivos pelo fato de que na época a referência dos cartógrafos era o meridiano das Canárias, e não o de Greenwich que ainda não tinha sido traçado cientificamente. Os mapas antigos foram, então, sobrepostos aos atuais e a imagens de satélite, e a mapas específicos das rodovias – como a Via Anhangüera – que tiveram o traçado orientado pelo Caminho de Goiás.
Todos esses dados foram cruzados em um Sistema Geográfico de Informação. 
 
Caminho de Goiás
Houve ainda uma comparação com os relatos de viajantes ilustres que circularam pelo Caminho de Goiás nos séculos 18 e 19. O primeiro viajante foi José Peixoto da Silva Braga, alferes que participou da bandeira de Anhangüera que abriu o Caminho de Goiás. Depois vieram os relatos do francês Auguste de Saint-Hilaire e do engenheiro militar Luis D-Alencourt, ambos de 1818. 
Outros relatos utilizados foram os das viagens de D.Pedro II ao Interior de São Paulo, de Augusto Emílio Zaluar sobre as fazendas do café em 1860 e do suíço João Von Tschudi, que avaliou as condições dos migrantes suíços que vieram ao Brasil trabalhar na lavoura em substituição ao braço escravo.
O primeiro trecho já reconstituído do Caminho de Goiás é o trajeto da estrada que passa por Campinas, entre Jundiaí e Mogi Mirim. Neste trecho o Caminho de Goiás foi praticamente "engolido" pela urbanização e industrialização intensivas do interior paulista.
A intenção do NMA-Embrapa é prosseguir a reconstituição da estrada, por sua importância para o próprio processo de formação agrícola do Brasil. 
Foi ao longo do Caminho de Goiás que foram concedidas inúmeras sesmarias a pessoas próximas da Coroa Portuguesa. "A concessão das sesmarias está na base da atual estrutura fundiária do País", observa Evaristo Miranda.
Outro produto da reconstituição do Caminho de Goiás é o próprio desenvolvimento da metodologia de releitura da cartografia colonial, à luz dos recursos tecnológicos que apontam para o século 21. O coordenador de pesquisas do Núcleo da Embrapa nota que, com base nessa metodologia, é possível reconstituir com maior precisão outras trilhas fundamentais para o processo de formação do Brasil.
É o caso do legendário Peabiru, igualmente uma trilha indígena que ligava o litoral de São Paulo e do Paraná ao Interior do Brasil e que foi uma das rotas que orientaram o sonho de Portugal em chegar às mitológicas minas de prata do Peru, o que naturalmente gerou vários conflitos com a rival Espanha.
 
Reconstituição permite mapeamento de conflitos
 
Embora não seja o objeto específico do trabalho do arquiteto Antônio da Costa Santos e do NMA-Embrapa, a reconstituição do Caminho de Goiás e de outras rotas dos colonizadores nos séculos 18 e 19 vai permitir um mapeamento mais exato dos múltiplos conflitos provocados pelo contato entre a sociedade branca e os povos indígenas brasileiros, sobretudo durante o período da exploração do ouro em Minas Gerais e região central do país.
A corrida ao ouro no século 18, a partir do litoral de São Paulo, seguia dois eixos centrais. Um deles seguia o trajeto do rio Tietê a partir da cidade de Porto Feliz, de onde saiam as chamadas monções. As barcas utilizadas no percurso eram fabricadas com as madeiras das margens do rio Tietê e, depois, do rio Piracicaba. Foi o início do desmatamento nessa região do centro-Oeste paulista. O outro roteiro era o do Caminho de Goiás, que saía de São Paulo e passava pelas cidades de Jundiaí, Campinas, Mogi Mirim, Franca, por localidades no Triângulo Mineiro e, finalmente, povoações em Goiás, bem próximo ao atual Distrito Federal.
Como forma de "proteger" o precioso Caminho de Goiás de ataques indígenas, diferentes governos formaram verdadeiras milícias, que eventualmente foram protagonistas de massacres contra os povos nativos.
Conflitos particularmente sangrentos foram registrados entre o Triângulo Mineiro e a região central de Goiás, envolvendo bandeirantes e em especial os índios Cayapó.
No estado de São Paulo os principais conflitos aconteceram ao longo do Caminho de Goiás, no trecho entre os rios Pardo e Grande. Segundo documentos levantados por Odair Giraldin e divulgados em seu livro "Cayapó-Panará – Luta e sobrevivência de um Povo Jê no Brasil Central", publicado pela Editora da Unicamp, várias bandeiras foram organizadas durante o período de governo de Morgado de Mateus.
Em 1772, uma bandeira foi formada pela própria Câmara Municipal de Mogi Mirim e comandada por José Gomes de Gouvea, que depois foi nomeado por Morgado de Mateus como comandante da Fortaleza de Iguatemi. Em 1790 e 1804 a Câmara de Mogi Mirim receberia novos apelos, respectivamente dos capitães-generais Bernardo José de Lorena e Antônio José da Franca e Horta, para a formação de Companhias de Ordenanças destinadas a defender os moradores "atacados pelo gentio que infesta o mesmo sertão" (sic).
Em 1809, ainda segundo Odair Giraldin, a freguesia de Conceição da Franca foi elevada à Vila (e depois cidade de Franca) em reconhecimento  do governo da Capitania aos esforços dos moradores do local no combate "ao gentio, que ainda não havia muitos anos infestou (sic) aquela  estrada (o Caminho de Goiás), matando e roubando os viandantes", nas palavras usadas pelo capitão-general Franca e Horta.
 
 
Reconstituição revela plano estratégico de Lisboa
Marquês de Pombal queria defender a colônia das invasões espanholas e 
proteger as rotas dos ataques dos índios
 
 
A reconstituição histórica que vem sendo feita do período do Morgado de Mateus à frente da Capitania de São Paulo revela que 20 importantes cidades brasileiras, da região Centro-Sul do País, foram criadas não ao acaso, mas seguindo um engenhoso plano estratégico concebido em Lisboa, durante o governo do Marquês de Pombal. 
O objetivo da criação dessas cidades era nitidamente consolidar a ocupação da região Centro-Sul do país, ainda ameaçada no século 18 pelas incursões espanholas. Para consolidar esse objetivo o governo de Morgado de Mateus inspirou a criação de freguesias e vilas com uma concepção militarista. O traçado da maioria dessas povoações seria semelhante ao de uma fortaleza. Com essa povoações, o Morgado de Mateus também pensava em estimular a fixação do colonizador no campo, em atividades agrícolas, em substituição ao mero extrativismo – de pau-brasil e de metais preciosos – dos primeiros anos da colonização.
O duplo desafio do Morgado de Mateus, de proteger os limites da frente Sul brasileira e enviar recursos para a reconstrução de Lisboa, destruída por um terremoto em 1755, foi assumido pelo próprio Luis Antônio de Sousa Botelho Mourão, em seu discurso de posse como governador da Capitania de São Paulo, em 1765. No discurso, está sinalizado o uso de instrumentos militares e o incentivo à agricultura, indicando-se perfeitamente o roteiro que iria culminar com a criação de cidades como Campinas.
Dizia o Morgado: "Foi Sua Majestade servido de me mandar com o governo desta Capitania, encarregando-me de procurar por todos os meios estabelecê-la ao seu antigo esplendor, procurando os modos mais eficazes de acrescentar as suas povoações, estender aos confins dos seus domínios, fertilizar os campos com a agricultura, estabelecer nas terras diferentes fábricas, idear novos caminhos, penetrar incógnitos sertões, descobrir o ouro das suas minas e finalmente fortificar as suas praças, armar o seu exército, fazer observar as leis e respeitar as justiças".
No plano militar, a principal iniciativa do Morgado foi a estruturação da Colônia de Nossa Senhora dos Prazeres do Iguatemi, uma fortaleza às margens do rio Iguatemi, em local hoje correspondente ao Sul do Mato Grosso do Sul, perto da fronteira com o território espanhol dos atuais Bolívia e Paraguai.
Uma expedição para a fundação da Colônia desceu o rio Tietê a partir do final de julho de 1767, sob o comando do capitão-mor João Martins de Barros. Para garantir o fornecimento de provisões para a fortaleza, o Morgado de Mateus incentivou a criação de Freguesias, e a primeira delas foi Piracicaba, fundada a 10 de agosto de 1767, pelo ituano Antônio Corrêa Barbosa.
Piracicaba e a Colônia tinham até a mesma padroeira, Nossa Senhora dos Prazeres, a exemplo da cidade de Lages, em Santa Catarina, fundada antes mesmo da fortaleza de Iguatemi, em 1766, por Antônio Corrêa Pinto, também sob orientação do governador de São Paulo.
Dentro do plano estratégico da Coroa Portuguesa, o território que correspondia ao coração do Estado de São Paulo foi reservado à fixação da agricultura, e em particular do açúcar, produto que alcançava na época grande valor no mercado internacional. Portugal e a aliada Inglaterra tinham igualmente o interesse de golpear o pólo açucareiro hispânico na região do Caribe.
O panorama de estímulo à consolidação da agricultura, são criadas, entre outras, Itapetininga e Botucatu, além da elevação de Mogi Mirim e Atibaia. Como eixo central do Quadrilátero do Açúcar, que tinha como vértices Piracicaba, Itú, Atibaia e Mogi Mirim, foi finalmente criada Campinas, em 1774, como um dos últimos atos de Morgado de Mateus, que deixou o cargo um ano depois, cumprido o objetivo de subsidiar a reconstrução de Lisboa, concluída exatamente em 1775.
Em termos espaciais, a autorização para a criação de Campinas também não foi por acaso, como sustenta o arquiteto Antônio da Costa Santos em sua tese de doutorado na USP. O Morgado de Mateus já sabia da existência do arraial pelo mapa de Francisco Tosi Columbina, confeccionado entre 1743 e 1758. Além disso, o governador da Capitania conhecia detalhes das riquezas da região de Campinas, e portanto da importância de garantir a sua ocupação, em razão de um documento escrito por seu amigo pessoal, Pedro Taques de Almeida Paes Leme.
O autor de "Notícias das Minas de São Paulo e dos Sertões da Mesma Capitania" era filho de Bartolomeu Paes Leme, bandeirante sócio de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, a quem se atribui a abertura do Caminho de Goiás, na década de 1720. Ao designar Barreto Leme como fundador de Campinas, o Morgado tinha, neste sentido, uma noção exata da importância de garantir o povoamento naquele ponto do Caminho de Goiás.
A concepção estratégica que norteou a criação de Campinas fica clara no próprio bando, versão colonial do atual decreto, com que o Morgado orienta a fundação da cidade. Dizia o bando: "Seja formada em quadras de sessenta ou oitenta varas cada uma e daí para cima, e que as ruas sejam de sessenta palmos de largura".
Este formato sugeria o estabelecimento de ruas de cerca de 60 a 80 metros, mesma dimensão das quadras da fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres do Iguatemi, criada quase uma década antes de Campinas.
"Campinas e a colônia foram criadas sob a mesma concepção político-militar, inclusive porque as duas comunidades na época estavam localizadas em plena floresta tropical ainda intacta", ressalta Costa Santos.
O arraial que se transformaria na Freguesia de Campinas tinha, inclusive, uma vinculação espacial impressionante com a fortaleza de Iguatemi, acrescenta o arquiteto. De fato, uma linha hipotética ligando.
Campinas a Iguatemi segue praticamente a mesma trajetória do Trópico de Capricórnio, referência importante para qualquer projeto de orientação geopolítica e militar no século 18. Todos esses ingredientes, acredita Costa Santos, "sem dúvida vão merecer estudos mais aprofundados dos historiadores". A Colônia de Iguatemi, arrasada em 1777, é hoje uma área ocupada por uma comunidade de índios guarani.
 
Mais informações: MMA-Embrapa: 
(019) 252-5977 / 253-1363
 
Summary
 
Satellite image, geoprocessing systems, digital cartography and other new generation technologies are being used to reconstruct the Highway of Goiás, one of the main routes to the gold mines of the Central-West region in the 18th Century.  The remapping of the trajectory of the Highway of Goiás is the starting point for the analysis of the historical process of the occupation of São Paulo and other Brazilian states in Colonial Brazil, including the investigation of the conflicts provoked by the clash between the presence of the colonizers and the values of the indigenous societies.
The proposal for the remapping of the Highway of Goiás, or Goiases as it was known two centuries ago, was born out of historical research conducted by the architect Antônio da Costa Santos for his doctoral thesis at the College of Architecture and Urban Studies of the University of São Paulo.
The objective of the thesis is to show the various stages of the urbanization of Campinas up to the present.  According to the historical analysis of the architect – carried out in such places as the National Library of Rio de Janeiro, the State Archives of São Paulo, the Center for the Memory of Unicamp, and other institutions in Portugal– Campinas and 19 other Brazilian cities were formed in the context of the restoration of the Port Authority of São Paulo by the governor Luis Antônio de Sousa Botelho Mourão, known as Morgado de Mateus. This Morgado de Mateus was appointed in 1765 by the Marquês de Pombal to restore the Port Authority of São Paulo, defunct in 1750 and annexed by Rio de Janeiro.