Descobridores do Brasil

MARIANNE NORTH

19 de abril de 2013

CARTAS DO PASSADO: aturalistas viajantes têm olhar especial na formação da nação brasileira

 
Nada se compara às 112 pinturas a óleo de Marianne North, reunidas pela primeira vez no catálogo raisonné de sua obra brasileira realizada nos anos 1872-1873.
 
 
 
 
 
 
 
Marianne North
 
 
Nenhum dos artistas viajantes do século XIX foi capaz de retratar a paisagem e a flora brasileiras com a intensidade e o colorido dos óleos da pintora inglesa Marianne North
 
Em 2001, a Fundação João Pinheiro de Belo Horizonte, publicou uma edição sobre a desenhista com título muito sugestivo: Marianne North – Memórias de uma Vida Feliz. E sua felicidade continua a contaminar os amantes da natureza ao longo de mais de 123 anos.
 
Marianne North nasceu em 1830 e morreu em 1890, na Inglaterra vitoriana. Seu pai era um rico magistrado e várias vezes membro do Parlamento inglês. Marianne teve poucos meses de educação formal e sua aptidão artística se manifestou inicialmente nos estudos de piano e canto, quase obrigatórios para as jovens inglesas de seu nível social. Desde muito nova desenvolveu sozinha seu gosto pela pintura, mais adequada à sua timidez exagerada. Sua família viajava extensivamente e, depois da morte da mãe em 1855, Marianne assumiu os cuidados domésticos com o pai e os irmãos. Suas viagens foram então enriquecidas pelas anotações em um diário e em blocos de desenhos.
 
Com o casamento de sua irmã mais nova, Catherine, e a perda da representação parlamentar do pai em 1865, os destinos das viagens se expandiram até o Egito e a Síria. Aprendeu as técnicas de pintura a óleo e abandonou as aquarelas. A jardinagem, os estudos botânicos e a pintura já faziam parte de sua vida, quando a morte do pai em 1869, desfez as peripécias aventurescas da dupla. Solteira, rica e beirando os 40 anos, retirou-se por um tempo do convívio social para digerir sua perda. Decide então a dedicar sua vida à pintura de plantas e flores em seu ambiente natural.
 
Era amiga de Joseph Hooker e Francis Galton – primo de Darwin – e do próprio Darwin, que a incentivou a visitar a Austrália. Pintou quase mil espécies de plantas, algumas desconhecidas pela ciência e descritas com base em seus desenhos, reconhecimento inconteste à sua precisão científica. Projetou e bancou a construção de uma galeria para exposição permanente de seus quadros, pela qual recebeu carta de agradecimento da rainha Vitória.
 
Em 1885 viaja para o Chile, para pintar in locu a Araucaria imbrigata, lacuna em sua coleção que a incomodava. Já mostrava sinais da saúde debilitada e, a partir de 1887 até sua morte em 1890, cuidou de sua casa/jardim sempre amparada por sua sobrinha favorita, seus amigos e sua irmã Catherine, que editou postumamente suas memórias, publicadas em dois volumes com o romântico título de “Recollections of a Happy Life”. As partes de maior interesse para o leitor brasileiro foram publicadas, em 2001, pela Fundação João Pinheiro em uma linda edição: ‘MARIANNE NORTH – Memórias de uma Vida Feliz”.
 

 

 

Depois de viajar pela América do Norte e iniciar uma coleção de plantas tropicais na Jamaica, decide continuar sua coleção no Brasil. Chega ao Nordeste no final de agosto de 1872, após 20 dias de travessia do Atlântico em um cargueiro a vapor da marinha inglesa. Passa por Recife e Salvador. 
“Ele (o vapor Neva) nos levou a salvo, em mais dois dias, à linda baía do Rio, que certamente é a paisagem mais adorável do mundo: mesmo Nápoles e Palermo devem se contentar com um segundo lugar em termos de beleza natural”, constata.
 
Hospeda-se em um hotel em Botafogo. Maravilhada com as paisagens tropicais, realiza excursões diárias pelos arredores do Rio. Durante uma excursão ao Corcovado, conhece o Sr. Gordon, gerente das minas de Morro Velho, e sua filha Mary, que a convidam para viajar por Minas Gerais. Pela delicadeza do convite, ela se dispõe a viajar ‘uns 15 dias’ por Minas, provocando riso nos anfitriões. Ficou quase um ano. “(…) algumas pessoas tinham me dito no Rio que eu não deveria ir de jeito nenhum, algumas fizeram o que puderam para me impedir, e um escocês tinha dito que eu ‘não encontraria nada para pintar em Minas’.” 
Seu relato dos meses passados em Minas é espontâneo, espirituoso, informal e um século antes do polìticamente correto. É tão saboroso quanto as pinturas que realizou. O olhar de uma mulher viajante no século XIX, acostumada a países em plena industrialização, que sai do Rio em um trem a vapor, chega a Juiz de Fora em uma carruagem e, a partir daí, tem que viajar sob chuva torrencial em lombo de burro para o interior de Minas constitui verdadeiro roteiro cinematográfico. Marianne sempre mantém o bom humor e dedica parágrafos inteiros para descrever a mula Moeda, sua parceira na viagem, e seus companheiros caninos, Garibaldi, na Inglaterra, e o mineiro Lopez.
 
Em Minas, MarianNe fica 8 meses e aprende até a fazer cigarro de palha
 
Próximo a Barbacena, Marianne presencia a fabricação incipiente do tradicional cigarro de palha. “Eles são enrolados com a maior precisão em folhas de milho e amarrados com fitas coloridas em pequenos feixes lindos; as moças dessa casa faziam isso tão bem que as notícias eram de que eram proibidas de se casar ou de deixar o trabalho sob qualquer pretexto”. Retribui a hospedagem com um recital de piano e canto, que emociona o barão às lágrimas. “Isso o afetou tanto mais tarde que ele colocou a ponta errada de seu charuto na boca e a queimou; não admira que chorasse!”
 
Já em Morro Velho, testemunha a origem de um problema que nos aflige ainda hoje: o menor abandonado. “Todas as crianças (filhos de escravos) nasciam livres, a conseqüência era que as mães não cuidavam mais delas, pois, como elas diziam, elas não valiam nada agora! Nos ‘bons tempos’, quando as crianças pretas eram artigos de comércio, os donos costumavam fazer com que cuidassem delas. As mães não viam por que elas deveriam se incomodar com isso agora”.
 
Em Sabará, hospeda-se na casa de uma mulher morena que, segundo a senhora Gordon, “… para uma brasileira, ela era uma mulher muito respeitável’. Marianne anota: “Em frente à sua casa vimos um quarto cheio de pretinhos notavelmente limpos, todos vestidos da mesma maneira, e um homem vestido com apuro excessivo e de aspecto doentio tomando conta deles. Era um mercador de escravos, que comprava meninos crescidos com mais de 12 anos para o mercado do Rio. (…) Esses meninos pareciam muito felizes, como se gostassem do processo de engorda”.
 
Sobe a Serra da Piedade e permanece algumas semanas em Caeté. Descreve seu encontro com um gambá e lamenta o desenlace: “O coitado do bichinho (…) foi corajoso demais para fugir, e, sinto dizer, foi morto sem piedade por nossos dois cavalheiros, que tinham corrido em nosso socorro”. Trava contato também com “a mais intolerável das pragas”: o carrapato.
 
Visita Ouro Preto e Mariana e recupera o método usado pelos escravos para conseguir ouro para a construção de suas igrejas “... com a lavagem das cabeças dos negros. Quando paravam de trabalhar nas minas ao fim do dia, suas cabeças lanuginosas eram primeiro polvilhadas com pó de ouro e então eram mandados para serem enfiadas nas fontes das igrejas – uma maneira original de se pagar o dízimo!”.
 

As fortes cores e a beleza exótica de uma Flor Imperial e de uma cobra coral

Realiza um piquenique no topo da Serra do Curral e parte em 21 de maio de 1873, com o Sr. Gordon, Mary, um cavalheiro inglês e o inseparável Lopez, para conhecer “as cavernas de Curvelo” (Gruta de Maquiné). Ao passar pela região onde hoje está Belo Horizonte, anota: “Pelas estradas íngremes abaixo e acima encontramos uma dúzia ou mais de grupos de bois, arrastando árvores enormes por meio de duas rodas feitas de segmentos sólidos de árvore presos com ferro. Havia sempre 20 ou mais dos pobres animais em cada grupo, lutando e gemendo, com um exército de escravos cutucando-os com aguilhões e gritando com eles. Era um dos quadros mais dolorosos de se ver”.

 
LAGOA SANTA
Em Lagoa Santa, “um lençol de água raso se enchendo aos poucos”, questiona “que encanto teria segurado o famoso naturalista dinamarquês Dr. Lund aqui por mais de 40 anos”. Seu encontro com o cientista, já na casa dos 70 anos, é narrado vividamente e deixa um gosto de querer mais:  “… mas agora seus hábitos eram os de um inválido e ele raramente ia além de seu jardim e nunca saía de seu quarto antes do meio-dia, quando gostava de se sentar em seu porto e conversar, o que fazia bem em muitas línguas. Seu inglês era espantoso, considerando que tinha aprendido apenas nos livros. Ele tinha uma boa biblioteca e algumas vezes durante a conversa saía mancando casa adentro para procurar um livro e nos mostrar a autoridade que confirmava o que ele estava dizendo”.
O grupo dedica alguns dias na exploração das grutas. Formações calcáreas e bizarrices humanas são prato cheio para suas anotações.
Ao retornar, passa por Sete Lagoas, “um povoado baixo perto de um pântano e lagoas, que dão uma vontade de tomar quinino, mas dizia-se que não eram insalubres”. Novamente em Lagoa Santa, não reencontra o Dr. Lund, “já que o velho cavalheiro nunca saía de sua concha antes do meio-dia”. Chega ao Colégio do Caraça, passando por Santa Luzia e pela Serra da Piedade. O padre Júlio, superior do Colégio, “… desceu antes das sete para olhar meus desenhos e me dar os nomes de muitas das plantas estranhas que eu tinha estado caçando por tanto tempo. Levou-me para ver a biblioteca e o jardim, e me disse que eu era a primeira mulher a entrar lá em 17 anos”.
 
Na volta ao Rio, não se detém mais em Morro Velho, que deixa pela última vez em dois de julho. Com seu jeito tímido de conter as emoções, demonstra alguma tristeza em sua despedida: “A mata do Gongo tinha perdido muito de sua beleza durante essa estação fria e seca; mais árvores tinham perdido suas folhas do que eu esperava num país tropical, e as flores eram muito raras. Fiquei bem contente com isso, pois me fez sentir menos abandonar uma região tão adorável, e levei comigo a esperança de rever meus amigos gentis na Inglaterra”.
De passagem por Conselheiro Lafaiete, atesta: “A cidadezinha de Queluz é famosa por seus violões, e os vi sendo feitos em algumas das casas”. Em Juiz de Fora, toma novamente a carruagem lotada que a leva a Petrópolis.
 
Com o Imperador
Vai ao Rio com o objetivo de se encontrar com o Imperador. Eis seu depoimento: “O imperador é um homem que vale algum esforço conhecer, mesmo se ele fosse o mais pobre dos cavalheiros comuns; é eminentemente um cavalheiro e cheio de informação e conhecimento geral sobre todos os assuntos. Ele leva mais a vida de um estudante que aquela a que os príncipes em geral se condenam. (…) Ele gentilmente me concedeu um encontro especial pela manhã e passou mais de uma hora examinando minhas pinturas e as discutindo, dizendo-me os nomes e as qualidades das diferentes plantas que eu mesma não sabia. Então pegou aquilo tudo (nada leve) em seus braços e levou para mostrar para a imperatriz, dizendo-me segui-lo. (…) Ambos tinham cabelo branco prematuro, causado pelo sofrimento de perder a filha e a guerra miserável no Paraguai”.
 
Cada Rocha, uma coleção
Visita uma vez mais o Imperador e refugia-se em Petrópolis, decidida a “dar pelo menos uma olhada na Serra dos Órgãos”. Contrata um guia e toma mais uma vez a carruagem de Juiz de Fora para chegar a Teresópolis. Pinta deslumbrada. “Cada rocha abriga uma coleção botânica digna de guarnecer qualquer estufa na Inglaterra”. 
Por uma gentileza inesperada do ‘melhor guia que se podia desejar para uma viagem dessas”, registra seu nome em seu diário: José Luiz Corrêa. 
Três dias depois já estava a bordo de um vapor rumo à Inglaterra. Desembarcou em Southampton no dia 14 de setembro, um ano e um mês depois de sua saída.