Olhar de Darwin Sobre o Brasil
23 de maio de 2013O encanto pela natureza tropical e o desencanto pela escravatura no Brasil.
O Beagle partiu da Inglaterra no final de dezembro de 1831 e retornou em setembro de 1836. O desajeitado rapaz de 22 anos transformara-se em naturalista respeitado. Seus relatos haviam sido publicados e lidos nas sociedades científicas inglesas. Darwin significou um divisor de águas: o mundo científico seria outro depois de Darwin.
“Na história da humanidade, não foram os animais mais fortes que sobreviveram. Foram aqueles que souberam se adaptar ao ambiente e aprenderam improvisar.” “O homem ainda traz em sua estrutura física a marca indelével de sua origem primitiva.” Charles Darwin
Em 29 de fevereiro de 1832, Darwin chega a Salvador. A exuberância da floresta tropical o impressiona: “O dia transcorreu deliciosamente. Delícia, no entanto, é termo insuficiente para dar conta das emoções sentidas por um naturalista que, pela primeira vez, se viu a sós com a natureza no seio de uma floresta brasileira. A elegância da relva, a novidade das plantas parasitas, a beleza das flores, o verde vivo das ramagens e, acima de tudo, a exuberância da vegetação em geral me encheram de admiração. (…) Para uma pessoa apaixonada pela história natural, um dia como este traz consigo uma sensação de prazer tão profunda que se tem a impressão de que jamais se poderá sentir algo assim outra vez”.
Passa por Morro de São Paulo e por Abrolhos e chega ao Rio de Janeiro no dia 4 de abril. Participa de uma excursão por terra até Cabo Frio. Ao atravessar de balsa provavelmente o rio Macaé, anota um episódio que o marca fortemente e “que me impressionou muito mais intensamente do que qualquer história de crueldade que eu pudesse ter ouvido. Certo dia, tomei uma balsa em companhia de um negro que era singularmente estúpido. Para ser compreendido, passei a falar alto e a me expressar por meio de sinais. Em algum momento, devo ter passado a mão perto demais de seu rosto. Ele, suponho, julgando que talvez eu estivesse irado e fosse acertá-lo, deixou os braços penderem, a fisionomia transfigurada pelo terror, os olhos semicerrados. Jamais poderei esquecer as sensações que em mim brotaram, mescla de surpresa, repulsa e vergonha por ver um homem tão grande e poderoso amedrontado demais para se esquivar sequer da pretensa bofetada que ele achava que iria receber no rosto”.
No Rio, reside em uma quinta em Botafogo, “bem debaixo da famosa montanha do Corcovado”. Visita o Jardim Botânico e coleciona enorme número de insetos. Em julho, o Beagle parte do Rio em direção à Bacia do Prata. Para completar a medição cronométrica do mundo, o Beagle retorna ao nordeste do Brasil em agosto de 1836. “Fiquei feliz ao descobrir que o meu prazer no cenário tropical não tinha diminuído pelo desejo da novidade, nem mesmo no menor grau. (…) Quem, quando examinando no gabinete de um entomologista as alegres e exóticas borboletas e singulares cigarras associará a esses objetos desprovidos de vida a incessante e dura música das últimas e o vôo preguiçoso das primeiras – acompanhamentos seguros do pacato e brilhante meio-dia dos trópicos?”, questiona.
Grosseria em Olinda
Em Olinda, depara com algo inédito em seu périplo de quase cinco anos: uma grosseria. Anota magoado: “Devo aqui observar algo que aconteceu pela primeira vez em quase cinco anos de andanças: deparei-me com uma falta de cortesia. Fui recusado de forma bastante rude, em duas casas e em uma terceira obtive com dificuldade permissão para passar por seus jardins e chegar até uma colina não-cultivada com o intuito de ver a região. Fico feliz que isso tenha acontecido na terra dos brasileiros, pois não nutro por eles qualquer simpatia – uma terra de escravidão e, portanto, de corrupção moral”.
Em sua análise final ao rumar para a Inglaterra, não alivia a crítica às injustiças sociais que testemunhou: “No dia 19 de agosto, finalmente deixamos as praias do Brasil. Agradeço a Deus e espero nunca visitar outra vez um país escravocrata. Até hoje, se ouço um grito longínquo, lembro com dolorosa nitidez do que senti quando passei por uma casa perto de Pernambuco. Ouvi os mais terríveis gemidos e suspeitei que algum pobre escravo estivesse sendo torturado mas sabia que não havia nada que eu pudesse fazer, senti-me impotente como uma criança.
Escravo maltratado no Rio
(…) Perto do Rio de Janeiro, morei em frente a uma velha senhora que guardava tarraxas para esmagar os dedos de suas escravas. Fiquei em uma casa onde um jovem mulato era diariamente e a cada hora maltratado, espancado e atormentado, de um modo suficiente para aniquilar o espírito do animal mais miserável. Vi um garotinho de seis ou sete anos de idade ser atingido três vezes na cabeça por um chicote de açoitar cavalos (antes que eu pudesse interferir) simplesmente por ter me alcançado um copo de água que não estava bem limpo. Vi seu pai tremer apenas com um relance do olhar de seu mestre. (…) Vi, no Rio de Janeiro, um negro forte temeroso de se proteger de um golpe direcionado, como ele pensou, a seu rosto.
Estive presente quando um homem de bom coração estava prestes a separar para sempre homens, mulheres e crianças de um grande número de famílias que por muito tempo haviam vivido juntas. Em verdade, nem teria mencionado tais revoltantes detalhes, se não tivesse encontrado tantas pessoas cegas pela alegria de viver associada ao negro, a ponto de falarem da escravidão com oum mal tolerável. Tais pessoas normalmente freqüentam as casas das classes superiores, onde os escravos domésticos são em geral bem tratados, e não testemunharam, como eu, o que são as condições nas classes mais baixas. Esses inquiridores perguntam aos escravos sobre suas condições. Esquecem que somente um escravo muito estulto não considera a probabilidade de sua resposta chegar aos ouvidos de seu dono. (…)
Esses atos são praticados e mitigados por homens que professam amar o próximo como a si mesmos, acreditar em Deus e rezar para que Sua vontade seja feita na terra! Faz o sangue ferver e o coração palpitar pensar que nós ingleses, e nossos descendentes americanos com seu orgulhoso grito de liberdade, foram e são tão culpados em relação a esta hediondez”. O ‘Filósofo’, embasado em observações meticulosas e em conclusões corajosas, estava a caminho de alterar fundamentalmente nossa percepção sobre nossas origens.