Peter Wilhelm Lund (', 1801-1880)

PETER LUND

20 de junho de 2013

O viajante seduzido pela natureza brasileira

 
Para os parentes e amigos dinamarqueses ele era Wilhelm. Para os brasileiros era chamado carinhosamente por doutor Lund. Para o mundo científico ele é o naturalista Peter Wilhelm Lund. E para pesquisadores, como o professor Cástor Cartelle, da PUC-MG, e estudiosos da espeleologia, da paleontologia e da arqueologia ele é considerado o pai destas três ciências. Seu trabalho final em medicina, em 1824, foi adotado como livro-texto em universidades européias e antecipou o reconhecimento que o cientista teria no futuro. Uma boa herança, administrada criteriosamente por seu irmão que diretor do Banco Nacional da Dinamarca, permitia a independência financeira para custear suas viagens e explorações.
 
 
 
“É impossível explicar os diferentes tipos de sentimento, a quase alegria misturada com uma melancolia impronunciável que me invadia quando, sob a brisa refrescante após o pôr-do-sol, acabávamos o trabalho do dia deitando em nossos couros de boi, enquanto o puro céu estrelado livre de qualquer interferência humana lançava o seu manto gelado sobre as nossas cabeças. Vozes noturnas em incessante variação ressoavam de florestas nas proximidades, e os seus tons misteriosos  provocaram surpresa e temor, mantendo-me acordado por diversas horas até que o farfalhar das folhas de buriti me fizessem cair no sono, do qual eu só despertaria graças ao som de milhares de pássaros cantando a alvorada” .  
 
 
 
Gruta Maquiné na visão de Peter Lund: “Os esplêndidos reflexos produzidos pela luz, ferindo as inúmeras facetas destes cristais, deslumbram a vista, de modo que o homem se julga transportado a um palácio de fadas”.
 
Peter  Wilhelm  Lund
 
Motivado pelos relatos de Humboldt, que percorreu a América Espanhola no início do século XIX, Peter Wilhelm Lund  parte em 28 de setembro de 1825 para o Brasil, terra interdita aos naturalistas estrangeiros até a mudança da Família Real em 1808.  Lund chega ao Rio de Janeiro em oito e dezembro, durante os festejos de comemoração do nascimento do futuro imperador. 
Pianista e dançarino, evita o Rio, pois a vida social e o calor impedem seus estudos. Hospeda-se em Niterói, com a mesma família francesa que recebera Saint-Hillaire alguns anos antes. Viaja para Nova Friburgo, onde permanece alguns meses:
 “Para chegar lá levamos quatro dias cavalgando de manhã até a noite. Atravessávamos rios com a água subindo até a cintura em uma forte corrente e sobre  pedras lisas arredondadas com que o fundo era coberto, tornando tremendamente difícil controlar os cavalos. Logo à frente, os cavalos tinham que enfrentar uma légua inteira dentro do lodo com a lama subindo até os seus quartos. O último dia foi especialmente difícil, quando tivemos que atravessar uma cadeia de montanhas de 6.000 pés de altura”.
 Depois de uma temporada em uma fazenda de nome Rosário, mais no interior, retorna para o povoado de pesca Taipu, na região do Rio, para preparar seu regresso à Europa.
 
 
 
 
 
 
Cartas de LUND
Respeito pela espingarda… Estranheza pelo modo de comer com garfo e faca…
 
Em carta para a mãe, comenta:
“Tu podes crer que levo uma estranha existência. Fico em casa o dia todo cercado por  gente que não pode compreender para que servem minhas ocupações. No início, eles quase pensaram que eu era meio louco, mas desde então, quando perceberam que eu  podia ler e escrever, adquiriram mais respeito por mim. O cirurgião aqui da cidade com quem eu tive, pode-se dizer, conversações científicas, admitiu que este maldito inglês era mais esperto do que ele próprio. O professor da escola anunciou o mesmo em latim, que ele realmente não sabia muito. Mas eles me respeitavam especialmente  por causa da minha espingarda, que dava fogo sem pedra, o que simplesmente não conseguiam explicar. A primeira vez que saí para caçar pássaros, vi uma cobra diante de mim, e tu podes acreditar, eu fiz o possível para preservar a minha reputação.Também aconteceu que, logo que voltei alardeava-se em toda a cidade que o inglês havia atirado sem falhar em treze pássaros. 
Minhas refeições eram muito simples, compostas de peixe, um pouco de farinha e nada diferente. Mas deve ter parecido para o povo do lugar como se fosse um jantar real. Eles rodeavam as minhas janelas e expressavam mutuamente de forma audível toda a sua estranheza com os meus modos de comer com garfo e faca, pois os brasileiros comem com os dedos. Toda tarde eu  posso ouvir contarem na venda que a maior novidade da cidade é quantos peixes o inglês comeu naquele dia”.
 
Coleta plantas, mamíferos, insetos e 185 espécies de aves. Um pássaro em especial é alvo de seu interesse: o tangará. Cria a fama de bom caçador e uma fascinação pelo bicho-preguiça, que manteve ao longo de toda a vida.  Em carta para os familiares, pede discrição sobre seus manuscritos e em carta para um amigo, exige segredo sobre seu encontro com uma cascavel, para não preocupar mais ainda sua mãe.
Em janeiro de 1829 regressa à Europa, por onde perambula até 1831. Na Itália, como confidencia a seu filho adotivo Nereo, décadas mais tarde, perde seu coração para uma jovem, mas não pode pensar em casar-se pois já estava decidido a voltar para o Brasil. 
 
Sobre um desfile de Carnaval, que o encanta, anota o o espírito da festa: “Indelével será para sempre a impressão desta verdadeira festa popular na minha lembrança. Mas acredito também que poucos espectadores se sentiram tão  profundamente tocados quanto eu, que há muito tempo tenho me referido à humanidade como o nível mais baixo no sentido intelectual e moral, o que quase obscureceu a minha mente. Fiquei, portanto, extremamente surpreso com a cena que  parece representar a raça humana na sua condição original de inocência infantil”.
 
MORTE DE SUA MÃE – Recebe a notícia do falecimento de sua mãe. Começa a questionar sua transferência para algum lugar de clima mais quente, para fugir do frio nórdico que causara a morte precoce de dois de seus irmãos. Depois de uma temporada em Paris e de um curto período no aconchego familiar, resolve retomar suas pesquisas no Brasil. Chega em 20 de janeiro de 1833, para nunca mais voltar à Europa. Mas isso ele ainda não sabia.
 
CARTA AO IRMÃO – Em carta para seu irmão, ainda a bordo do navio à espera de ventos favoráveis para aportar, reafirma: “A impressão que me causa rever essa terra, onde passei tantos momentos adoráveis no gozo de natureza incomparável, que desta vez me parece, se é que é possível, ainda mais bonita e maravilhosa que antes, e todos os sentimentos, que me ocorreram nesses três dias, não posso te descrever, caro Ferdinand. Parece-me, ainda, como um meio sonho e custo a acreditar que agora posso entrar em uma floresta virgem, assim que o desejar”.
 
É procurado pelo botânico alemão Ludwig Riedel, que acompanhara Langsdorf em uma trágica expedição até a Amazônia. Riedel, que abrasileirou seu nome para Luiz e casou-se por aqui, convida Lund para uma expedição pelo interior do Brasil. Partem em outubro de 1833.
Lund descreve assim o início da viagem: “Em toda a parte estamos rodeados por florestas queimadas, cuja fumaça do fogo aliada à poeira da estrada ameaça sufocar-nos. Não há capim para os nossos animais, nem água nos rios ou riachos. Tivemos que alimentá-los com milho e matar a sede com cana de açúcar”. 
 
A expedição passa por Taubaté, São Paulo, São Carlos de Campinas, Sorocaba, São Bento d’Araraquara e Villa de Franca.
Na travessia do Rio Pardo, Lund anota: “Os canoeiros que deveriam nos atravessar apareceram no começo da noite, anunciando a sua chegada com o som de um berrante ao longe que, combinado com o eco da floresta e o silêncio total que nos rodeava, criou um efeito mágico. Eram mulatos e negros seminus. Deixamos que eles enchessem seus estômagos vazios ao lado do fogo, aonde se acomodaram e nos entretiveram uma boa parte da noite com as histórias infantis sobre todos os monstros que deveriam se alimentar nas profundezas do rio”.
 
 

De Catalão para Villa de Paracatu do Príncipe
 
 
Em Catalão, decidem redirecionar a expedição para a região das Minas Gerais e seguem para a Villa de Paracatu do Príncipe.
Escreve extasiado:
“Diariamente acampávamos nas encostas daqueles vales de buritis. As impressões da maravilhosa paisagem natural eram e sempre serão indeléveis em minha memória. Ao mesmo tempo é impossível explicar os diferentes tipos de sentimento, a quase alegria misturada com uma melancolia impronunciável que me invadia quando, sob a brisa refrescante após o pôr-do-sol, acabávamos o trabalho do dia deitando em nossos couros de boi, enquanto o puro céu estrelado livre de qualquer interferência humana lançava o seu manto gelado sobre as nossas cabeças. Vozes noturnas em incessante variação ressoavam de florestas nas proximidades, e os seus tons misteriosos  provocaram surpresa e temor, mantendo-me acordado por diversas horas até que o farfalhar das folhas de buriti me fizessem cair no sono, do qual eu só despertaria graças ao som de milhares de pássaros cantando a alvorada” .
 Atravessam o Rio São Francisco em cinco canoas, pouco acima do rio Abaeté, antes de chegarem à Villa de Santo Antônio do Curvello. Um ano após a partida do Rio, ao pernoitarem no rancho dos tropeiros da vila, Lund ouve outro viajante argumentar com Riedel que contava sempre com a vantagem de usar o dinamarquês quando lhe convinha, pois ninguém o compreenderia. Enrolado em seu couro de boi, rebate de pronto para não contar muito com isso.
 
 Conta-se, assim, seu encontro com Peter Claussen, que se autodenominava Pedro Cláudio Dinamarquês, misto de fazendeiro, geólogo amador e negociante oportunista. Claussen apresenta a Lund as grutas calcárias da região e os fósseis pré-históricos e altera a vida de ambos. A expedição segue por Lagoa Santa, Santa Luzia e Caeté. Riedel e Lund coletam na Serra da Piedade e descansam por um tempo na mina de Gongo Soco, administrada pelos ingleses. 
 
Em carta para o primo Peter Christian Kierkegaard, irmão do filósofo Soeren Kierkegaard, resume: “No sertão eu encontrei a paz e a ocasião perfeita para a mais profunda contemplação e trabalhei arduamente para construir a minha concha, a filosofia da vida prática, na qual se busca abrigo e proteção contra as tempestades do mundo. Mas a falta de notícias é penosa”.  
 
Em Ouro Preto, Lund despacha suas coleções e despede-se do amigo, com quem mantém contato por cartas até a morte de Riedel em 1861.
Retorna ansioso para a região das cavernas de Curvelo, que denomina de “cavernas mágicas’, para dedicar-se à exploração de fósseis e ossadas em associação com Claussen, que o buscara em Ouro Preto.
Não se decepciona: “Com um arrepio secreto adentrei a primeira dessas grutas místicas; tudo o que me cercava dirigia-se a mim em um idioma estranho; por todo lado eu via os traços de acontecimentos horríveis, que fecharam o capítulo anterior da história da evolução do globo terrestre, e, não sem horror, contemplei as infelizes vítimas da grande cena de sofrimento, cujos ossos jaziam aos milhares, espalhados aos meus pés. Uma voz secreta logo me disse que esses monstros não pertenciam ao mundo próximo; mal ousei, com as mãos trêmulas, tocar esses santuários da natureza e levou um longo tempo antes que, finalmente, com a mais ansiosa das expectativas, eu partisse para o penoso trabalho de tentar decifrar esses veneráveis hieróglifos”.
 
 
Gruta de Maquiné: o palácio de fadas
 

Na Gruta de Maquiné, não se contém: “Os esplêndidos reflexos produzidos pela luz, ferindo as inúmeras facetas destes cristais, deslumbram a vista, de modo que o homem se julga transportado a um palácio de fadas. A mais rica imaginação poética não saberia criar  tão esplêndida morada para seres maravilhosos; diante dessa notável gruta, ela seria forçada a confessar a sua impotência. Meus companheiros permaneceram durante muito tempo mudos à entrada deste templo; depois, involuntàriamente, se ajoelharam e, persignando-se, exclamaram, diversas vezes: ‘Milagre! Deus é grande! ’ Foi-me impossível dissuadi-los da idéia de que este templo devia servir de morada a Nosso Senhor. Quanto a mim, confesso que nunca meus olhos viram nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte”.
 
As divergências filosóficas logo se instalam e Lund se refugia em Lagoa Santa, para se distanciar de Claussen e familiares. Para aliviar os aborrecimentos causados pelo sócio aventureiro, herda a fidelidade de um amigo e colaborador advindo da troupe de Claussen, Peter Andreas Brandt (1792-1862), norueguês otimista por natureza e talentoso ilustrador. Brandt literalmente caíra no Cerrado para fugir de dívidas acumuladas como comerciante e editor de revistas na Noruega. Deixou para trás mulher e filhos e veio tentar a sorte no Brasil. No Rio de Janeiro encontra-se com os irmãos de Claussen que, acompanhados das esposas, partilhavam do mesmo objetivo. Juntos viajam para a Fazenda Porteirinhas, de propriedade de Claussen, onde Lund também estava hospedado. Desde então, Brandt acompanharia Lund na exploração, catalogação e descrição científica de centenas de grutas e cavernas.

 

Lund cria banda de música e cemitério em Lagoa Santa
 
Os tratados pioneiros de Lund foram enriquecidos por suas ilustrações incrivelmente precisas. Só a morte de Brandt, em 1862, desfaz, por um tempo, a associação da dupla que era muito cara a Lund, emocional e economicamente. 
 
O luterano Brandt não queria um enterro católico e Lund comprou um pequeno terreno, que se tornou o cemitério protestante de Lagoa Santa, para receber o corpo do amigo. Ao lado da sepultura, Lund plantou um pequizeiro (Caryocar brasiliensis), a árvore preferida de Brandt. 
Em seus passeios diários, Lund costumava se sentar e meditar no local, até se reunir definitivamente a Brandt em 1880. Hoje o antigo cemitério é um parque em sua memória.

As pesquisas científicas realizadas em Lagoa Santa na primeira metade do século XIX, longe dos centros de referência europeus e em área de egos exacerbados – o conceito levaria décadas para ser descrito mas já era exercitado há milênios – na dependência de correios morosos e ineficientes, levam o Dr. Lund a transferir sua coleção de ossos fossilizados pra Copenhague, onde seriam catalogados e estudados sob sua orientação.  A supervisão a cientistas mais jovens e a agradável convivência com as pessoas simples da região harmonizam seus interesses. . 
Em carta a um colaborador, explica assim sua opção: “O que me mantém é o fruto principal da filosofia: resignação, a vista do céu tropical de palmeiras e bananeiras, o ar e o clima do Brasil, a relação livre com a natureza, dispensa de conduzir política e duas mil milhas da Europa delirante. Entretanto, é, naturalmente, sempre lamentável não poder fazer nada, e se minha existência no momento inútil para a ciência, ainda pudesse prestar um serviço indireto, para facilitar as pesquisas do Senhor por aqui, seria ainda melhor”.
 
Lund recebe cientistas, 
dá aulas e cria uma 
banda de música
 
Warming: “Ninguém vaga impune sob as palmeiras”.
 
Peter Lund evita os assuntos políticos, recebe cientistas e viajantes, ministra aulas e forma uma banda de música – Corporação Musical de Santa Cecília – ainda em atividade. Cuida com carinho de seu quintal e trava uma guerra constante contra as saúvas. Declara em uma carta: “Procuro fazer minhas condições tão confortáveis e agradáveis quanto possível, e desenvolver os recursos que o lugar oferece, e que são compatíveis com minha saúde. Ademais, meu quintal, pelo qual sempre tive paixão, é minha ocupação e recreação principais”.  
Sua participação na comunidade como médico popular fazem dele a figura paternal e protetora. Ele receita remédios simples, orienta e socorre as pessoas em seus apertos circunstanciais de falta de dinheiro. Por isso é reverenciado até hoje em toda a região, mais de 140 anos depois de sua morte. 
No início de suas explorações, Lund acreditava que uma catástrofe, talvez o dilúvio universal, tivesse sido responsável pela extinção dos animais pré-históricos, teoria aceita na época como verdadeira.  A descoberta de ossos do rato-de-espinho e de esqueletos humanos juntos de fósseis de animais definitivamente extintos, porém, teimavam em contradizê-la. 
Especula-se que talvez o conflito entre sua crença religiosa e o resultado de suas observações seja a razão por Lund abandonar suas pesquisas científicas, em meados da década de 1840. Não parece crível que um cientista arguto e corajoso retrocedesse perante tal obstáculo. Talvez seu lado filosófico tenha percebido que o preço a ser pago seria alto e uma vida amargurada não estivesse em seus planos.
 
 
 
Legado científico de Peter Lund
 
 

Seu legado científico ainda repercute nos dias de hoje.
O gato-de-dente-de-sabre (Smilodon populator) descrito pela primeira vez por Lund, pesava o dobro de um leão atual e os gliptodontes, como denominava os parentes extintos do bicho-preguiça, eram do tamanho de um carro pequeno. As coleções de fósseis oriundas de suas escavações em mais de 800 grutas calcárias atraem pesquisadores de todo o mundo para museus da Dinamarca.
O interesse em botânica, relegado por ele a segundo plano e reavivado ao perder o interesse pelas caçadas, revela-se no tratado que escreveu sobre o cerrado brasileiro e em contribuições aos estudos de outros botânicos.
Várias grutas estudadas por Lund e Brandt não resistiram à volúpia econômica das fábricas de cimento. O Monumento Natural Estadual Peter Lund, criado por decreto do então governador Aécio Neves, em 2005, transformou a Gruta de Maquiné e seu entorno em uma Unidade de Conservação. 
 
O Parque Estadual do Sumidouro, chamado de “O Parque da Memória”, criado por um decreto de 1980 e recentemente aberto ao público, abriga as Grutas da Lapinha e a do Sumidouro, esta quase sempre inundada e onde Lund encontrou os ossos fossilizados humanos. O Instituto Estadual de Florestas de MG ainda prevê a implantação de cinco parques estaduais, seis monumentos naturais, um refúgio da vida silvestre e uma reserva biológica na região para a qual o Doutor Lund atraiu os olhares e fez mundialmente famosa.
 
Dois de seus colaboradores, Reinhardt e Warming, que viveram um tempo com Lund no Brasil, desenvolveram carência permanente por feijão-preto e café, pelas fofocas de Lagoa Santa e pelo canto da seriema. Segundo um velho provérbio citado por Warming “Ninguém vaga impune sob as palmeiras”.
Pedro Ernesto de Luna Filho, historiador radical que estudou até os caracteres góticos para traduzir várias cartas de Lund, é o autor da tese de doutorado “Peter Wilhelm Lund: o auge das suas investigações e a razão para o término das suas pesquisas” (2007). Alguns trechos transcritos são de cartas que ele traduziu. 
 
Birgitte Holten e Michael Sterll, na biografia científica “P. W. Lund E AS GRUTAS COM OSSOS EM LAGOA SANTA” lançado recentemente pela Editora UFMG, desvendam mitos e realizam a magia de tornar assuntos científicos em leitura leve e agradável.
 
Em https://www.folhadomeio.com.br/publix/wp-content/uploads/2006/07/maquine.html  está disponível  uma reportagem sobre a Gruta de Maquiné, escrita pelo Prof.Célio Valle, e publicada na edição de julho de 2006.
 
 
 
PETER WILHELM LUND

BOA NOITE, DR. LUND

“Minas Gerais vendeu sua alma ao desenvolvimento, e deu de pinga sua pré-história”. 

20 de Junho de 2014

A A

 

 

 
Carlos Drummond de Andrade (*)
 

Cuidado, Dr. Peter Wilhelm Lund, que dorme em seu último sono em Lagoa Santa: previno-lhe que seu repouso eterno corre perigo. 
A região em que o senhor viveu, pesquisou e estabeleceu os fundamentos da Paleontologia Brasileira está sendo varrida pelo ciclone do desenvolvimento-acima-de-tudo, que promete acabar com as suas grutas, os seus fósseis e toda a pré-história nacional. 
A exploração de calcário para fabrico de cimento vai arrasar as maravilhosas formações naturais que compuseram o cenário definitivo de sua vida. Amanhã, quem sabe? Esgotados os depósitos de matéria-prima, o senhor mesmo será tecnicamente classificado como calcário de 2º grau, e do seu jazigo inscrito nos livros do Patrimônio Histórico do Brasil se fará uma fornada de cimento para novas torres redondas na Barra da Tijuca.  
De resto, sei que não adianta meu aviso, sei que não adianta impedir a transformação da paisagem em cimento. Temos que viver o nosso tempo, ou, mais corretamente, morrer o nosso tempo. Quem falou aí em preservar os traços deixados pelo homem primitivo, como tarefa de sumo interesse para a compreensão da vida? Esse perdeu o seu latim – o mesmo latim de que o senhor se serviu para identificar o seu megatherium, o seu chlamidotherium, o seu glyptodon. Pois o próprio latim não acabou, no quadro da cultura geral?  
Desculpe, meu sábio venerando, este chamado importuno, que nem sequer deve tê-lo acordado. Certamente já o acordara antes o tonitrom dos tratores incumbidos de devastar o solo, a vegetação e toda lembrança do mundo imemorado. A esse som nada musical sucederá outro, que o manterá desperto: o das britadeiras funcionando em ritmo de Brasil grande e apressado. O senhor perdeu o direito à paz, como de resto nós todos o perdemos, e as próprias máquinas. Fique aí quietinho em seu túmulo, enquanto se anuncia para meados de 1975 o desaparecimento da Lapa Vermelha, ou Lapinha, que era a menina-dos-seus-olhos… 
A Lapinha, sabe? Que vinha sofrendo a agressão dos namorados, dos torcedores de futebol, dos fotógrafos de Manchete, que nela rabiscavam inscrições bobas ou que revestiam de óleo suas pinturas, para melhor efeito de cores das reproduções, enquanto os afeitos a souvenirs furtavam lascas de estalactites e estalagmites, para se gabarem de ser proprietários de esculturas da natureza. Esse pessoal executou os serviços preliminares de desbastamento da área. Vem agora a fase sistemática de desintegração plena da Lapinha, aquela mesma em cujo recinto sombrio e rico de mistérios telúricos o senhor passeou e meditou, no itinerário do sonho para a ciência.  
Prometo versejar uma elegia, quando tudo estiver consumado. É só o que posso fazer, em honra da caverna clássica e do sábio que a indicou ao zelo das novas gerações, cuidando que, no futuro, suas investigações teriam prosseguimento, e que ali se instalaria um mutirão de pesquisadores ávidos de descobrir os enigmas da Terra e do Homem. 
Daqui a seis anos, sabe? Passará o centenário da morte do senhor. Podemos conjeturar que até lá sua morte se desdobrará e multiplicará na morte das grutas. Então, na rasa planície, extinto o eco dos tratores, britadeiras e esteiras transportadoras de calcário, memória não haverá nem do senhor nem dos grupos alegres de turistas que começaram a demolir as criações da natureza para que outros completassem a obra. 
É possível que, no silêncio, ouvido mais apurado ouça aquela música sem som que se filtra entre o vazio e a ruína, a música do nada. Teremos chegado à perfeição do não-existente, àquele estado de não-ser, que até a morte se distancia. E nessa música irreal se perceberá a vaga exalação de um responso: Minas Gerais vendeu sua alma ao desenvolvimento, e deu de pinga sua pré-história.  
 
(*) “Boa-noite, Dr. Lund.”  Crônica de Carlos Drummond de Andrade,
publicada no Jornal do Brasil em 12/03/1974