Série Expedição Américo Vespúcio 10 anos

Lendas do Velho Chico – XVII

20 de junho de 2013

A LENDA DO ERMITÃO

Viva o Bom Jesus da Lapa
Viva a sua romaria
Vivam os filhos de Minas Gerais
Pernambuco e Bahia…
 
Lá vem a garça avoando 
Com as penas que Deus lhe deu Contando pena por pena 
Mais penas padeço eu.
 
 
Uma canoa no rio
 Uma piranha na brasa
Um pito mode o frio
Um amor dentro de casa
 

FOTO
A Gruta da Soledade forma a nave principal e a Sala dos Milagres, um escaldante recanto onde são deixados testemunhos da fé como cartas, fotografias, muletas e esculturas em madeira. 
 
 

 
Era uma vez um ermitão.
Tendo caminhado meses a fio pelo árido sertão das caatingas cinzentas, aprendendo a distinguir quebra-facas, quixabeiras, mandacarus, facheiros, xique-xiques, quipás, cabeças de frade e toda sorte de cactáceas, os pés sangrando, um peregrino português de nome Francisco Mendonça Mar (que para outros era Mor), abrigou-se em uma caverna junto às águas mansas do rio São Francisco. Bebeu da sua água e banhou-se. Para aí viver teve que expulsar onças, cobras, lagartos e aranhas. Cansado pelos afazeres adormeceu e teve um sonho, uma visão: iniciar uma vida de inteira devoção, penitência e socorro aos necessitados daqueles ermos.  Fincou ali uma cruz no mirante em nome do Senhor Bom Jesus e sua lenda cresceu entre os ribeirinhos e sertanejos.
 
Em 1706, o eremita – já com um cajado e uma túnica – foi chamado a Salvador pelo arcebispo, de onde saiu ungido. Surgiram as romarias e quando Francisco morreu, sua vida de santidade já atraía gente de toda parte. Devido a um incêndio no depósito de velas, o santuário foi ampliado pelos salões e galerias daquele maciço calcário, abrindo passagem para outras grutas num total de quinze. 
 
Peças de granito e mármore compõem a nave, os altares e as escadas. Crucifixos e imagens de santos compartilham cantos de caverna com estalactites. De uma grande estalagmite fez-se a pia batismal. A Gruta da Soledade forma a nave principal e a Sala dos Milagres, um escaldante recanto onde se depositam os ex-votos e são deixados testemunhos da fé como cartas, fotografias, muletas e esculturas em madeira. 
A simplicidade, rusticidade e o misticismo do lugar combinam a fé com a paisagem. A cidade cresceu, espraiando-se entre as águas do rio e o santuário de pedras com a praça aos pés do morro, onde a multidão de devotos aguarda as bênçãos para a cura dos seus males e a salvação eterna das suas almas.
Na Expedição Vespúcio revivemos essa lenda. Ancorado o barco, cruzamos o rio passando pela ponte, desta vez por cima. Então tivemos uma visão espetacular do rio, das ipueiras, da cidade e do santuário. Um santuário enorme dentro de uma caverna, uma lapa como dizem os baianos. Milhares de peregrinos ou romeiros, quase um milhão, aqui aportam anualmente movidos pela fé. É gente que reza e vai chorando suas dores e amores. Aqui Lico Paiva confessa o motivo da sua descida: pagar uma promessa ao Senhor Bom Jesus. Disse que antes, muito antes, colocara um bilhete numa garrafa rio abaixo, pedindo proteção contra picadas de cobras e abelhas. 
– “E como a garrafa passava a barragem de Três Marias, Lico?”
– “Não havia barragem! Nem JK era nascido!”, disparou. 
Revelou também seu sonho, “uma romaria fluvial da Senhora da Abadia, lá em cima no rio, e ver se ainda salva alguma coisa”. Renovados pela fé e após audiência pública e teatro ambiental da trupe sergipana Graça Melo, na sede da Codevasf, recebemos um projeto para revitalização do Rio das Rãs, onde vive uma comunidade quilombola.
 
No dia seguinte navegamos para a cidade de Barra, a dois dias de barco. A meio caminho em Ibotirama, brilhando um magnífico pôr-do-sol, a barca PIPES atracou numa alta escada de pedras. Uma trilha arborizada com algarobeiras nos levou ao hotel Velho Chico onde pernoitamos. No dia seguinte bem cedo continuamos a viagem.
 
Barra, “terra dos barões”, vêm dos tempos dos navios-gaiola, barcas e ajoujos. Como sentinela, está a cavaleiro no alto barranco, na foz do rio Grande.  É cercada de carnaubais e ipueiras (antigos leitos do rio); um pouco mais adiante ficam as dunas continentais em Mocambo do Vento e Ibiraba, onde foi rodado parte do filme “Abril despedaçado”. 
FREI LUIZ CAPPIO – Ao ver a Barra chegando do rio, sua enorme igreja e os casarões brancos, o velho hotel, o paredão de pedras e a balaustrada que a protege da força das águas… reverenciemos, aqui vive uma lenda viva, frei Luiz Cappio. 
É preciso revitalizar a Barra. A restauração de sítios históricos de tal monta é um dos caminhos para a implantação do turismo histórico e ecológico, tirando-os da situação de abandono em que se encontram. Observamos uma casa desabada em uma rua estreita, as grandes portas e janelas coloniais em meio ao entulho de adobe. 
 
Cenários como este, à deriva, vimos mais acima, as igrejas em ruínas em Guaicuí, a igreja de N. S. da Conceição em Matias Cardoso (em Mocambinho ainda existem as ruínas de uma igreja), e a igreja de Santana do Miradouro, em Xique-Xique, e tantos outros nesta imensa bacia de onde vêm os rios. Em dez-doze anos alguma coisa pode ter sido salva…