Peter Wilhelm Lund

BOA NOITE, DR. LUND

20 de junho de 2013

“Minas Gerais vendeu sua alma ao desenvolvimento, e deu de pinga sua pré-história”. 

 
Carlos Drummond de Andrade (*)
 

Cuidado, Dr. Peter Wilhelm Lund, que dorme em seu último sono em Lagoa Santa: previno-lhe que seu repouso eterno corre perigo. 
A região em que o senhor viveu, pesquisou e estabeleceu os fundamentos da Paleontologia Brasileira está sendo varrida pelo ciclone do desenvolvimento-acima-de-tudo, que promete acabar com as suas grutas, os seus fósseis e toda a pré-história nacional. 
 
A exploração de calcário para fabrico de cimento vai arrasar as maravilhosas formações naturais que compuseram o cenário definitivo de sua vida. Amanhã, quem sabe? Esgotados os depósitos de matéria-prima, o senhor mesmo será tecnicamente classificado como calcário de 2º grau, e do seu jazigo inscrito nos livros do Patrimônio Histórico do Brasil se fará uma fornada de cimento para novas torres redondas na Barra da Tijuca.  
 
De resto, sei que não adianta meu aviso, sei que não adianta impedir a transformação da paisagem em cimento. Temos que viver o nosso tempo, ou, mais corretamente, morrer o nosso tempo. Quem falou aí em preservar os traços deixados pelo homem primitivo, como tarefa de sumo interesse para a compreensão da vida? Esse perdeu o seu latim – o mesmo latim de que o senhor se serviu para identificar o seu megatherium, o seu chlamidotherium, o seu glyptodon. Pois o próprio latim não acabou, no quadro da cultura geral?  
 
Desculpe, meu sábio venerando, este chamado importuno, que nem sequer deve tê-lo acordado. Certamente já o acordara antes o tonitrom dos tratores incumbidos de devastar o solo, a vegetação e toda lembrança do mundo imemorado. A esse som nada musical sucederá outro, que o manterá desperto: o das britadeiras funcionando em ritmo de Brasil grande e apressado. O senhor perdeu o direito à paz, como de resto nós todos o perdemos, e as próprias máquinas. Fique aí quietinho em seu túmulo, enquanto se anuncia para meados de 1975 o desaparecimento da Lapa Vermelha, ou Lapinha, que era a menina-dos-seus-olhos… 
 
A Lapinha, sabe? Que vinha sofrendo a agressão dos namorados, dos torcedores de futebol, dos fotógrafos de Manchete, que nela rabiscavam inscrições bobas ou que revestiam de óleo suas pinturas, para melhor efeito de cores das reproduções, enquanto os afeitos a souvenirs furtavam lascas de estalactites e estalagmites, para se gabarem de ser proprietários de esculturas da natureza. Esse pessoal executou os serviços preliminares de desbastamento da área. Vem agora a fase sistemática de desintegração plena da Lapinha, aquela mesma em cujo recinto sombrio e rico de mistérios telúricos o senhor passeou e meditou, no itinerário do sonho para a ciência.  
 
Prometo versejar uma elegia, quando tudo estiver consumado. É só o que posso fazer, em honra da caverna clássica e do sábio que a indicou ao zelo das novas gerações, cuidando que, no futuro, suas investigações teriam prosseguimento, e que ali se instalaria um mutirão de pesquisadores ávidos de descobrir os enigmas da Terra e do Homem. 
Daqui a seis anos, sabe? Passará o centenário da morte do senhor. Podemos conjeturar que até lá sua morte se desdobrará e multiplicará na morte das grutas. Então, na rasa planície, extinto o eco dos tratores, britadeiras e esteiras transportadoras de calcário, memória não haverá nem do senhor nem dos grupos alegres de turistas que começaram a demolir as criações da natureza para que outros completassem a obra. 
 
É possível que, no silêncio, ouvido mais apurado ouça aquela música sem som que se filtra entre o vazio e a ruína, a música do nada. Teremos chegado à perfeição do não-existente, àquele estado de não-ser, que até a morte se distancia. E nessa música irreal se perceberá a vaga exalação de um responso: Minas Gerais vendeu sua alma ao desenvolvimento, e deu de pinga sua pré-história.  
 
(*) “Boa-noite, Dr. Lund.”  Crônica de Carlos Drummond de Andrade, publicada no Jornal do Brasil em 12/03/1974.