Série Expedição Américo Vespúcio – 10 anos
Cinema no São Francisco
18 de julho de 2013Lendas do Velho Chico – XVIIi
Mário Kuperman capta a voz ribeirinha no belo documentário “O Velho Chico quer nascer de novo”.
Os peixes já não sobem, há que gerar energia, ou foram devorados por peixes exóticos à bacia, as lagoas-berçários se esvaíram pelos drenos abertos pelos fazendeiros para seus capins, águas para irrigar as terras, o arvão para as siderúrgicas.
Gameleira da Lapa à vista, a meio caminho para Paratinga, José Carlos, da Embrapa, observou no seu diário de bordo: “Barrancos nus na pequena povoação, com tendência futura a desbarrancamento da cidadezinha”. Esse fenômeno corrói o sonolento lugar, uma rua já foi engolida pelo rio. Estirada como rede na margem esquerda, a vila fica próximo a Sítio do Mato. Bonitos nomes de lugares. Gameleira ficou famosa pela construção de uma barragem fictícia em um filme aqui rodado em 2001: “Os narradores de Javé”:
O vilarejo de Javé deverá desaparecer sob as águas de uma grande barragem. Diante da diluviana notícia, a comunidade decide defender sua existência pondo à larga a imaginação: escrever um dossiê que documente o que consideram ser os “grandes” e “nobres” acontecimentos da história do povoado e assim justificar a sua preservação.
Entretanto, como a maioria dos moradores de Javé são bons contadores de histórias, porém analfabetos, é necessário conseguir um escrevinhador. É escolhido Antônio Biá, personagem de caráter anárquico e duvidoso, porém o único que sabe escrever fluentemente.
Apesar de polêmico, ele ouve e registra os relatos “históricos e fantásticos”. Na construção desse dossiê, inicia-se um duelo poético entre os contadores que disputam com suas histórias – muitas vezes fantásticas e lendárias – o direito de permanecerem em Javé.
Segundo a realizadora Eliana Caffé, essa história nasceu com Pedro Cordeiro Braga, morador em Vau, vilarejo mineiro: na iminência de fechamento da agência do correio local por falta de movimento, ele enviava cartas para que o fluxo de correspondência justificasse a sua existência. Uma história leva a outra, como está no livro “O nariz de Pasquale”:
“Sutri é uma vila de origem etrusca nos arredores de Roma. Nada fazia que os turistas a visitassem. Alguns cidadãos decidiram que seria uma boa idéia promover um festival de feijão-rainha, comum no lugar. O prefeito era por demais apático e Sutri continuou sem festival.
O cidadão Rômulo não pensou duas vezes, inventou uma história: ‘Carlos Magno sofria intensamente de gota.
O caso era tão grave que seus conselheiros temiam que a dor pudesse interferir nos seus esforços para unificar a Europa. Um dos conselheiros ouviu falar dos poderes curativos do feijão-rainha de Sutri e recomendou-lhe uma visita à cidade. Carlos Magno partiu para Sutri, onde durante uma semana só comeu feijão. Ao término de uma semana, estava curado”’.
A história espalhou-se e conquistou os guias históricos, levando a prefeitura de Sutri a instituir um festival anual do feijão. Mas todos sabemos que os feijões foram levados da América no século quinze, e Carlos Magno viveu no século nono…
Tempos depois… voltemos ao cinema: O cineasta Mário Kuperman capta a voz ribeirinha no belo documentário “O Velho Chico quer nascer de novo”. Fizemos o roteiro do filme a quatro mãos e muitos emails, desde a Canastra e o Samburá até o mar.
A câmera do premiado realizador, escritor e sociólogo buscou a gente pobre do rio, a riqueza e a beleza do rio que teima em renascer.
Gameleira ficou famosa pela construção de uma barragem fictícia em um filme rodado em 2001: “Os narradores de Javé”:
Mário Kuperman o retratou com cores fortes e poéticas com a vista desarmada. Seu olho e sua câmera captaram a beleza dos barcos ancorados, os nenúfares e aguapés se fechando na lagoa pantanosa, as cristas da Canastra banhada pelo pôr-do-sol, o murmúrio do rio. Sua lente captou as fraldas do Samburá, aquelas desoladas paisagens de palmerianas montanhas.
E assim viajamos de ponta a ponta pelo rio São Francisco, esse gigante incompreendido e bem amado, ouvindo as vozes sonolentas, o sotaque e o olhar ribeirinho, as curvas e as reentrâncias da beira do rio, as raízes nas entranhas dos barrancos desmoronados, barcos que não navegam.
Os peixes já não sobem, há que gerar energia, ou foram devorados por peixes exóticos à bacia, as lagoas-berçários se esvaíram pelos drenos abertos pelos fazendeiros para seus capins, águas para irrigar as terras, o carvão para as siderúrgicas.
Hoje quem pisa os lugares pendurados às margens é Inácio Neves com seu programa de sonho itinerante “Cinema no rio”. Inácio telefonou-me de Iguatama, onde se encontrava para uma sessão na praça da cidade. Estava ele subindo as cabeceiras com sua trupe ambiental e os velhos e novos filmes, com títulos como “Deus e o diabo na terra do sol”, “Abril despedaçado”, “Vidas Secas”, o catálogo é extenso. Veja em
cinemanorio.com.br.
O rio não para, Apolo Heringer Lisboa, que resgatou o mitológico “Manuelzão” no rio das Velhas, desce o São Francisco até o mar enquanto escrevo. Novos tempos. Voltemos ao rio. Subo até a cobertura pela escada da popa e olho, meu coração dói: o rio está nu, o barranco está nu, a paisagem está nua, a paisagem está desnuda.
O PIPES apita, o pescador Lico Paiva chora. Junto ao fogão no convés, os “dois Sérgios” o Ferreira e o Moreno, preparam o almoço: um aroma adocicado de peixe com coentro, alho e arroz branco sobe pelos ares.