Série Expedição Américo Vespúcio 10 anos

Lendas do Velho Chico – XIX

16 de agosto de 2013

O burrico e a coroa-de-frade

Dunas de Ibiraba ao vento, o lago de Sobradinho não está longe. Alguém vai cantarolando “Remanso, Pilão Arcado, Sento Sé… O sertão vai virar mar…”, uma velha canção.

A seca de 1983 causava fome e sofrimento. Nenhuma cacimba em volta. A fonte de água mais próxima estava a cerca de 40 km, no rio São Francisco. Tudo tinha as cores cinza e a secura no ar. Vimos um pequeno jumento às voltas com algo preso ao chão.
 
O burrico estava cavando uma coroa-de-frade com as patas.
 
Mesa redonda a bordo, João Leão fala sobre o festival da mangaba, Gilberto Branco defende suas mudas frutíferas e nativas em Gilbués e no vale do Gurguéia; Amadeu Soglia e Delson Castelo Branco irrigam terras sem fim. Surgem mil e uma soluções para a queda de barrancos, como a “bolsa-mata ciliar”, do Enio Fraga. 
Mocambo do Vento e Porto da Palha ficaram para trás. Costeamos a ilha do Gado Bravo, entramos pelos canais Guaxinim e Miradouro, e lá estava a escondida Xique Xique. Conhecer uma cidade chegando pelo rio é surpreendê-la estirada em meio à vegetação nas margens do rio. 
Atracamos em meio ao tráfego de chalanas. A advogada Niude E. Santo que praticamente coordena a expedição, toma as primeiras providências para o traslado da barca para Sobradinho, onde passaremos pelas eclusas. Um desafio para o comandante Murilo. Uma fábula do Nobel português José Saramago mostra o que se passa a bordo de barcos em qualquer porto ou reino distante. É “O conto da ilha desconhecida”, onde quem dá as ordens é o rei. Nunca conheci tanto de gente e de navegação lendo esta fábula e navegando num barco no rio São Francisco. 
A recepção em Xique-Xique ocorreu em meio a foguetório e dança de capoeira. O pescador Lico Paiva respondeu badalando sem parar o cincerro que ribombava pelos barrancos, saudando a multidão “viva Xique-Xique!”, e eles responderam em coro “viva a Expedição Américo Vespúcio!”. 
O timoneiro Murilo saudava com o rouco apito do PIPES.
Xique-Xique é uma cidade barulhenta. Ouvi alguém dizer que a cidade é chique duas vezes. Existe um “centro histórico” como nas outras cidades onde aportamos. As casas geminadas poderiam ser restauradas em vez de demolidas, tanto o centro como a rua na orla do rio, mantendo o estilo da época. 
Fomos a bordo do PIPES conhecer a famosa igreja de Santana, na ilha do Miradouro, de 1640. Precisa de reforma urgente, uma vez que o coro do fundo, altares e púlpitos laterais estão corroídos por cupins. A zeladora senhora Edite com 71 anos, perdeu o filho afogado no rio no dia anterior, e mesmo assim nos recebeu. Parece que o grupo de curiosos lhe fez bem, saindo reconfortada após responder a tantas perguntas.
 
A população participou em peso da audiência pública no salão de convenções da pousada amarela, tanto atores sociais, políticos, institucionais e cooperativas, reivindicando ações de saneamento (esgoto, lixo, água tratada), educação ambiental, restauração das matas e lagoas, assoreamento.
No dia seguinte visitamos a lagoa de Itaparica e Santo Inácio na Chapada Diamantina. Belas paisagens, Santo Inácio na serra, a vila de Itaparica com casas de barro cobertas de folhas de palmeira, a lagoa de Itaparica em meio aos carnaubais. Enquanto a ala feminina da expedição fazia consultas sentimentais com uma benzedeira, ouvimos histórias dos moradores sobre os tempos do garimpo e da pesca farta. 
Hoje existem apenas cristais de rocha ou “cristais de cabelo”, em poços profundos com paredes protegidas com paliçada de alto risco. O guia Fábio Bekker, biólogo do CRA diz que “colhia-se cera de carnaúba até dez anos atrás, mas hoje seu mercado é restrito. Alguns moradores quebram pedras de quartzito para a construção civil e calçamentos. Agora só pecuária, e a pesca é muito fraca”.
Na volta conhecemos o projeto Irecê e depois o parque aquático, herança do prefeito anterior. Entramos num enorme surubim em fibra de vidro. É muito mais que um surubim, é uma baleia. É mais que baleia, é um elefante branco. Me senti um Jonas bíblico ao entrar e sair dali de dentro. 
Vai o ônibus roncando pelas caatingas e a Chapada Diamantina rumo a Juazeiro, passando por Irecê, Morro do Chapéu e Jacobina. Como uma lenta lagarta, segue serpenteando o PIPES na carreta Volvo operada pelo Marcelo, nesta expedição “a la Fitzcarraldo”. 
Cruzando a caatinga, a “mata branca” dos indígenas, o mais degradado bioma brasileiro, já com vários focos de desertificação, lembrei do Professor Asno e da coroa-de-frade. Aquela cena tocante mostrou ser possível conviver com o Semi-Árido e não combatê-lo. Na verdade, países como o Peru, o México e outros, produzem forrageiras e frutos comestíveis em áreas desérticas. Fazíamos levantamentos na bacia do Pontal, em Pernambuco. 
 
Xique-Xique é uma cidade barulhenta. Ouvi alguém dizer que a cidade é chique duas vezes.
 
A seca de 1983 causava fome e sofrimento. Nenhuma cacimba em volta. A fonte de água mais próxima estava a cerca de quarenta quilômetros no rio São Francisco. Tudo tinha as cores cinza e a secura no ar. No meio da Caatinga vimos um pequeno jumento às voltas com algo preso ao chão.
 O burrico estava cavando uma coroa-de-frade com as patas, ora uma ora a outra. Retirava com o maior cuidado os grossos e desafiadores espinhos. Sedento, o jegue buscava água nos tecidos da planta, e após a delicada operação, dedicou-se calmamente à sua suculenta refeição do dia. 
Em volta dali, seres humanos fadados ao mesmo destino pelas caatingas adentro, não só à sede, mas também à fome. Tambores amarelos espalhados pelas estradas recolhiam água dos caminhões-pipa.