Naturalistas Viajantes

RUGENDAS, o cronista das imagens

23 de setembro de 2013

As ilustrações sobre costumes, tipos e paisagens de Rugendas valem por uma biblioteca inteira

Sua obra é vasta e importante. Mas a vida do artista alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) é pouco conhecida. O talento de Rugendas, herança familiar de gerações de pintores, foi reconhecido pelo barão alemão Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852), que adotou a nacionalidade russa e o  nome Grigori Ivanovich Langsdorf. 

 
Médico de formação, Langsdorff foi o introdutor da prática da vacinação em Portugal. Era um naturalista autodidata com verdadeira fixação por borboletas tropicais. 
Viveu em Santa Catarina e no Rio de Janeiro. Por volta de 1821, foi nomeado Barão em São Petersburgo. Retornou ao Rio de Janeiro como embaixador do Czar da Rússia no Brasil. 
 
Langsdorff contrata Rugendas, então com 19 anos, para participar como desenhista-ilustrador da expedição científica que planejava realizar pelo interior do Brasil, financiada pelo governo russo. O projeto tinha o objetivo de reavivar as relações comerciais e culturais entre os dois países. 
Mas a efervescência política com o processo de independência no Brasil retarda o início da expedição. Rugendas e os outros participantes se isolam na Fazenda da Mandioca, de propriedade do Cônsul, localizada na Raiz da Serra de Petrópolis. 
Em suas constantes viagens ao Rio de Janeiro, Rugendas estabelece amizade com os integrantes da Missão Artística Francesa e retrata a paisagem natural, a fauna, a flora, os tipos físicos, os costumres e as vistas da cidade.
 
 

“As diversas raças de homens que se encontram nos países do Novo Mundo, e a imensa variedade que as caracteriza, apresentam ao observador o panorama mais interessante que as sociedades humanas podem oferecer. Dir-se-ia que a civilização tenta igualar e mesmo ultrapassar as riquezas que a natureza faz brilhar no reino animal e no reino vegetal. Desse ponto de vista, o Brasil ganha de todas as outras regiões da América”.
 
 
 
 
 
 
Campos  mineiros às margens do rio das Velhas, afluente do rio São Francisco
 
 
Três desenhos: Paisagem da costa da Bahia,  Paisagem de Ilhéus-BA  e  Negro e negra em uma fazenda
 
 
 
Dois desenhos: comboio de diamante em Caeté-MG e Capoeira em salvador
 
 
 
Rugendas e a 
Expedição Langsdorff
 
A Expedição Langsdorff parte em direção a Minas Gerais e, em novembro de 1824, as chuvas constantes a retém em Jequitibá, às margens do rio das Velhas,  região central de Minas. A mente do Barão nunca se aquieta e a inatividade temporária causada pelas cheias do rio e córregos da região o pressiona mais ainda. Rugendas se desentende com o hiper-ativo Langsdorff e abandona seu posto de ilustrador oficial contratado. 
Na impetuosidade de seus vinte e poucos anos, o pintor faz sua catarse, para provável delírio de seus companheiros e anotada integralmente por Langsdorff em seu diário: “Para mim não importa se o senhor é cavaleiro da Ordem de um Rei ou de um Imperador da Rússia, pois vou lhe dizer mesmo assim que o senhor é um cachorro”. 
Alguns anos depois, o fusível de Langsdorff se queimaria de vez na Amazônia. Os pintores franceses Aimé-Adrien Taunay (1803-1828), que morreria afogado no Rio Guaporé, e Hercule Florence (1804-1879)  substituiriam Rugendas na expedição. Rugendas inicia uma longa peregrinação solitária por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco. Seu itinerário é desconhecido, mas suas gravuras permitem deduzir os locais visitados. Volta ao Rio em 1825 e parte para a Europa.
 
Rugendas volta à Europa 
Publicação de um livro com pinturas e conselhos para quem deseja visitar o Brasil
De volta à Europa, encontra em Paris o naturalista e conterrâneo, o onipresente Alexander von Humboldt (1769-1859). Humboldt se entusiasma com suas pinturas e interfere na publicação de seu famoso livro com cem litografias, “Voyage Pittoresque dans le Brésil”, com um estudo geral sobre as condições do país. O livro é considerado um dos documentos mais importantes sobre a vida no Brasil no século XIX. Rugendas o divide em cadernos: paisagens, tipos e costumes, usos e costumes dos índios, a vida dos europeus, europeus na Bahia e em Pernambuco, usos e costumes dos negros.
 
Conselhos aos viajantes 
Anotações pitorescas sobre as condições do Brasil e os conselhos aos viajantes
 
“No Brasil, o único meio de transporte, tanto para os homens como para as mercadorias, é o cavalo ou a mula. (…) Deve-se aconselhar, por conseguinte, a quem quer visitar o Brasil ou qualquer outra parte da América meridional, a que aprenda a montar a cavalo antes de deixar a Europa. (…) os sábios e naturalistas mais distintos que percorrem o Brasil se veriam numa posição entre ridícula e perigosa se deixassem de obedecer a essa regra de conduta, à primeira vista estranha”. 
Recomenda o uso da rede, invenção indígena, “preferível a outros tipos de leito, não somente porque é mais leve, mais fácil de transportar e de armar, mas ainda porque nessas redes, erguidas quase sempre vários pés acima do solo, o viajante se encontra melhor garantido contra os insetos e outros animais capazes de perturbar-lhe o repouso noturno. Embora a quantidade de animais realmente venenosos, e principalmente de serpentes, seja muito menor do que se imagina comumente e do que afirmam os próprios brasileiros, é melhor tomar precauções excessivas do que não tomar nenhuma. Deitar-se no chão é tanto mais perigoso quanto as serpentes gostam do calor e de bom grado se enfiam embaixo das cobertas. É verdade que não sendo tocadas não atacam, mas se o viajante, que não pode imaginar a presença de um tal companheiro, a incomoda ou inquieta, corre o risco de ser mordido e as mordidas de inúmeras serpentes, como por exemplo a cascavel e a jararaca, são quase infalivelmente mortais”. 
 
 
ÍNDIOS  NUMA FAZENDA EM MINAS GERAIS
 
 
 
 
Tipos e Costumes
 
Na apresentação do caderno com as ilustrações sobre Tipos e Costumes, deslumbra-se: “As diversas raças de homens que se encontram nos países do Novo Mundo, e a imensa variedade que as caracteriza, apresentam ao observador o panorama mais interessante que as sociedades humanas podem oferecer. Dir-se-ia que a civilização tenta igualar e mesmo ultrapassar as riquezas que a natureza faz brilhar no reino animal e no reino vegetal. Desse ponto de vista, o Brasil ganha de todas as outras regiões da América, e principalmente das colônias espanholas”.
Criticado à época por desperdiçar seu talento na ilustração de índios e negros, justifica-se: “É justo conceder o primeiro lugar, neste quadro, ao habitante primitivo, embora tenha ele sido rechaçado para as camadas inferiores da sociedade”. 
 
 
“No Rio de Janeiro, num só golpe de vista pode o artista conseguir resultados que, na África, só atingiria através de longas e perigosas viagens a todas as regiões dessa parte do mundo”.
 
Rugendas afirma que o Brasil é o melhor local para pintar os negros
 
 
Dedica o segundo lugar aos africanos e desanca seus detratores: “Entretanto, se alguém julgar que em semelhante viagem dois cadernos de figuras de pretos são demais, queira considerar que o único lugar da terra em que é possível fazer semelhante escolha de fisionomias características, entre as diferentes tribos de negros, é talvez o Brasil, principalmente o Rio de Janeiro; é, em todo caso, o lugar mais favorável a essas observações. Com efeito, o destino singular dessas raças de homens traz aqui, num mesmo mercado, membros de quase todas as tribos da África. Num só golpe de vista pode o artista conseguir resultados que, na África, só atingiria através de longas e perigosas viagens a todas as regiões dessa parte do mundo. A própria América não lhe oferece alhures as mesmas vantagens, pois o Brasil tem, no momento, o desonroso privilégio de ser o único país onde, na realidade, o comércio dos escravos continua a praticar-se sem nenhuma espécie de restrição.
 
Se, por conseguinte, o artista aproveitou a oportunidade de sua estada no país para oferecer ao público um conjunto de fisionomias de negros, dos mais interessantes, é-lhe permitido esperar o apoio desse público, tanto mais quanto, pela primeira vez, se tenta semelhante empresa. Infelizmente, todas as obras desse gênero, ou pelo menos grande parte delas, são executadas com muito pouca consciência e absoluta negligência dos traços característicos, tanto em relação às formas humanas e às figuras como em relação ao reino vegetal. Nelas se procuraria em vão uma boa fisionomia de negro ou uma palmeira bem feita.”
 
 
Três desenhos: Negros no porão de um navio negreiro – O Batuque do Tambor e a  Habitação de negros 
 
 
 
Assimilação dos mulatos
 
Sobre a assimilação dos mulatos, “importante parcela da população do Brasil’, pela sociedade da época, cita que a ascendência índia ou africana não tem a menor importância no país e o fato só é referido quando para responder a um estrangeiro, nunca por caçoada ou desprezo. Deste ponto de vista, nada caracteriza melhor o estado das idéias dominantes do que essa resposta de um mulato, ao qual se perguntava se determinado capitão-mor era também mulato. 
– ‘Era’,  respondeu ele, ‘porém já não é’. 
E como o estrangeiro desejasse uma explicação para tão singular metamorfose, o mulato acrescentou: 
– Pois, Senhor, capitão-mor pode ser mulato?”.
 
 
 
 
 
 
 
Rugendas
Descrevendo o Rio de Janeiro
 
Descreve o Rio de Janeiro como “o mais belo porto da terra, situado num país que produz tudo o que as necessidades físicas do homem exigem, tudo o que o Estado pode precisar da natureza para a sua propriedade. Essa cidade contém uma população a que não falta nenhuma das qualidade intelectuais ou físicas necessárias para gozar os dotes de uma natureza tão pródiga. (…) Difícil se torna compreender por que motivo não escolheram os primeiros conquistadores do país esse ponto, de preferência, para o seu estabelecimento”.
Alerta para o testemunho do europeu que “só tenha visitado no Brasil as cidades marítimas, que conheça apenas os ricos proprietários, os empregados ou o povo das cidades, não deveria arrogar-se o direito de se pronunciar acerca do país e de seus habitantes”.
A vida dos colonos o comove: “A monotonia dessa existência só é interrompida, de quando em quando, pelas festividades religiosas. (…) Não há nada mais animado do que um domingo numa aldeia ou vila, que possua uma imagem venerada de santo. As famílias dos colonos chegam de todos os lados. Os homens vêm a cavalo, as senhoras igualmente, ou em liteira conduzidas por bestas ou escravos. As grandes festas da Igreja são celebradas com muito aparato: há representações mímicas e nas quais as chalaças grosseiras dos atores satisfazem plenamente os espectadores”.
 
O encanto no Chile
Entre os anos de 1825 e 1830, Rugendas se dedica a ampliar seus conhecimentos das técnicas da pintura. Em Roma, torna-se amigo do artista berlinense Carl Blechen, entusiasta da pintura a óleo ao ar livre, técnica que passa a adotar. Humboldt enriquece os conhecimentos de Rugendas sobre o continente americano e o convence a tornar-se “o ilustrador dos novos territórios do mundo”
Inicia seu ambicioso projeto pelo México, em julho de 1831. Acusado de conspirar contra o governo, é convidado educadamente a retirar-se. Inicia seu périplo pela América do Sul e, de passagem pelo Peru, é pioneiro em desenhar a arqueologia andina e em estudar a arquitetura colonial. 
Carmen, a bela chilena
 

 
Carmen García retratada por Rugendas
 
 
Em 1835, Johann Moritz Rugendas chega ao Chile. Juan Maurício, como era conhecido por lá, conhece e se enamora pela esposa de um oficial prussiano em uma festa da aristocracia local. A bela Carmen Arriagada García (1807-1900), literata e filha de um revolucionário chileno, corresponde aos encantos do artista charmoso e mantém com ele um romance secreto por 16 anos, alimentado por cartas passionais.  
As cartas de Rugendas foram queimadas por ela, por medo de ter seu segredo revelado, mas as 235 cartas dela para o artista, de novembro de 1835 a junho de 1851, estão preservadas no Instituto Latino-americano de Berlim. 
“Fue como morir en vida”, escreve Carmen em sua última carta: “Quemé tus cartas; al separarme de ellas me sentí arrancar el corazón; pálida y oprimida las veía consumirse por las llamas, ellas eran mi bien y mi consuelo: todo, todo me aflige. Si en este momento te tuviera aquí, te sofocaría con mis lágrimas y caricias. Adiós mi vida, mi amor, mi único bien, toda mi esperanza. Adiós, un beso. Un beso de amor y de dolor”.  
As cartas cessam em 1858, quando Rugendas casa-se com Maria Sigl, união que dura apenas um mês e é interrompida pela morte prematura do pintor.  O Álbum de Carmen Arraiagada, que pertence à Biblioteca Nacional do Chile, reúne desenhos, aquarelas e pinturas a óleo presenteadas à Carmen Arriagada García  e são como uma autobiografia ilustrada de Rugendas.

Rugendas “fotografa” um acampamento típico de tropeiros

 

 

Volta ao Rio de Janeiro

 

 

 
 
 
 
 
 
 
Desenho de uma venda no Recife -PE
 
 
 
Entre julho de 1845 e agosto de 1846, volta ao Rio de Janeiro, na conclusão de sua viagem de 15 anos pelas Américas.
Desenha o retrato de D.Pedro II, da Imperatriz Tereza Cristina e do Príncipe D. Afonso. Elabora belas vistas panorâmicas da baía da Guanabara. A informalidade de sua primeira fase brasileira, em que os temas eram escolhidos de forma aleatória,  regidos pelo entusiasmo de uma personalidade quase juvenil, se completa com a execução de um projeto planejado e executado por um artista no vigor de sua maturidade.  As influências de Langsdorff, Humboldt e do botânico e antropólogo Carl von Martius(1794-1868) se fazem notar no cuidado científico com que executa suas ilustrações em sua segunda excursão pelas Américas.  O rigor científico que alcança pode ser atestado pela afirmação de Humboldt, em carta para o diplomata e naturalista Ignaz von Olfers (1793-1872), em que afirma ter consultado um dos quadros de Rugendas “para averiguar algo sobre o vulcão de Colima”. 
Em sua estada no México, Rugendas escalou e elaborou uma vista panorâmica de 360º do vulcão, técnica inédita em suas pinturas e que reutilizaria nas vistas panorâmicas do Rio de Janeiro. 
 
Parceria com Maximiliano II
Em 1846, retorna à Europa e por motivos financeiros, cede o conjunto de sua obra para o Imperador Maximiliano II, da Baviera, em troca de pensão  anual e vitalícia, que é perdida pelo não cumprimento de algum compromisso de sua parte. Deprimido, morre aos 58 anos sem o reconhecimento da importância de seu valor artístico. Sua obra é fundamental para se conhecer a sociedade e as paisagens americanas daquele período.

 

 

Onde encontrar suas obras
 
 

Panorama de uma vista do Rio de Janeiro,
tendo o Pão de Açucar ao fundo
 
 
As 79 folhas de temas brasileiros que Rugendas entregou a Langsdorff, ao abandonar a expedição, encontram-se na Academia Russa de Ciência. 
Parte de sua obra se perdeu durante a Segunda Guerra Mundial e seu acervo mais importante pertence ao Museu de Munique. Grande parte de suas pinturas de temas latino-americanos encontra-se em mãos de colecionadores particulares. 
Por sorte, a Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, mantém em catálogo em diferentes formatos, o livro VIAGEM PITORESCA ATRAVÉS DO BRASIL, com a reprodução de uma centena de pranchas.