Série Expedição Américo Vespúcio 10

LAMPIÃO por testemunha

17 de outubro de 2013

Lendas do Velho Chico – XXI

“Hoje romantizado, a saga de Lampião ainda não foi escrita – como as de Hobin Hood, dom Quixote e tantos outros cavaleiros revoltados com as injustiças, reais ou imaginárias. “

 

 

 
 
 
 
 
 
 
Continuando o roteiro, a Expedição Vespúcio seguia no velho ônibus, enquanto a barca PIPES serpenteava na carreta Volvo para ser lançada ao rio em Canindé devido às barragens e a cachoeira de Paulo Afonso. Cidades de nomes curiosos e sonoros como Curaçá, Orocó, Abaré, Rodelas, Glória, vão surgindo sonolentas à beira do rio. Na década de 1850, Halfeld descreve que a Ilha Grande de Santa Maria da Boa Vista “tem na sua parte ocidental uma igreja, cahida em ruina, e ao lado desta, igualmente decahido, um convento e outras casas com columnas de pedra. Tudo em ruina e debaixo de matto (…). Aquele templo foi edificado por missionários da companhia de Jesus” (sic).
Passamos ao largo de Cabrobó, um dos quatro focos de desertificação do Semi Árido Brasileiro. Na margem direita baiana fica outro extenso foco, o de Uauá, que bem poderia ser o quinto. Para surpresa geral, o pescador Lico Paiva deixa de cofiar a barba, fica de pé no corredor, ajeita o chapéu e discursa: “Posso estar 

perdido, mas nem tudo está perdido; temos que salvar este rio e este deserto, custe o que custar!”. O animamos, informando que nas comunidades do “Raso da Catarina”, nos rincões do Vaza Barris, a fundação Biodiversitas desenvolve o resgate da ararinha-azul-de-Lear. Então lembramos de um passado nebuloso ocorrido não longe daqui.
Para percorrer o arco norte do São Francisco há que se levar a bordo livros como “A guerra do fim do mundo”, de Vargas Llosa, o escritor peruano que escreveu sobre Canudos, motivado pela leitura quando jovem de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. O mesmo ocorreu com o escritor húngaro Sándor Márai, que chegou exausto e emocionado ao final do livro. Decidiu então reescrever aquela história no livro “Veredicto em Canudos”. Se nesta mesma geografia e pela via do fuzil ocorreu o genocídio ainda sem resposta de Antonio Conselheiro e sua Canudos, ler os três livros é conhecer a história acontecendo: aí perguntamos incrédulos, que história é essa?
Se esta é uma região de epopéia trágica, o é também dramática. Aqui viveu Lampião e seu bando, aqui era seu mundo. Com roupas típicas de couro e o chapéu esotérico coroado por miçangas, moedas e tachas, corriam sem rumo pelas caatingas. Nos momentos de paz, longe das escaramuças da “Volante”, escudados pelos fiéis cães amestrados Sereno e Valente, cantavam e tocavam suas modinhas nas noites de luar: 
 
 
Acorda Maria Bonita 
levanta vai fazer o café 
que o dia já vem raiando 
e a puliça já está de pé…”.

 
 

Hoje romantizado, a saga de Lampião ainda não foi escrita – como as de Hobin Hood, dom Quixote e tantos outros cavaleiros revoltados com as injustiças, reais ou imaginárias. Biografias há muitas. Em visita ao Museu do Sertão em Petrolina, cidade pernambucana que fica em frente a Juazeiro, copiei a mão num postal o que segue:

Não se pode contar dos feitos de Lampião sem falar dos seus companheiros bandoleiros. Nem se fala destes sem se referir àquele. Se Virgulino Ferreira da Silva era o rei e Maria Bonita a rainha, havia uma casta de dignitários, como Corisco e Dadá, mulher brava e decidida, diziam que era a verdadeira chefe do bando. Moreno e Duvinha foi outro casal famoso, assim como os cangaceiros Candeeiro, Sabino, o arredio Vinte e Cinco, Volta Seca. É este quem canta:
 
 
“Lá vem Sabino
Mais Lampião
Chapéu de couro
Fuzil na mão
Lá vem Sabino
Mais Lampião
Chapéu quebrado
Fuzil na mão”.

 
 

 
Como todo personagem polêmico, Lampião adquiriu ares lendários, e para o cinema é um veio; já foram rodados mais de quarenta filmes sobre o cangaço: é a aura de Hobin Hood dos trópicos que representa. O primeiro foi “O cangaceiro”, de Lima Barreto, de 1953, que na opinião do colombiano García Marques, jovem crítico de cinema à época, não era exatamente ‘“um filme de aventuras”, mas um testemunho social, um belo e terrível poema, um belo e duradouro poema primitivo com a melhor música de fundo’”.
O nordestino adora contar histórias do bando. Um alagoano colega meu de escola dizia que Lampião de vez em quando se confessava – e eram muitos os pecados – com o padre Cícero: “Meu padim pade Ciço!”, dizia ele, ajoelhando-se, e a única palavra correta era meu. Então Lampião ali ajoelhado e contrito, o padre batia três vezes sua cabeça com o grosso cinto, e dali ele saía cheio de si pronto para mais uma emboscada, atirando para cima e cantando a altas vozes:
 
 
“Olê muié rendeira,
olê muié rendá
Tu me ensina a fazer renda
Qu’eu te ensino a namorá
A pequena vai no bolso
A maior vai no imborná…”.