Naturalistas Viajantes

LANGSDORFF UM VIAJANTE COMPULSIVO

18 de outubro de 2013

As grandes expedições são verdadeiras aventuras, como nos melhores roteiros cinematográficos

A vida já é uma aventura ousada. Mas deixar o conforto da Europa, lá pelos idos de 1800, para pesquisar e documentar os desconhecidos sertões brasileiros e se entregar aos estudos de plantas, costumes e fauna é mais do que ousadia. É uma paixão aventureira que fascinava reis, intelectuais e pesquisadores da época. Para explicar toda a complexidade de um trabalho em ritmo de aventura, Langsdorff , muito ambicioso, sonha em fazer uma viagem “comparável às maiores viagens do grande Alexandre”. 
Em seu livro ‘Notas sobre uma viagem ao redor do mundo nos anos 1803-1808’, sentencia:
“Cada observador tem seu próprio ponto de vista pelo qual vê e julga os novos objetos; tem sua própria esfera, na qual se esforça por incluir tudo que está em mais estreito contato com seus conhecimentos e interesses… Tratei de eleger o que me pareceu representar o interesse geral — usos e costumes de diferentes povos, seu modo de vida, os produtos do país e a história geral de nossa viagem. O rigoroso amor à verdade representa não uma vantagem, mas o dever de cada cronista de viagem. Com efeito, é escusado discorrer sobre aventuras numa viagem tão longa como a nossa, ou compor contos sobre a mesma: ela fornece uma quantidade tão grande de coisas admiráveis e interessantes que nos basta esforçarmos em tudo observar e nada deixar passar”.
 

Barão de Langsdorff
Nenhum obstáculo segura o alemão-russo
 
 
“Quanto mais eu conheço este país, mais aumenta o interesse
para com seus lugares desconhecidos. O Brasil é realmente um novo mundo”.
LANGSDORFF
 
 
O barão  Georg Heinrich von Langsdorff  ou  de Langsdorf (1774-1852) foi um médico  e explorador nascido na Alemanha. Em 1797, acompanhou como clínico particular  o príncipe  Christian de Waldeck, que assumira o comando da armada portuguesa. Langsdorff foi o introdutor da prática da vacinação em Portugal. 
 
Como clínico particular, dispunha de tempo para se dedicar aos estudos da história natural, paixão que o acompanharia por toda a vida. As diferentes culturas dos diferentes povos e suas etnias o seduzem desde seus estudos em Goettingen. 
A morte do príncipe em 1798 o libera de suas atribuições.  Anota em suas memórias: “Durante minha estada em Lisboa, entrei freqüentemente em filas de peixes de diferentes aspectos e em grande quantidade. Eles atraíram de tal modo minha atenção que tomei a firme decisão de adquirir alguns conhecimentos desta parte da história natural, que até agora continuo desconhecendo, e colecionar diferentes espécies”.
Em dois anos, aprende de tal forma o português que se sente à vontade para escrever um livro em seu novo idioma: ‘Observações sobre o melhoramento dos hospitais em geral’, por Jorge Henrique Langsdorff, médico da Nação Alemã em Lisboa.
 
A publicação de seu artigo ‘Observações sobre o embalsamamento e a ressecação dos  peixes’ em 1803, pela Academia de Ciências de Goettingen,  o torna membro correspondente da Academia e da Sociedade Científica Alemã, como ‘Doutor em Medicina, Lisboa’. 
 
Através de um amigo, toma conhecimento que o Czar russo Alexandre I (1777-1825) da poderosa dinastia dos Romanov, deseja investir em uma expedição de circum-navegação a ser realizada pelos navios Nadezhda (Esperança) e Nieva. 
Solicita à Academia de Ciências, como seu membro correspondente,  a indicação para ser o  ‘Naturalista da Expedição’. Informado de que o naturalista nomeado, o Dr. Tilesius, deveria reunir-se à expedição na Dinamarca, intercepta os navios em Warnermünde e convence o comandante Kruzenstern a aceitá-lo como ictiólogo – especialista em peixes – e mineralogista. Langsdorff é incorporado e embarca no Nadezhda.
 
No dia 20 de dezembro de 1803 a expedição chega à Ilha de Santa Catarina. Cobiçada pelos ingleses, a ilha estava distante da vigilância da administração portuguesa. Avarias provocadas por tempestades retêm os navios na ilha para substituição dos mastros e para a aguada, nome dado pelos marinheiros ao reabastecimento de água doce. 
 
O domínio da língua portuguesa é um trunfo que facilita as coletas e pesquisas científicas de Langsdorff. Seus conhecimentos médicos e visão humanitária reforçam sua interação com os habitantes de Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis. 
Langsdorff nota o hábito dos habitantes  de lavar diariamente as pernas em água morna antes de ir dormir, o gosto pelo mate e que “a limpeza é um traço que distingue os habitantes locais e em seu favor, dos portugueses, em geral mais sujos. Os soldados, camponeses e a gente mais pobre conservam grande limpeza não só em suas roupas brancas, finas e boas, como também em todos os usos domésticos”. 
 
 
Essas três raríssimas ilustrações são de Tilesius, o naturalista oficial da Expedição de Circum-navegação Russa, que teve a participação de Langsdorff.
1 – A Fortaleza de Santa Cruz, na ilha de Santa Catarina, recebe a Expedição de Circum-navegação Russa, no Natal de 1803.
2 – Barcos dos navios passam pela bateria de canhões do Forte.
3 – Perfil esquemático do mapa do litoral catarinense e vista da Vila de Nossa Senhora do Desterro.
 
 
Ao deixar a ilha de Santa Catarina, em fevereiro de 1804, Langsdorff escreve em seu diário: “… e assim tivemos de deixar o mais belo e rico país da terra. A lembrança de minha estada no Brasil permanecerá em minha mente por toda a vida!”

 

Duas vistas da Fazenda da Mandioca feitas pelo pintor Thomas Ender
que a visitou em 1817

 

O mercado de escravos o revolta:

“Fui possuído por um sentimento inteiramente novo de indignação, quando pela primeira vez cheguei a Nossa Senhora do Desterro e vi aquela massa de criaturas humanas afastadas de sua pátria, desamparadas, desnudas até a cintura, e expostas para venda nas encruzilhadas”.

 Suas experiências científicas na região demonstram que o plâncton é constituído de organismos microscópicos vivos e luminosos que purificam a água do mar, teoria correta e revolucionária que se opõe à então aceita de que a luminescência era causada pela matéria orgânica em decomposição.
Langsdorff briga com seus companheiros ao subtrair um peixe raro do cardápio para estudos futuros e a intervenção do superior acalma os ânimos. Seu ritmo acelerado é percebido por um companheiro de viagem: “A constante pressa desse homem me irrita”.
 
Ao deixar a ilha em fevereiro de 1804, escreve em seu diário: “… e assim tivemos de deixar o mais belo e rico país da terra. A lembrança de minha estada no Brasil permanecerá em minha mente por toda a vida!”  
 
Em 1805, depois de passar pelos Estados Unidos, Alasca, Sibéria e Japão, é convidado pelo embaixador russo a abandonar a expedição e seguir como seu médico particular. 
A oportunidade de conhecer as ilhas Aleutas e a permanecer uma temporada na América do Norte, aonde o embaixador se dirigia para tomar posse da Companhia Russo-Americana, o seduz: “Minha escolha foi finalmente feita em favor da América, porquanto considerei meu dever perante a Ciência não deixar escapar tão inusitada e rara viagem, ainda mais em condições que pareciam tão propícias. Um fervor cego pelas ciências naturais, promessas numerosas e repetidas de toda a ajuda possível aos objetivos científicos, conseqüentemente as mais risonhas perspectivas e minha paixão pelo conhecimento, talvez também um desenvolvimento especial do “órgão da vagabundagem”, de que fala Gall (médico alemão (1758-1828), criador da Frenologia) tudo isso constrangeu-me a abandonar o navio expedicionário do senhor capitão Kruzenstern e acompanhar o senhor Riezanov às costas norte – ocidentais da América”.
 
Em São Petersburgo, novo nome
 
Chega finalmente à São Petersburgo em 1808. Adota de vez o nome Grigori Ivanovitch Langsdorff e a cidadania russa.
Entre 1808 e 1812, a publicação de suas pesquisas o transforma de ajudante em botânica da Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo em renomado naturalista, reverenciado pelos círculos científicos europeus.
Retorna ao Brasil em 1813, para assumir o recém estabelecido Consulado  Geral da Rússia no Rio. Dá vazão à sua energia inesgotável no estudo da história natural e na coleta de borboletas, sua maior paixão. Em 1816, Langsdorff compra a Fazenda da Mandioca, localizada na raiz da Serra de Petrópolis, nas proximidades de Porto Estrela, hoje município de Magé-RJ. 
Segundo o historiador Boris Komissarov, a Fazenda da Mandioca “possuía uma casa grande de dois andares, outras casas que eram arrendadas a viajantes, muitas outras dependências, uma plantação de café com 30-40 mil pés, plantações de mandioca, milho e 36 escravos, o que transmitia a impressão de tratar-se de uma típica fazenda brasileira daquela época.
 […] O maravilhoso jardim botânico, a biblioteca que nas palavras dos contemporâneos era constituída ‘de livros escolhidos sobre todos os ramos das ciências’, as diversificadas coleções científicas, como também a possibilidade de receber vários conselhos, fizeram de Mandioca, e da casa do cientista no Rio de Janeiro, lugares constantemente frequentados por viajantes estrangeiros. Ali eles podiam encontrar-se com representantes da intelectualidade da capital, artistas locais ou marinheiros russos. Sem dúvida, era um centro cultural do Brasil de então”. 
 
 
BRASIL, UM NOVO MUNDO
Encontro com Saint-Hilaire
 
 

 
Auguste de Saint-Hilaire
 
 
O botânico italiano Giuseppe Raddi (1770-1829), ao descobrir uma nova espécie de planta, denominou-a mandiocana, em homenagem à fazenda que visitara por volta de 1817. Os Imperadores Pedro I e dona Leopoldina também assinaram o livro de visitantes.
Em carta, Langsdorff afirma:
“Quanto mais eu conheço este país, mais aumenta o interesse para com seus lugares desconhecidos. O Brasil é realmente um novo mundo”. 
 
Sua curiosidade patológica nunca esmorece. Em viagem de férias no ano de 1816, ruma para Minas Gerais em companhia do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), para observar a exploração de minérios e pedras preciosas.
Em seu livro ‘Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais’, Saint-Hilaire dedica alguns parágrafos à experiência: “Este mancebo, o Sr. Langsdorff, cônsul da Rússia, e eu, partimos do Rio de Janeiro a sete de dezembro de 1816, acompanhados de meu criado, de um jovem índio Botocudo que servia ao Sr. Langsdorff e finalmente de um negro e do criado do Sr. Antônio Ildefonso”.
 
No registro do rio Paraibuna, seu magnetismo pelo insólito se confirma e Saint-Hilaire se diverte: “Como tanto o Sr. Langsdorff e eu fôssemos portadores de passaportes régios assinados pelo Ministro de Estado, os funcionários do registro nada exigiram de nós, e o Sr. Ildefonso foi compreendido do mesmo favor. Mal tínhamos deixado o Paraibuna, quando dois homens a bom correr me perguntaram pelo Sr. Langsdorff que tomara a dianteira. Em breve o alcançaram e vimo-lo de longe entre esses dois homens que tinham tirado a sobrecasaca e a viravam em todos os sentidos. O Sr. Ildefonso e eu julgamos que os empregados do registro se tivessem arrependido de nos deixarem passar tão facilmente e estivessem tomando o Sr. Langsdorff  por um homem suspeito. Tudo, todavia, se explicou em breve: Os dois homens eram alfaiates que, querendo cortar um traje à francesa, tomavam por modelo uma sobrecasaca saída das mãos de um mau oficial do Rio de Janeiro e a mais mal feita que eu já vi”.
 
Após alguns meses de convívio, depois de passarem por Queluz, hoje Conselheiro Lafaiete, a energia do alemão alto e magro de 42 anos, cujo ritmo o botânico cinco anos mais moço mal consegue acompanhar, é assim descrita:
“É já tempo de falarmos da maneira como vivíamos desde o Rio de Janeiro. Na companhia do Sr. Langsdorff, o homem mais ativo e infatigável que encontrei em minha vida, aprendi a viajar sem perder um só momento, a me condenar a todas as privações e a sofrer com alegria qualquer espécie de incômodo. (…) A partida era o momento crítico. Meu companheiro de viagem ia, vinha, agitava-se, chamava este, repreendia aquele, comia, escrevia o seu diário, arrumava as borboletas e tratava tudo ao mesmo tempo. Todo o seu corpo estava em movimento: a cabeça e os braços que arremessava para a frente pareciam censurar a  lentidão dos restos dos membros. Suas palavras se precipitavam: a respiração era entrecortada; ficava ofegante como depois de uma longa corrida. Por minha parte, tratava de apressar-me quanto possível, temendo fazer-me esperar e muitas vezes estava mais fatigado no momento da partida do que quando  chegávamos à tarde”.
 
 
RETORNO À EUROPA
 
Em abril de 1821, as corvetas russas de pesquisas Mirnyi e Vostok fazem escala no Rio, provenientes da Antártida e Langsdorff e outros diplomatas russos embarcam nos navios da expedição e regressam à Europa.  Langsdorff publica suas anotações como: “Memórias sobre o  Brasil  para servir de guia àquelles que nelle se desejão estabelecer”, traduzido para o português pelo padre Sampaio, e dá vazão ao seu entusiasmo: “Ali não se necessitam nem estufas nem chaminés para calefação da casa. Quem tiver uma camisa limpa, calças de tecido fino, camiseta e um par de sapatos — estará vestido decentemente e bem agasalhado; para o homem comum até mesmo meias e sapatos são supérfluos. (…) A imaginação mais rica e mais feliz e a mais perfeita das línguas criadas pelo homem sequer de longe podem dar idéia da extensão dos tesouros e magnificências desta natureza. Quem quer que anseie por motivos poéticos — que vá ao Brasil, pois ali a natureza poética responde a seus pendores. Qualquer pessoa, inclusive a menos sentimental, se deseja descrever as coisas como elas são ali, se transforma em poeta”.
 
Como de costume, aproveita suas férias para trabalhar mais um pouco. 
Em junho de 1821, em São Petersburgo, apresenta ao vice-chanceler do Império, Karl Nesselrode, o plano de uma grande expedição científica pelo interior do Brasil com objetivo de “descobertas científicas, pesquisas geográficas, estatísticas e outras, estudo dos produtos pouco conhecidos no comércio, material sobre todos os reinos da natureza que eu possa coletar e que possa concorrer para o enriquecimento das atuais coleções do império”.
O Czar Alexandre I o recebe dois dias depois e garante seu patrocínio pessoal e liberdade de ação à iniciativa. É nomeado  Barão, ministro todo-poderoso do czar da  Rússia e embaixador no Brasil. Com a morte de Alexandre I em dezembro de 1825, seu irmão Nicolau I (1796-1855) assume o governo e mantém os planos originais da expedição.
 
A EXPEDIÇÃO A MINAS
Sua expedição pelo Brasil teve preparação cuidadosa e apaixonada. Langsdorff escolhe especialistas em vários ramos da ciência, compra equipamentos e volta ao Rio de Janeiro em navio fretado, acompanhado de sua família, do entomólogo francês Edouard Ménétriès (1801-1861) que estava a serviço da Academia de Ciência Russa, do artista Johann Moritz Rugendas (1802-1858), do astrônomo da Marinha Russa  Nester Gavrilovich Rubtsov (1799-1874) e de cerca de vinte famílias de artesãos alemães, experiência pioneira na introdução de imigrantes estrangeiros no país.
 
 

 
Desenho de Rugendas de uma de suas idas ao Rio. Mulheres sempre por perto.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vista de Barbacena por Rugendas, em 2 de junho de 1824. Aquarela inacabada entregue à Expedição.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vista da Vila de São José d’El Rey, hoje Tiradentes, com a Serra de São 
José ao fundo. Ilustração de Rugendas em 17 de junho de 1824
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LANGSDORFF E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
 
Aportam no Rio de Janeiro em cinco de março de 1822. O estadista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), entusiasta dos assuntos científicos, apóia sem reservas a expedição, mas não colabora na causa dos imigrantes que, insatisfeitos, são alojados por Langsdorff em sua fazenda
Langsdorff simpatiza com o processo de independência e a considera inevitável. Em carta no mês de julho, manifesta: “Me parece que já está muito próximo o tempo em que o Brasil se separará para sempre da Metrópole. Dá-se conta demais de sua grandeza e os seus habitantes nunca mais consentirão ser governados pela ideias exaltadas das Cortes portuguesas”.
O Czar russo considera a Independência proclamada por Pedro I um ato de sublevação contra Portugal. Langsdorff evita o Rio e contatos com o governo. A instabilidade política no país retarda o início da expedição e os cientistas se refugiam na fazenda do anfitrião, na raiz da serra de Petrópolis. Nos meses finais de 1822 e durante o ano de 1823, as excursões científicas se limitam a Nova Friburgo e às proximidades da fazenda da Mandioca.
Em 1824, Langsdorff empreende o início da expedição e opta em viajar pela Província de Minas, mais estável que as do sul e do nordeste, envolvidas em conflitos militares. Parte no dia nove de maio e sua cadela Frugalla acompanha os viajantes.
 
No dia 26, nas proximidades de Barbacena, anota: “Os hospedeiros tentam, de todas as formas, enganar os viajantes. Em todas as vendas, havia prostitutas. Quando se lhes pergunta que tipo de atividade fazem, elas respondem, sem rodeios, que estão ali para entreter os viajantes”. 
 
SÃO JOÃO DEL REY, TIRADENTES E RIO POMBA
Visita São João d’El Rey e de São José – atual Tiradentes – atravessa a Serra de São José para conhecer as propriedades medicinais de Água Santa. Nas proximidades de Prados, ao pagar as despesas com uma moeda e abrir mão do troco pelo incômodo causado, anota: “Foi então que ouvimos, pela primeira vez, uma expressão amigável e um ‘muito obrigado’”.
Na região de Rio Pomba, hospeda-se na fazenda de dona Ana Cortes, viúva sensível e organizada que mantém impecável administração e, como só encontra as escravas nos trabalhos domésticos, estranha ao ouvir a explicação que os homens “estavam todos no campo, quebrando milho”. 
 
A expressão é comum na roça para a colheita do milho, quando se quebra a haste ao apanhar a espiga e sinalizar assim que aquele pé de milho já foi visitado. Na fazenda, Langsdorff presencia a fabricação de rapadura e tenta explicar: ‘rapadura, uma massa, ou um pão, firme e engrossada, feita do melado (da cana)”.

 

A esquerda a Cidade Imperial de Ouro Preto. Ilustração de Rugendas com o Pico do Itacolomi ao fundo. Agosto de 1824 / A direita a Cidade de Mariana. Ilustração de Rugendas feita em 30 de julho de 1824
 
 
DESCOBERTA NOVA  – Ao se preparar para uma excursão em Descoberta Nova, se previne contra os roubos e resolve portar sua antiga pistola. Durante a limpeza da arma há muito sem usar, dispara acidentalmente um tiro na barriga de Constantino, um jovem que admitira em Barbacena como caçador. 
Anota: “O meu susto, a minha afobação, a minha consternação eram tão grandes que nem posso dizer quanto. Meu corpo tremia, comecei a chorar, agarrei o rapaz e gritei: ‘Meu Deus, o que foi que eu fiz? Sou um assassino, nos meus 50 anos, um assassino! ’ Ele, porém, disse: ‘Não é nada, acalme-se, não é nada! ’ (…) Com que sentimentos terríveis eu viveria os poucos anos de vida que me restam, se, por imprudência, tivesse matado o rapaz com o tiro?!”. 
Felizmente os poucos grãos de chumbo que atingem o rapaz não provocam ferimento sério.
 
RIO POMBA – Visita e se decepciona com Rio Pomba. Em uma fazenda em que pernoita, o proprietário desconfiado quer saber a razão de oito mulas carregadas na tropa e nenhuma mercadoria para ser vendida. Langsdorff explica que são “instrumentos. ‘Ah! ’ Disse ele, ‘deixe-me ver: são instrumentos que tocam? ’ Ele nunca ouvira falar de instrumentos astronômicos. Abriu-se a caixinha para lhe convencer que ali estavam nossos relógios, ao que ele indagou se éramos relojoeiros”.
UBÁ – Passa pela Vila d’Ubá, visita os índios em Presídio e desencontra-se de Guido Marlière (1767-1836), militar francês responsável pelos índios e que estava em Vila Rica. No caminho, observa o carro de boi e assim o descreve: “O único tipo de carroça conhecido aqui é aquele modelo pesado, com eixo fixo, usado pelos antigos romanos. (…) A carroça e todo o peso pressionam o eixo, o que resulta num barulho terrível”.
 
 
 
 
 
 
Cachoeirinha de Ouro Preto vista por  Rugendas, em agosto de 1824.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rugendas não deixa de pintar o rio Paraíba do Sul. O transporte de mercadorias pelos tropeiros.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MARIANA E PIRANGA
“Onde há lavação de ouro, reina a pobreza!”
 
 

Desenho de uma habitante de Santa Luzia, feita por Rugendas em outubro de 1824, talvez seu último trabalho como ilustrador oficial da Expedição Langsdorff
 
 
 
Passa por Piranga e, antes de chegar em Mariana, constata: “Onde há lavação de ouro, reina a pobreza!” Em Ouro Preto, anota receita para se fazer farinha de milho e a maneira de se eliminar o comichão causado pelo bicho-de-pé.
Aguarda em Gongo Soco enquanto Riedel, Rugendas e Rubtsov visitam o Colégio do Caraça, chamado então Hospício de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Depois de uma refeição com muitos convidados, sente-se honrado em acompanhar a esposa do anfitrião ao jardim.  Anota envaidecido: “Em 14 anos, é a primeira vez que levei uma senhora brasileira pelo braço”.
 
As mulheres em Gongo Soco assediam Rugendas para serem retratadas por ele.
Visita a Serra da Piedade na companhia de Riedel, Rubtsov, Rugendas e Ménétriès. A serra está toda envolvida pela fumaça das queimadas que chega a obscurecer o sol. Riedel coleta tantas plantas diferentes na serra como ainda não conseguira, de uma só vez, em seus anos de permanência no Brasil. Passa por Caeté, Morro Vermelho, Sabará e Santa Luzia. Faz uma relação dos peixes encontrados rio das Velhas, dentre os quais estão o dourado e o surubim. 
Anota que “três léguas ao sul de Santa Luzia fica o Arraial de Curral d’El Rei”. Atento às vantagens da localização, questiona: “Não seria este um local conveniente para a construção da capital do Império?” O arraial seria escolhido para a construção da futura capital de Minas na década final do século XIX.
 
Descreve o Convento de Macaúbas e responsabiliza o clima excelente pela longevidade de tantas pessoas que encontra: “O Instituto é procurado para educar meninas e para castigar mulheres casadas levianas, que aqui devem ser recolhidas por seus maridos, por autoridade de uma ordem imperial de então”.
 
 

 
 
 
Hospício de Nossa Senhora Mãe dos Homens, na Serra do Caraça. Em 12 de setembro de 1824
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vista de  Caeté por Rugendas, em 23 de setembro de 1824.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Contrato de Rugendas como ilustrador oficial. O pai de Rugendas também teve de assinar como responsável. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
JABUTICABA,  A FRUTA
Ao descrever a alimentação, chama o angu de ‘pudding de canjica’, sem dúvida um nome bem mais aristocrático. 
Tece elogios à jabuticaba: “Dentre as frutas, a jabuticaba está em primeiro lugar (uma Eugenia). Aqui elas são indiscutivelmente melhores que no litoral, mas é uma fruta que ainda está em seu estado natural, não cultivado, de certa forma, selvagem. (…) A casca é grossa, dura e amarga e o caroço é grande. Normalmente, a polpa fica agarra ao caroço”.
Para sua surpresa, em Lagoa Santa encontra o maior entreposto desde que saíram do Rio de Janeiro. Descreve as muitas mercadorias disponíveis: “Depósito de vinho, de ferro e materiais, e um grande armazém de panos, chitas, tecidos de linho, além de um grande estoque de mercadorias que se podem conseguir aqui, como algodão, espremedor, descaroçador, couros, peles, solas e salitre”.
 
Dedica vários parágrafos a comentar os poderes curativos da água e afirma que “não só perderam seus poderes medicinais como também se tornaram insalubres”. Visita o Sumidouro, onde os ossos fossilizados do homem pré-histórico aguardam, adormecidos, serem descobertos pelo Doutor Lund daí a algumas décadas.
Hospeda-se na Fazenda Jaguara, anotada por ele como ‘Jacuara’, e a descreve com detalhes. Elogia o açúcar e a aguardente produzidas pela fazenda e comenta que, ao contrário dos outros lugares, “os pais não permitiam que as filhas se escondessem” dos visitantes.
A expedição passa algum tempo hospedada na fazenda do Padre João Marques, próxima do encontro do Córrego Jequitibá com o Rio das Velhas. O padre custeou a construção de uma ponte sobre o rio e franqueou seu uso, onde hoje se encontra a cidade mineira de Jequitibá.
 
DESENTENDIMO: LANGSDORRFF  X  RUGENDAS
 
Langsdorff se expõe ao narrar com detalhes seu desentendimento com Rugendas. Ao efetuar o pagamento dos viajantes, Ménétriès se recusa a devolver parte do material pelo qual estava sendo reembolsado. A discussão fica acalorada e Rugendas toma a defesa de Ménétriès e bate com o punho com força na mesa para reforçar seus argumentos, na presença do Padre João Marques. 
 
Langsdorff se controla, chama sua atenção e lembra que ele não está numa pousada, mas entre gente civilizada. Rugendas retruca: “Onde o senhor está não existe gente civilizada. Para mim não importa se o senhor é cavaleiro da Ordem de um Rei ou de um Imperador da Rússia, pois vou lhe dizer mesmo assim que o senhor é um cachorro”. 
O abalado Langsdorff se limita a comentar: “Lembre-se bem, não esqueça do que o senhor disse na presença dos Srs. Riedel, Rubtsov e Ménétriès”. 
Depois de uma noite de insônia, comunica “àquele jovem imprudente de 22 anos que ofendeu, de forma tão grosseira, um senhor de 51 anos”.
 
O COMUNICADO
Ao Senhor Moritz Rugendas,                                                                                                                                  
Considerando que o Senhor, já algumas vezes, se comportou de forma profundamente imoral em relação a mim (…) e que ontem dirigiu contra a minha pessoa os insultos mais grosseiros (…) participo-lhe que o Senhor está dispensado de todas as obrigações para comigo, pelo que devo solicitar que entregue todo o material pertencente à expedição bem como os desenhos feitos para a mesma. (…) Insultos grosseiros merecem desprezo. Tenha uma boa viagem! (…)  
G. v. Langsdorff
 
No rascunho do comunicado, Langsdorff se diz indiferente ao comportamento e ao sentimento de honra de Rugendas, que tentara obter colocação como desenhista no Rio de Janeiro e que teria violado sua correspondência particular. Em seu diário, anota aliviado: “Graças a Deus me livrei desse mau caráter, desse intrigante, provocador e agitador, que estava sempre instigando os outros contra mim”. 
 
Em seu relatório para o vice-chanceler russo em 18 de dezembro de 1824, Langsdorff explica: “Ele entregou-me algumas cópias e esboços feitos a lápis, sem grande importância e praticamente inacabados. Conservou consigo os trabalhos bons e originais”.  
Relembraria mais tarde sobre seu qüiproquó com Rugendas: “(…) apoquentou-me de todas as maneiras. Procurava criar motivos para se ver livre da expedição. Ele desenhava com aplicação, tendo feito muitos esboços e composições. Mas se eu me aproximava dele enquanto estava trabalhando, fechava o álbum com força e abria numa outra folha limpa, para que eu não visse o que estava desenhando”.  
 
As chuvas retêm a expedição por um tempo na fazenda e, entre os costumes que encontra, Langsdorff recupera: “Quando se pede um copo d’água, sempre se traz primeiro algum doce, pois assim, dizem que a água mata mais a sede”.

 

Fazenda da Jaguara. Fotografia colorizada tirada por Augusto Riedel, filho de Ludwig Riedel, na década de 1860.

 

AS FORMIGAS E TAMANDUÁS

Passa pela serra de Baldim, pelos rios Cipó e Preto e depois de Fechados, atravessa o belo rio Paraúna e começa a subir a Serra da Lapa, como era conhecida a Serra do Espinhaço antes de ser assim batizada pelo geólogo alemão Georg Eschwege (1777-1855). Manda buscar mantimentos em Congonhas do Norte e anota que a vegetação “fica cada vez mais baixa e é de uma variedade sem precedentes”.
O costume de tomar café é recente na região e perguntam a Langsdorff “se o café, além de bebida, era usado para mais alguma coisa; se, na Europa, ele não servia como corante. (…) Frequentemente o sabor era muito diferente e não sabíamos explicar por quê, até que descobrimos que eles tostavam os grãos de café com toucinho na frigideira. No país do café, é raro beber-se um bom café”.
 
O estrago provocado pelas formigas o impressiona e sugere que “o Governo deveria instituir multa para o abate do tamanduá e os fazendeiros deveriam incentivar sua procriação”. 
Relata, emocionado, a luta do tamanduá com seus cães e como consegue um exemplar para sua coleção. Considera o animal tão útil quanto os urubus e estranha que os habitantes o mate por simples diversão.
Em uma fazenda próxima ao rio Paraúna, agradecido pela acolhida das pessoas de bons costumes e pelos pequenos serviços prestados, deixa-os radiantes com um bom pagamento e algumas receitas para se tingir os tecidos de algodão.
 
 
“O Governo deveria instituir multa para o abate do tamanduá e os fazendeiros deveriam incentivar sua procriação”.
LANGSDORFF
 
 
ARRAIAL DO TIJUCO OU DIAMANTINA
Vai a Congonhas do Norte para tomar a Estrada Real e adentrar o Distrito Diamantino. No arraial do Tijuco, atual Diamantina, visita a casa de Vieira Couto e não encontra o proprietário que, aos 72 anos e surdo, vivia retirado em sua fazenda.
Na companhia do Intendente, senhor Caetano de Albuquerque, realiza uma excursão até Mendanha e aos garimpos próximos do rio Jequitinhonha.
Langsdorff descreve em minúcias “uma função, quer dizer, uma festa com baile e jantar” realizada pelo batismo da primeira filha de “um rico e jovem vendedor”, para a qual foi também convidado.
Nota que “o ambiente era tão informal alegre e tranquilo, que, se não fosse a língua, eu poderia jurar que estava num grande piquenique na Europa”.
 
Sua sugestão para coibir o contrabando de diamantes ou qualquer outra tentativa ilícita é a troca constante de guardas, inspetores e oficiais, para, como observou no Japão, evitar o florescimento de amizade entre os funcionários do governo e os moradores. “Um inspetor é sempre mais rigoroso com desconhecidos do que com conhecidos, parentes e amigos”.
No início da viagem de volta ao Rio, “alegra-se em saber que, meus amigos Spix e Martius, há alguns anos, haviam estado nesta mesma casa, onde foram recebidos com igual hospitalidade e por estas mesmas pessoas”. 
 
Passa novamente por Congonhas do Norte  e, depois de descrever o povoado de Lapinha, inicia a descida da serra do Espinhaço em Riacho Fundo, atual Santana do Riacho. Tem dificuldade de atravessar os rios Parauninha e Cipó, engrossados pelas chuvas.
Depois de Gongo Soco, Riedel e Ménétriès se encontram com Rugendas e deixam Langsdorff seguir viagem em companhia do sempre correto Rubtsov. Langsdorff se lamenta: “É realmente uma grande falta de sorte minha: estou sempre envolvido com pessoas que, no início, enquanto acham que precisam de mim, são modestas e civilizadas, mas que, depois, acabam se degenerando. Rugendas estragou Ménétriès e Riedel”.
 
 

 

 

Ponte sobre o rio Paraibuna.

Ilustração de Rugendas.

 

 

 

BARBACENA, PARAIBUNA
E  MAGÉ
Para recompor as idéias, decide “cavalgar totalmente sozinho, sem nem mesmo um negro”.
Distribui as tarefas e, acompanhado de sua cadela Frugalla, passa por Ouro Branco e Queluz, atual Conselheiro Lafaiete. Depois de Barbacena, até Frugalla desmente a proverbial fidelidade canina e o abandona. Melancólico, o persistente Barão segue viagem. Depois de Paraibuna, estranha a gentileza do proprietário de uma venda e comenta que “é raro encontrar hospitalidade na grande Estrada Real”.
Para seu espanto, é bem recebido no rancho do Governo, no rio Paraíba e alvo de gentilezas. Passa por Magé e chega, enfim, à Fazenda Mandioca no dia 17 de fevereiro de 1825.
 
 
ATENÇÃO: A Expedição Langsdorff é tão rica e tão fascinante que vamos publicá-la em seis edições ou seis partes.