Naturalistas Viajantes

EXPEDIÇÃO LANGSDORFF – parte 2

20 de novembro de 2013

Das montanhas de Minas, seguiu para São Paulo

 
“Meu rio Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens
Onde me queres levar?…”
Mário de Andrade: “A Meditação sobre o Tietê”
 
 
 
“Centenas de patos grandes nadavam na correnteza. Garças de diferentes espécies, gaivotas as mais variadas, voavam sobre nossas cabeças. (…) Entre centenas de marcas de passos que se estendiam por quase todo o banco de areia, encontramos rastros, passos ou impressões de milhares de aves e animais; aqui de um jabiru, lá de patos; acolá de capivaras e tapires; encontramos então as penas rosa-avermelhadas de um coelheiro e logo vimos passar um bando em cima de nós”.
 
Diário de Langsdorff, nas proximidades do salto de Avanhandava.

 

 
 
Georg . H. Langsdorff em 1827
retratado por Hercule Florence

 

 

 

 

descrição dos saltos e cachoeiras do Tietê, a exuberância da natureza e diversidade de animais silvestres, levados para sempre pela sequência de represas e pelo rolo compressor do progresso a qualquer preço de que o rio foi vítima levam à reflexão: Vale a pena? Para aqueles paulistas incomodados com o canto matutino do sabiá, na certa que vale!

Hercule Florence participa como ‘faz-tudo’ da expedição. É apaixonado pelas imagens. Mais tarde, na Vila de São Carlos, se dedicaria a pesquisar como fixar uma imagem em papel impregnado em nitrato de prata. Inventa para o processo o nome de ‘photographia’.  A técnica e o neologismo são de sua lavra, anos antes de Daguerre lançar o seu ‘daguerreóptico’. Florence fez ilustrações, escreveu o diário e desenhou esboços, que formam um verdadeiro ‘story board’ de um roteiro cinematográfico. A última reportagem da série será dedicada a ele.
 
 
 
EXPEDIÇÃO LANGSDORFF À
PROVÍNCIA DE SÃO PAULO

FLORENCE: um novo ilustrador, criativo e prático, nos caminhos de Langsdorff

seguiu para São Paulo

 

A expedição às terras mineiras termina sem um ilustrador. De volta ao Rio, Langsdorff dispensa Edouard Ménétriès e contrata como ilustrador o artista francês Aimé-Adrien Taunay (1803-1828), filho do integrante da Missão Francesa Nicolas Antoine Taunay (1755-1830). Adrien, de 22 anos, já viajara mundo como desenhista e sobrevivera a um naufrágio nas Ilhas Malvinas ou Falklands em 1819 e sua autoconfiança estava no nível máximo. Langsdorff é claro nas instruções: “O senhor se disporá serviçalmente a desenhar as singulares cenas da natureza e de todos os objetos que na qualidade de artista lhe exigir o Sr. Riedel”.
 
A experiência de Langsdorff com Rugendas o aconselha a se garantir com dois ilustradores. O francês Hercule Florence (1804-1879), um aventureiro multitalentoso recém chegado ao Rio de Janeiro como marinheiro, alertado por um vizinho lê também o anúncio: 
 
UM NATURALISTA EM PREPARATIVOS PARA UMA VIAGEM ATRAVÉS DO BRASIL PROCURA UM PINTOR. ÀS PESSOAS QUE PREENCHAM AS CONDIÇÕES NECESSÁRIAS, ROGA-SE QUE SE DIRIJAM AO VICE-CONSULADO RUSSO. 
 
 
Hercule Florence
O multitalentoso marinheiro de primeira viagem
 
Florence apresenta-se no vice-consulado, demonstra que é bom desenhista e que tem noção de cartografia. Langsdorff, precavido, aceita aquele magrelo de pouco mais de 20 anos como acompanhante, “às suas próprias expensas”. Florence, fascinado pelos livros de viajantes aventureiros, investe seu minguado patrimônio no empreendimento, na esperança de ter sua própria aventura para relatar.  Langsdorff não atina que aquele jovem, criativo e prático, será fundamental para a conclusão de seu projeto. O versátil Florence, além das ilustrações e do registro em diário da expedição, desempenharia funções de apoio logístico, como conseguir barcos, contratar tropas e homens e adquirir víveres para a viagem. 
Na partida do navio ‘Aurora’ no dia 30 de agosto, Langsdorff se decepciona: “Sentimento estranho: durante esses meus 14 anos de permanência no Rio, coloquei minha casa à disposição de todos e estou certo de que ela foi de grande utilidade. Agora, no entanto, subo sozinho a bordo deste navio sem que ninguém, nem mesmo o vice-cônsul, venha me prestar solidariedade ou demonstrar interesse em tão grande empreendimento científico. Alguém já viu tanta frieza?”
 
O tempo desfavorável provoca o retorno ao porto e nova partida alguns dias depois. Em carta, Langsdorff observa: “A 3 de setembro de 1825, partimos do Rio de Janeiro. Um vento fresco ajudou-nos a vencer, em 248 horas, a travessia de 70 léguas, até Santos, e isto significou dupla vantagem, porque a embarcação conduzia, também, 65 negros novos, infeccionados por sarna da cabeça aos pés.”
A conselho de Spix e Martius, deixa para efetuar os negócios em Santos: “No Rio, quando não falta honestidade (e falta na realidade), faltam conhecimento e experiência nesse ramo de comércio”. Segue de barco até Cubatão e escala a serra até o planalto, por um caminho “íngreme e parcialmente calçado”. 
Ao entrar em São Paulo, “fomos surpreendidos por meninos de rua trazendo cata-ventos e enormes papagaios de papel, com longos fios. Eles nos fizeram lembrar a Europa”. 
De passagem por Cubatão, o arguto Florence percebe: “Para o futuro, poderá este ponto tornar-se muito comercial; entretanto, a atmosfera não é ali, nem será nunca, perfeitamente salubre”.
 
 
 
‘Pain de Sucre’ no Rio de Janeiro. Por Florence.
 
 
 
Carregadores de água no Rio de Janeiro. Florence, 1825
 
 
 
Vista de Cubatão, por Hercule Florence.
 
 
 
Convento dos Capuchinhos em Santos.   Taunay 1825.
 
 
 
Rio Cubatão nas proximidades de Santos. Adrien Taunay, aquarela negra. 1825
 
 
 
Langsdorff: São Paulo a cidade mais bonita. Depois do Rio…
 
 
“São Paulo é a cidade mais bonita que já vi no Brasil”, elogia Langsdorff, para depois complementar, “depois do Rio de Janeiro. A arquitetura das casas tem mais bom gosto que no Rio de Janeiro”.
Assusta-se com o preço das pedras para calçamento e construção, raras no planalto. As vidraças nas janelas, ostentação dos ricos, são raras: “Aqui vêem-se mais casas com janelas de grades e menos vidraças que em Minas Gerais”.
Langsdorff comenta sobre a origem de São Miguel e de Pinheiros como aldeamentos dos índios Guaianases, o surgimento posterior das vilas de Barueri e Conceição de Guarulhos; da Aldeinha da Escada e de São José de Peruíbe no litoral e da fundação pelos jesuítas das aldeias de Carapicuíba, Itapecerica, Itaquaquecetuba e São José.
Nas proximidades do morro Jaraguá, encontra aproximadamente mil mulas carregadas de açúcar, com destino a Santos.
Recupera o costume dos habitantes de fazerem suas crianças comerem carne do pica-pau-do-campo (Colaptes campestris), conhecido como chã-chã. Essa ave que exagera em seus gritos de alerta, parecia um meio eficaz de destravar a língua dos bebês recalcitrantes. Ainda hoje diz-se no interior que alguém falastrão ‘comeu língua de chã-chã’.
Florence viaja para Jundiaí, onde experimenta um novo manjar: “milho descascado e cozido sem sal. É a canjica, de que os paulistas fazem sempre uso no fim da comida. (…) Com açúcar e leite é coisa deliciosa”.
 
Rico habitante de São Paulo conduzindo as suas mulas. Taunay, 1825/  Costumes de São Paulo. Taunay, 1825
 
 
 
Estrada de Santos para São Paulo. Desenho de Florence em 1825
 
 
 
Foto do mesmo local em 1917. A partir de 1864, conhecida como Estrada do Vergueiro, após a reforma feita por José Pereira de Campos Vergueiro.
 
 
 
A CAMINHO DE JUNDIAÍ
 
Aldeia é diferente de arraial
 
 
Langsdorff  parte no dia 18 de outubro para Jundiaí, mas Taunay permanece para pintar o retrato do Imperador para o Palácio do Governo. Anota que o crescimento de Campinas (Vila de São Carlos), causou a perda do antigo viço de Jundiaí, mas que a o lugar ainda é importante mercado de mulas e de conserto de ‘selas de carga’. Repara que a região é abençoada com a ausência de carrapatos, de gatos e ratos, de formigas vermelhas, dos mosquitos, baratas e bichos-de-pé. Muitas pessoas apresentam o famigerado bócio. Para compensar a ausência de um correio oficial, alguns habitantes combinaram de enviar, a cada oito dias, um emissário a São Paulo, Vila de São Carlos e Itu.
Como convidado em uma casa de campo de um rico proprietário, major José Manoel Tavares da Cunha, ouve as moças cantarem músicas alemãs numa sala ao lado. Estranha a timidez das cantoras e o dono da casa se desculpa e esclarece que não apareceram por estarem ‘en négligé’. “Elas estão com as pernas no chão”, explica o anfitrião.
Diante da indulgência de Langsdorff, as moças aparecem “bem vestidas e descalças. (…) Nesse momento, era possível antever que elas vestiam calça, camisa e xale de chita. Elas demonstraram que já participaram de reuniões sociais e que sabem ser alegres sem perder a compostura”.
As canções alemãs elas aprenderam com trabalhadores suecos da fábrica de ferro de Ipanema.    Anota que a Vila de Bragança livrou-se do recrutamento, pois seus habitantes abastecem de alimentos a cidade de São Paulo.  Verifica ainda que “como aqui não existem pedras, Jundiaí não possui uma única rua calçada”.   
À espera da chegada de Langsdorff, Florence explica: “Cabe aqui dizer a razão por que eu viajava separado deles.  Havendo pedido ao Sr. Cônsul a honra de acompanhá-lo em sua exploração ao interior do Brasil, anuiu ele, fazendo me ver que, levando grande bagagem, muita satisfação teria em me encarregar de dirigir sua condução. Aceitei sem hesitar e pus todos os cuidados em bem cumprir minha palavra até Porto Feliz, embora com prejuízo do fim para que eu fora mandado, visto como, durante 10 meses, raros desenhos pude executar. Entretanto, para diante, o cônsul, a rogo meus, ocupou-me somente como desenhista”.
 
 
Rancho dos tropeiros, por Florence
 
 
 
Caminho para Jundiaí, desenho de Florence. 1825
 
 
 
Salto de Itu. Aquarela de Florence em 1849.
 
 
 
Rio Tietê nas proximidades de Porto Feliz. Desenho de Florence. 1825
 
 
 
Langsdorff  anota a diferença entre as palavras aldeia e arraial. “Aldeia refere-se a lugares que surgiram a partir de colônias de índios e arraial, os lugares habitados apenas por portugueses e seus descendentes”. É atencioso com os doentes que solicitam sua ajuda. Suas mulas ficam por um tempo no pasto de um senhor acamado com dores no abdômen, que solicita consulta médica. É atendido como cortesia pelo uso do pasto. Refeito, não pensa duas vezes em enviar a conta: “O Sr. Dr. Cônsul deve, pelo pasto, 1200”.   Langsdorff responde na mesma moeda: “O Sr. Rodrigo deve, pelos remédios e pela consulta médica, 1200. Devo ao Sr. Rodrigo pelo pasto 1200. Consequentemente, devo receber dele, 0,000. G L”.
Em Itu, reencontra o rio Tietê, que à época era também conhecido pelo seu nome de batismo: rio Anhembi. Ao solicitar uma informação a um senhor impecavelmente vestido, se surpreende: “Foi com imensa alegria que o ouvi perguntar-me, em alemão, se eu não era Langsdorff: e me indicou uma casa que seria apropriada para mim. Esse senhor era o Dr. Engler, que mora aqui há cinco anos e trabalha na área de pesquisa científica. Como médico, ele se dedica principalmente ao estudo da Química. (…) Por meio do empenho pessoal do Dr. Engler, Riedel conseguiu uma casa para nós, bem perto da cidade, situada em meio a uma bela pastagem. Tanto nós como as mulas ficamos muito bem alojados ”.
 
Inicia os preparativos para a viagem a Cuiabá e comunica a Florence, na vila de São Carlos, sua decisão. Assim Florence relata a orientação que recebe de Langsdorff:
“Enquanto em São Carlos me entendia com um tropeiro, para o transporte de nossa bagagem a Cuiabá, recebi do Sr. Langsdorff carta em que me dizia:  – Já não vamos por terra para Cuiabá; para lá iremos por meio do rio, e embarcaremos em Porto Feliz. O Doutor Engler, de Itu, assegurou-me que os naturalistas ainda não exploraram esta rota, ao passo que vários deles, como os Srs. Martius e Spix, Burschell, Natterer, etc., já se valeram do caminho por terra. Venha a Porto Feliz, à casa do Sr. Francisco Álvares Machado e Vasconcellos, excelente pessoa, cujo conhecimento o Sr. Engler me favoreceu. Vou percorrer o sul da província e o Sr., enquanto isso, ajudado pelo Sr. Francisco Álvares, cuidará de aprestar as canoas e os víveres, assim como arrolará as tripulações”.
 
 
 
PORTO FELIZ
 
Ao chegar na cidade paulista de Porto Feliz, situada às margens do rio Tietê, Florence é recebido como se soubessem que um dia se casaria com Maria Angélica, então com 12 anos, filha de Álvares Machado: “Cheguei a Porto Feliz; atravessei lentamente a sua longa rua, montanhosa e deserta, calçada de cascalho; o sol dardejava os seus raios a prumo sobre minha cabeça. Chego enfim à casa de Francisco Álvares: sai um homem para me receber: o seu rosto de cor clara, mas descorada; os seus olhos um pouco encovados e cercados de uma tinta violeta, tinham algo rebarbativo; mas seus cabelos pretos anelados sobre uma fronte pálida, onde se lia alguma coisa, temperavam a reserva que seu olhar inspirava: era o excelente Francisco Álvares. Mal soube quem eu era, soltou uma exclamação de alegria; dei entrada numa pequena sala; as suas palavras e as suas maneiras me encheram de simpatia.
Desde este primeiro dia, tratou-me como se eu fosse da família: livros franceses, instrumentos de física, a calma perfeita que se desfruta em uma pequena cidade, e, mais do que isso a sua privança, a sua palestra variada, viva, agradavelmente mordaz, abraçando tudo; sua casa e seu jardim deitando para uma encosta rápida em cuja base corre o Tietê; a vista de uma vasta planície, onde o rio serpeia e foge para o deserto; numerosa sociedade dos bons habitantes desta cidade, toda brasileira e liberal, todos os dias, na mesa, e a toda hora, tudo isto fez de minha estada em Porto Feliz, uma era de felicidade de que raramente gozei.
Tenho saudades deste tempo; saudades de Francisco Álvares a me recitar Camões, Francisco Manuel, Bocage e outros muitos”.
 
 
Porto Feliz em 1825, desenho de Florence
 
 
 
LANGSDORFF HOMENAGEIA ESCRAVO
MORTO DANDO NOME À SUA FILHA
 
Em um trecho emocionado, Langsdorff expressa a surpresa e a dor que sente ao saber que seu fiel e querido escravo Alexandre, “um cabinda, com idade entre  16 e 17 anos”  e há quase dez em sua companhia, é assassinado por alguns negros numa ruela de Itu, pelo dinheiro que portava destinado à compra de algodão.  
Anota consternado: “Para mim e para a expedição foi uma grande perda. (…) Deus esteja contigo, querido Alexandre. Eu te ofereço minhas lágrimas e peço a Deus todo-poderoso que acolha tua alma”.  
Wilhelmine e Langsdorff dariam à filha nascida alguns meses depois o nome de Alexandrine, possivelmente homenagem do cônsul a seu insubstituível ajudante.
Viaja até Sorocaba para visitar a fábrica de ferro de São João de Ipanema. Anota a insubordinação de Taunay, que passa a noite com um amigo e não está preparado na partida da expedição e registra que desconhece qualquer ato de insubordinação por parte de Rubtsov.
Enquanto aguarda os preparativos, retorna sozinho à sua fazenda na Província do Rio via São Paulo, Mogi das Cruzes, Jacareí chamada por ele de Jaguari, São José que viria a ser dos Campos, Vila de Taubaté, Pindamonhangaba, Freguesia de Nossa Senhora Aparecida, Guaratinguetá e Lorena. Anota que uma correspondência despachada de São Paulo leva 14 dias para ser entregue no Rio de Janeiro.  
Conjectura que os caminhos ao longo do rio Paraíba mostram paisagens que deveriam parecer com as do vale do rio Reno, no primeiro século de nossa era. A paisagem plana se altera e chega a Areias e as chuvas dificultam as coisas em Bananal. Atravessa o rio Piraí e escreve que os moradores da região usam uma ponte estreita chamada ‘bequella’ para atravessá-lo. Para um estrangeiro, ‘pinguela’ é palavra complicada. Passa pelo registro de Itaguaí e chega, finalmente, à Mandioca na noite de 21 de fevereiro de 1826.