Expedição Langsdorff - PARTE 3

LANGSDORFF: EXPEDIÇÃO OU MONÇÃO?

23 de dezembro de 2013

A maior expedição científica em terras brasileiras continua

"Avanhandava! Ainda vejo e admiro sobre teu anfiteatro de granito um caudaloso rio transformado em toalha tecida d’ alvos brilhares, trêmulo-cadentes! Itapura! Ainda aos ouvidos soam-me como eternos trovões, harpas eólicas,que vagamente enlevam."
Hercule Florence, encantado com a natureza, no salto de Itapura.

 
Tres imagens da época: 1) Luiz Riedel, retratado por Florence em 1827. 2) O charme consciente de Adrien Taunay, em autorretrato. e 3) O piloto Luiz Ribeiro à frente da Bandeira Russa. Florence, 1826.
 
 
 
No começo de abril, Langsdorff deixa a Fazenda da Mandioca e, do Rio de Janeiro, embarca no navio ‘Aurora’ novamente para Santos. Sua segunda esposa, a prima Wilhelmine von Langsdorff (1801-1871), o acompanha. Langsdorff não é viúvo. Sua primeira esposa, Frederike Luise, não suportava o clima do Brasil e voltou para a casa de seu pai, em São Petersburgo, com as duas filhas nascidas no Rio de Janeiro. Wilhelmine é responsável por vários trechos do diário.
Em Cubatão, adquire animais adequados para refazer o itinerário até Itu. Ao chegar a São Paulo em um domingo, Wilhelmine estranha: “Contra todas as minhas expectativas, encontramos uma cidade erma e desabitada. Quase não se vêem pessoas na rua”. 
No dia seguinte, se refaz: “Hoje à noite, saí para ver a cidade e seus atrativos: não esperava que fosse tão bonita. As ruas são largas e uniformes, as casas e as igrejas, construídas com muito bom gosto. Os prédios e igrejas mais bonitos são feitos de barro, mas quem não conhece, jura que são feitos de arenito talhado”.    
Aproveita a oportunidade para descrever as partes da casa reservadas às mulheres, interditas a seu marido. A caminho de Jundiaí, a cética Wilhelmine testemunha um verdadeiro milagre perpetrado pelo poderoso Santo Antônio: “Encontramos hoje ao meio-dia, uma tropa que está parada há dois dias por causa de animais perdidos. O proprietário pediu-lhes que dessem um vintém ao seu Santo Antônio, garantindo que assim, eles logo encontrariam os animais. Os tropeiros quiseram economizar a vintena. No segundo dia, ontem, o proprietário lhes disse mais uma vez: ‘Se derem ao meu santo um vintém, encontrarão com certeza seus animais’. Eles deram o vintém e de imediato os animais foram encontrados”.
 
 
Porto Feliz Terra das Monções
A partir de Itu, o Dr. Engler acompanha o casal até Porto Feliz. São recebidos por Álvares Machado e instalados na casa alugada pela Expedição Imperial Russa.
A liberal Wilhelmine se assusta com os costumes do interior: “É difícil entender a educação e modo de viver das mulheres e moças desta terra. Elas vivem sempre separadas do sexo oposto, raramente se permitem ser olhadas por algum estranho, nem mesmo por parentes próximos, e têm que passar a vida toda trancadas dentro de casa. A única oportunidade que têm de aparecerem publicamente é quando vão à missa na manhã dos domingos. Nesses dias, mesmo com todo o cuidado dos pais, é que são marcados os encontros de amor. Hoje, uma pessoa bastante confiável contou-nos uma história escabrosa que aconteceu há alguns anos em Itu. Num domingo, um padre, caminhando depois da missa, viu sua sobrinha observando, curiosa e sem o conhecimento da mãe, através da janela de grade, as pessoas que passavam. O tio foi ter com sua irmã para repreendê-la por estar se descuidando da educação da filha, que, segundo ele, observava furtivamente os transeuntes. À tarde, a irmã mandou chamar seu irmão, que, a essa altura já estava de novo em casa, e mostrou-lhe o cadáver da filha, que ela havia estrangulado, garantindo-lhe que, a partir dali, ela não olharia mais as pessoas na rua”. 
Langsdorff adota uma estratégia para conter a tentação dos tripulantes das embarcações:
“Passou-se o aguardente dos barris para as garrafas, pois os marinheiros furam os barris para roubar a bebida durante a viagem”.
A naturalidade das amazonas o impressiona: “Fiquei admirado de ver moças e senhoras montando cavalo. Elas o fazem corretamente, vestindo botas e esporas, e ainda carregam uma criança na frente e outra atrás”. Riedel vai à fábrica de ferro comprar os utensílios para a viagem e o médico Álvares Machado e Florence cuidam dos demais preparativos. Adquirem três canoas. Os preparativos da expedição transformam-se numa novela e Florence é autorizado a vender várias das mercadorias a preço de custo para pagar os gastos inesperados.
 
 
A cidade de São Paulo vista por Wilhelmine. Desenho de Charles Landseer, em 1826.
 
 
 
Bênção das Canoas – Óleo de Aurélio Zimmermann é baseado em desenho original de Hercule Florence. Museu da USP . O município de Porto Feliz é conhecido como a Terra das Monções e suas riquezas turísticas giram em torno desta importante fase na história de São Paulo e do Brasil.
 
 

 
A morte do Czar e a Bandeira Imperial Russa nas canoas
 
Na agitação de um domingo, dia 14 de maio, Langsdorff anota: “Para um europeu, é muito interessante assistir a chegada de famílias vestidas de formas mais variadas, com seu séquito de escravos, carregando toda espécie de provisões, galinhas, patos, inclusive liteiras carregadas de camas, roupas, panelas e outras coisas”.
Em 18 de maio, um mensageiro enviado pelo vice-cônsul no dia 20 de abril, chega com as notícias sobre a morte do Czar Alexandre e suas consequências na economia russa. As condições internas das moradias não escapam ao crivo de Wilhelmine: “Os cômodos das casas dos habitantes mais ricos raramente são assoalhados. Numa casa grande como aquela em que estamos morando, não há um único cômodo assoalhado, mas o chão de terra vermelha batida era bem nivelado. Havia alguns buracos, e a poeira vermelha era tanta que, que precisávamos trocar de roupa diariamente”.
 
A Bandeira Imperial Russa, a mesma que os navios reais carregam em seus mastros, ornamenta cada canoa para deixar claro que não se trata de uma “expedição portuguesa para especulação comercial”.  
Langsdorff anota orgulhoso que é “a primeira bandeira européia a aparecer nos rios da América do Sul”.
No dia nove de junho, três juntas de bois puxam as canoas para os testes no rio Tietê. Obrigado a adquirir uma quarta canoa, autoriza que retirem das águas do rio um barco que pertencia a Álvares Machado e que afundara há um ano. Um carpinteiro dá alguns retoques no barco, que está em boas condições. Adquire ainda mais duas canoas, abre mão do estoque de barris de vinho, deixa o galinheiro e as galinhas e, finalmente, no dia 22 de junho de 1826, Langsdorff determina a partida da expedição. 
 
Planta da fábrica de Ferro de São João de Ipanema. Por Néster Rubtsov, em 1826.
 
 
 
Pirapora de Curuça. Óleo de Zilda Pereira, baseado em desenho de Florence. Museu da USP
 
 
 
 
Desencalhe de canoas –  Óleo de Zilda Pereira, baseado no desenho de FLORENCEMuseu da USP
 
 
Langsdorff, ao autorizar a partida, é soturno e anota o início da viagem: “Estamos às voltas com muitas dificuldades e despesas, prestes a iniciar uma viagem de pesquisa de grande porte e perigosa. Vamos percorrer um caminho nunca dantes percorrido. É como se estivéssemos diante de um véu escuro: vamos abandonar o mundo civilizado  para viver entre índios, onças, tapires, macacos e outros animais. (…) Pensar em tudo o que nos esperava e em tudo que havíamos passado, tudo isso  causou em mim uma impressão muito mais forte que quando deixei a Europa pela primeira vez”.
Todos os habitantes se reúnem no porto. ‘Cenas engraçadas’ aliviam o clima de despedida. Um devedor evita o agiota que tenta receber seu dinheiro, “a mulher que grita para seu marido: ‘Lá se vai ele, mas bem que poderia ter me deixado uma casa” e a advertência do Capitão-mor “para que todos se comportassem bem e que, saindo de Cuiabá, não abandonassem suas famílias, mas voltassem para suas casas” antecedem a benção e a aspersão de água benta pelo padre. 
 
 
 
Lista da coleção ornitológica enviada por Langsdorff para a Academia de Ciências da Rússia.
 
 
 
AS MONÇÕES
As expedições fluviais, também chamadas de ‘monções’ pela dependência das condições das cheias e vazantes dos rios, eram acontecimentos marcantes. As monções tornaram-se periódicas a partir do início do século XVIII e partiam do porto de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araritaguaba, que pertencia a Itu e foi elevada à condição de Vila de Porto Feliz pela rainha de Portugal em 1797. 
Florence, além de desenhar, também descreve a partida: “Acompanhados de Francisco Álvares, sua família, o capitão-mor e o juiz, dirigimo-nos para o porto, onde achamos o vigário paramentado com suas vestes sacerdotais, a fim de abençoar a viagem, como é costume, e rodeado de um grande número de pessoas que viera assistir a nosso embarque. Os parentes e amigos se abraçavam, despediam-se uns dos outros. (…) Romperam então da cidade salvas de mosquetaria correspondidas por nossos remadores e, ao som desse alegre estampido, deixamos as praias, onde tive a felicidade de conhecer um amigo, de conviver com gente boa e afável e de passar vida simples e tranquila”. 
 
Langsdorff explica: “A partida incluía algumas cerimônias: primeiramente, as embarcações, uma após a outra, seguiram rio acima; depois, fizeram uma curva e foram para trás de uma pequena ilha que havia na frente da cidade. O Sr. Francisco Álvares preparou-nos uma surpresa numa espécie de forte: respondeu à nossa última salva de adeus nos jardins próximos ao rio”. 
 
Florence complementa: “Passamos diante do jardim da casa de Francisco Álvares. Na base de um rochedo, haviam estendido um grande lençol branco em que quatro pedaços de pano vermelho figuravam as canhoneiras de uma fortaleza. No alto flutuava uma bandeira de paz, destacando-se por entre a fumaça das salvas de mosquetaria e foguetes do ar, que, unindo-se aos que partiam de todos os pontos da cidade, eram imediatamente correspondidos pela nossa tripulação”.

 
 
PAIXÃO E CRIME PASSIONAL
 
A esposa de Álvares Machado, d. Cândida, e a filha do casal, Maria Angélica, choram na despedida. Maria Angélica, de 12 para 13 anos, era então noiva do médico e naturalista alemão Christian Hasse, que substitui Edouard Ménétriès. 
Hasse acompanha a expedição por pouco tempo e decide voltar para a Vila de São Carlos. Não se casou com Maria Angélica e, segundo o historiador Hans Becher, foi assassinado dez anos depois com 30 facadas no peito. 
A violência é indício de crime passional.
Álvares Machado acompanha por um tempo a expedição e consegue uma sétima canoa para aliviar o excesso de peso e novo arranjo é feito. 
Pelas anotações de Florence, a presença de Wilhelmine não é explicada e é assim percebida: “Na primeira canoa, ia o Sr. Cônsul e uma moça alemã que ele trouxera ultimamente do Rio de Janeiro. Na segunda, os senhores Riedel, Taunay, Hasse e Francisco Álvares. O senhor Rubtsov e eu ocupávamos o batelão, dentro de uma barraca tão pequena que não podíamos estar senão sentados ou deitados”.
 

 
Partida da Expedição Langsdorff de Porto Feliz, desenho de Taunay, em 1826. Detalhe: a bandeira russa está desfraldada na popa do barco.
 
 
O pintor Silvio Alves refaz em óleo o desenho de Taunay da partida da Expedição Langsdorff de Porto Feliz Muda apenas o detalhe da bandeira que passa ser a brasileira e não a russa na popa do barco. Acervo do Museu da USP
 
 
 
OS ENCANTOS DA MOÇA ALEMÃ
 

Os encantos de Wilhelmine não passariam assim tão despercebidos a Florence. Nem a Taunay. O nível da tensão natural existente entre os mais de 40 homens de diferentes formações e caracteres é incrementado pela presença da ‘moça alemã’ na expedição.
A pouco mais de uma légua de Porto Feliz, a expedição realiza o primeiro ‘pouso’, que é um ‘acampamento ou alta em terra para passar a noite’, segundo Florence. Álvares Machado, Taunay e Florence voltam a cavalo para pernoitar em Porto Feliz e resgatar alguns objetos esquecidos.  
Álvares Machado e família seguem por terra até a cachoeira de Itaguassava, onde mantêm uma fazenda, e aguarda a expedição, para alegria geral. Mais um barco é adquirido e aumenta a frota. Outras canoas, pilotadas por “senhoras e moças que acompanham seus maridos pais ou amigos”, prolongam a despedida e alegram o rio com muitos barcos e expressões de incentivo. O guia profissional e piloto-mor Antônio Lopes, um dos mais de 40 integrantes da expedição entre caçadores e remadores, tem a experiência de 26 viagens até Cuiabá no currículo e responde a todas as saudações com um ‘amém’, o que impressiona Langsdorff.
O costume de trocar salvas de tiros por quaisquer motivos, nas despedidas das expedições ou no encontro com outra e mesmo para responder às saudações das casas situadas às margens do rio, incomoda Langsdorff, que reclama: “Doía-me o coração ver minha pólvora boa de caça ser consumida daquela maneira”.

 
 
De Itaguassava à  Itanhaém,a pedra que fala

 
Próximo da Cachoeira de Itaguassava, a expedição passa por grandes rochedos verticais chamados pelos índios de Itanhaém, ‘a pedra que fala’, pela propriedade de emitir ecos de até 14 sílabas. Florence comenta que “a ninfa Eco, para sempre condenada a não repetir senão as últimas sílabas do que ouvisse”, mergulhou em completa mudez pela desagregação das rochas ao longo do tempo e se recusou a responder aos cumprimentos entusiásticos dos tripulantes.
Álvares Machado acompanha a expedição e é de grande valia, pois recruta carros de bois e carroças para transportar parte da carga nas proximidades da cachoeira de Pirapora até o próximo ponto navegável. Assim Langsdorff explica a técnica utilizada, hoje um esporte radical: “Quando o barco está suficientemente vazio, (…) sua tripulação é reforçada com os melhores comandantes: guia, contra-guia e piloto, todos muito experientes, equipados com remos duplos, varas e leme, prontos para enfrentar o perigo. Em primeiro lugar, rema-se de novo para trás 30 ou 40 passos, para ganhar a corrente principal ou aquela que leva à cachoeira. O barco entra em uma dessas corredeiras, onde, graças à destreza e à força das varas e remos que o conduzem, ele é desviado rapidamente das rochas e entra na cachoeira justamente no ponto onde as águas são mais profundas. São poucos segundos, mas decisivos para o destino da viagem”.
 
Em Pederneiras
Álvares Machado permanece com a expedição até Pederneiras e as histórias que conta sobre onças, vinganças e fugas de amantes são anotadas por Langsdorff, que ensina: “Perto do nosso acampamento de hoje, encontram-se pedras para construção e pedras-de-fogo, de onde vem o nome do lugar: Pederneiras”. 
Comenta sobre a fertilidade das mulheres e afirma que “em Santos, vi uma moça que em seis anos teve sete filhos, sem ter gêmeos”. Durante a caçada a uma anta, denominação que os portugueses deram ao tapir dos indígenas, Florence recolhe um depoimento inusitado: “Aconteceu, em certa ocasião, que havendo de uns pescadores laçarem uma anta que atravessava um rio, a amarraram à canoa em que estavam. Ela continuou a nadar, levando o barco para a terra. Deixaram-na ir na suposição de que, uma vez na margem que era inclinada e alta, teria de estacar, sendo ainda mais a embarcação bastante grande. Mas eis que ao sair da água continuou na carreira,  fazendo submergir a popa. Então cortaram sem demora o cabo, e ela disparou aos matos, deixando a proa em seco”.
Ao abandonar as últimas terras cultivadas, um companheiro arruma as malas e pede para abandonar a expedição e Taunay manifesta desejo de fazer o mesmo. Riedel mostra-se ansioso em partir. A inexistência de espectadores torna sem sentido a manutenção das bandeiras hasteadas e Langsdorff ordena que sejam recolhidas. E confidencia: “Para mim, é como se as embarcações estivessem mortas”.
A ausência de habitações ao longo do rio modifica o estilo do ‘pouso’. Árvores são utilizadas como suporte das redes, que são armadas em volta de uma fogueira. Langsdorff nota que a quantidade de pássaros, aves que têm a capacidade de gorjear, diminui ao se distanciarem dos terrenos cultivados: “Aves de rapina, anhumas, tapires, cervos, capivaras e onças, afastaram-se, assim como os índios, das áreas cultivadas”.

 
 
 
Cachoeira de Itaguassava, por Florence / Salto de Pirapora no rio Tietê. Desenho de Florence
 
 
 
 
Anotações originais de Langsdorff sobre o tapir, a anta dos portugueses.
 
 
 
 
Acampamento à margem do rio. Desenho de Florence, 1826. / Encontro dos rios Piracicaba e Tietê, por Florence
 
 
 
A expedição passa pelas barras dos rios Sorocaba e Piracicaba, pela ilha de Araraquara e pela cachoeira de Bauru e atinge um local de nome lúgubre e não explicado: ‘Gente Dobrada do Cemitério’, “que parece uma cachoeira”.  
A sopa de uma cobra, uma sucuri abatida pelo guia, que diz ser a carne remédio infalível contra sarna e doenças venéreas, é preparada para a tripulação. Quem se arrisca a comer a sopa, exclama: “muito boa! Muito saborosa! Melhor que sopa de frango! Melhor que caldo de carne!”  
Num lugar chamado Ilha Morta, antes do Salto de Avanhandava, Langsdorff descreve o Tietê: “Centenas de patos grandes nadavam na correnteza. Garças de diferentes espécies, gaivotas as mais variadas, voavam sobre nossas cabeças. (…) A areia fina se acumulava na parte de cima à medida que a água do rio escoava; era como se ela estivesse coberta por uma crosta. (…) O ranger rápido de nossos pés ao afundarem na areia macia que estava embaixo dessa camada nos fez lembrar, de repente, os campos de neve europeus. Entre centenas de marcas de passos que se estendiam por quase todo o banco de areia, encontramos rastros, passos ou impressões de milhares de aves e animais; aqui de um jabiru, lá de patos; acolá de capivaras e tapires; encontramos então as penas rosa-avermelhadas de um coelheiro e logo vimos passar um bando em cima de nós”.
 
 
 
OPERAÇÃO VARADOURO NA CACHOEIRA DE AVANHANDAVA

 
Na cachoeira de Avanhandava, os barcos são descarregados e transportados por terra até a parte de baixo do rio. Langsdorff anota o nome da operação: “Varação ou varadouro”. É a primeira grande queda d’água vista por Florence, que a descreve em detalhes. Depois do salto, as águas “continuam a correr com fúria, empolgadas sempre. É, contudo, nessa corredeira que os nossos homens metem as canoas, que acabam de arrastar por terra. São também com tamanha violência arrebatados que a resistência do ar eriça-lhes os cabelos da cabeça. (…) Dada a queda, parece o Tietê outro rio. Não tem mais a largura de 200 a 300 braças; é um canal de 15 a 20 braças que corre com tanta força quanto profundidade. Como pode o canal abrir leito tão fundo e estreito nesse maciço pedregoso?”
Os trechos em que o rio corre lentamente são chamados pelos viajantes de ‘rio morto’. Langsdorff exprime inveja pelos que presenciaram o fenômeno da piracema no Tietê: “Segundo nos disseram os guias e muitos que já fizeram essa viagem várias vezes, no período das chuvas, os peixes nadam rio acima, atraindo para o rio e para o céu milhares de aves de toda espécie: corvos, águias, cegonhas, garças, patos e coelheiros, que, formando verdadeiras nuvens, vêm caçá-los”.
Cada cachoeira exige uma técnica diferente de transposição. Langsdorff detalha: “Freqüentemente, precisa-se retirar a metade da carga porque o rio é muito raso, ou porque o rio é impetuoso e, por isso, as ondas espumantes que rolam sobre as pedras poderiam bater contra a embarcação bastante carregada. Em outras ocasiões, principalmente quando há forte correnteza, a tripulação, quando os barcos estão com meia carga, é redobrada para poder dirigir a embarcação com mais segurança. Nesta grande cachoeira, que é bem diferente daquelas quedas d’água de poucos pés de profundidade, é necessário simplesmente retirar toda a carga e transportar as embarcações por terra, arrastando-as. (…) Só os remadores devem levar a carga ou o lastro. O proeiro e o piloto (os oficiais) de cada uma das embarcações devem trabalhar com cuidado e prestar contas de tudo que recebem. Um joga de cima e o outro recebe embaixo. Depois que uma embarcação foi totalmente descarregada, (…) é trazida para a margem para ser arrastada por terra. Amarra-se, então, uma corda forte na proa do barco, e todos, dos oficiais mais graduados aos trabalhadores comuns, põem mãos à obra para empurrar a embarcação por terra. (…) Quase toda a tripulação fica segurando a corda, alguns, de pé, vão da direita para a esquerda, manejando grandes e fortes barras de ferro; e outros ajudam a levar o barco para frente, empurrando-o pela parte de trás. É costume distribuir para a tripulação, durante este trabalho difícil, um cálice de aguardente, o que lhes renova a força e a coragem”. 
 
A expedição cruza com uma ‘monção’ que volta do Mato Grosso, a serviço da Coroa, onde fora abastecer a Província de ferro, pólvora e sal. Langsdorff recebe uma notícia que muito o alegra: seu colega e amigo Natterer, “cientista modesto e muito honrado” está vivo e realiza pesquisas na região. Johann Natterer (1787-1943) viera na comitiva que acompanhou Dona Leopoldina e, em 18 anos de permanência explorou metodicamente diferentes regiões brasileiras. 
Em Itu, Langsdorff tomou conhecimento de sua morte e ficou consternado. Mas o Natterer que morrera, também cientista, era o Natterer pai.
Florence observa o balé executado pelos condutores rio acima, na expedição que retorna de Cuiabá. 

 
Além dos quatro remadores, quatro homens se deslocam ao longo da canoa no manejo das zingas ou varejões: “Eles corriam para a proa, deixavam cair a vara ao fundo e, apoiando na extremidade, davam impulso aos barcos. Quando a vara ficava muito inclinada, seguravam a ponta com ambas as mãos e, fazendo ponto de apoio no peito e peso com todo o corpo, iam da proa à popa em passo cadenciado, voltando  para recomeçarem esse penoso trabalho em que consomem o dia todo”.
Langsdorff registra que o cardápio é frequentemente enriquecido com os ovos de tartaruga que encontram nas praias do rio e afirma que o seu gosto pela pimenta tornou seu uso simplesmente habitual. Anota que um jovem, que se ofereceu como caçador, tem medo dos índios, de onça, de cobra e de carrapato. Registra também que seus contratados sempre ateiam fogo nos campos, prática que Langsdorff não recrimina. 
Na verdade, sente-se aliviado ao ver “os campos em cinza e limpos na extensão de algumas léguas”. A perícia dos remadores o intriga: “Apesar de ter estado várias vezes no mar e de ter inclusive pilotado canoas, as manobras de agora eram para mim totalmente desconhecidas, até mesmo incompreensíveis, pois, para se ir de lado (de través) os remadores remavam para trás, e os guias direcionavam a canoa para o lado, impedindo que ela fosse impelida para frente pela força da correnteza”.
Leva “sementes de araucária”, os pinhões, para introduzir na Fazenda Camapuã e aconselha “o amável Ministro do Interior a obrigar todo responsável por expedição a levar sementes de banana, laranja e outras frutas e a plantá-las em lugares estratégicos”.
No salto de Itapura, Florence se encanta: “Imagina-se uma grande escavação no meio de uma planície que fosse de repente inundada: eis a catarata”. Anos mais tarde, o “martírio da vida social do século” transportaria Florence para o refúgio de suas memórias e, em suas próprias palavras, “de entusiasmo, exclamei: Avanhandava! Ainda vejo e admiro sobre teu anfiteatro de granito um caudaloso rio transformado em toalha tecida d’ alvos brilhares, trêmulo-cadentes! Itapura! Ainda aos ouvidos soam-me como eternos trovões, harpas eólicas, que vagamente enlevam”.
 
 
Buzina de chifre de boi, o berrante
O guia toca a ‘buzina de chifre de boi’ para chamar os índios Caiapós e a descrição ainda é de Florence: “Deitei os olhos para a margem oposta, curioso para ver os índios ‘vermelharem na praia’, na expressão pitoresca de nosso camarada”.
O berrante também é tocado longamente no encontro de duas monções, para “reunir gente desparramada no mato”  ou também para “chasquear da tripulação da canoa que errar qualquer manobra”.
 
 
Urubupungá 
Sob a orientação do guia, cauteloso por causa das ondas do rio Paraná durante as chuvas fortes, Langsdorff deixa a expedição no rio Tietê e segue para visitar o salto de Urubupungá, duas léguas acima de sua foz. Elogia o local, “um anfiteatro de uma beleza incrível e arrepiante”, perdido para sempre sob as águas da represa de ilha Solteira e critica: “Taunay reproduziu razoavelmente a cena”. Abaixo da cachoeira, se surpreende: “Encontrei, no banco de areia abaixo da cachoeira, os restos do crânio de um peixe gigantesco, o jaú (silurus). Fiquei realmente impressionado e curioso”. 
Bisbilhota a aldeia dos índios caiapós nas margens do grande rio: “Infelizmente, encontramos todas as portas com esteiras de palhas penduradas na frente e amarradas: Em outras palavras, as portas estavam trancadas. (…) Movidos pela curiosidade, olhamos através de algumas portas. (…) Fomos castigados por nossa curiosidade e indiscrição por milhares de pulgas e bichos-de-pé famintos, que avançaram sobre nós e cobriram de preto literalmente as nossas meias, roupas, etc.”
 
Salto de Avanhandava. Aquarela negra, Taunay
 
 
Salto do Urubupungá, aquarela negra de Taunay – 1826

 

Agosto 13, Langsdorff deixa o rio Tietê e chega ao rio Paraná
 
Pesca jaús gigantescos e filosofa: “Pensando bem, por que deveriam os índios se matar de trabalhar cuidando de lavouras para no fim conseguir apenas alimentos escassos, se, em uma hora, eles são capazes de obter alimento para 30 ou 40 pessoas?”
A expedição permanece alguns dias no último acampamento às margens do Tietê e Langsdorff, na companhia de Wilhelmine e Riedel, segue por terra até a parte superior da cachoeira e se decepciona: “O rio, na parte de cima, é raso e tem no mínimo três quartos de légua de largura. (…) No centro, há uma grande ilha que está ligada à cachoeira e que divide o rio em dois grandes braços”.  
Num dia aziago, 13 de agosto, a expedição deixa definitivamente o rio Tietê, que entrega suas águas ao rio Paraná e segue para formar o Mar del Plata. Florence anota as comemorações dos tripulantes, ao entrar no grande rio: “Cantam então os remadores; com grita jovial ferem os ares, ao passo que os proeiros batem com a mão no chato da pá e à proa, onde estão sempre em pé, redobram em cadência o sapateado habitual. Com todo esse ruído festivo foi que entramos nas águas do Paraná”.
No Paraná, a tripulação é reforçada para transpor um redemoinho gigante: “É uma cena extraordinária que acontece no meio desse rio enorme: no braço esquerdo do rio, existe uma depressão bem visível aos olhos, para onde aflui em massa, impetuosamente, toda a água que existe ao redor. Neste mesmo local, formam-se ondas altas e espumantes, que borbulham como se estivessem fervendo. Os portugueses deram o nome de ‘Funil’ a esse lugar”, anota Langsdorff.
No acampamento nas proximidades de Ilha Grande, um caçador abate uma onça pintada que perseguia um perdigueiro da expedição. Langsdorff excursiona aos rios Sucuriú e Verde. As águas cristalinas dos rios surpreendem os viajantes: “Suas águas claras e transparentes ofereceram-nos um novo espetáculo: pudemos ver nitidamente as pedras e seixos rolados no leito do rio e centenas de peixes e peixinhos”.
No dia 18 de agosto de 1826, a expedição rearranja a carga para permitir o vai-e-vem dos remadores que passam a trabalhar com as zingas ou varejões rio Pardo acima e adentra a Província do Mato Grosso. “Não é difícil imaginar como foi pesaroso para nós deixar o majestoso rio Paraná”, lamenta Langsdorff.
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO – 248
Muitas curiosidades naturais e algumas decepções humanas
aguardam o cônsul Langsdorff depois da curva do rio.