Expedição Langsdorff - PARTE 4

A Expedição adentra Mato Grosso: Do Rio Paraná a Camapuã

11 de fevereiro de 2014

Beleza, paixões e gravidez marcam o compasso da expedição. Consumo de bebidas e até formigas que adoram camisa molhada de suor aumentam os conflitos da aventura.

 
 “Wilhelmine adoeceu, penso que por causa do grande número de peixes que comeu. Banhos, purgativos, etc. Ah, meu amigo! A coisa de ter um piriri na frente de todos, principalmente para uma mulher, é um poderoso antídoto contra o amor”.
 
TAUNAY, deliciosamente indiscreto, explicita quão remota seria a possibilidade de seu envolvimento emocional com a ‘moça alemã’ e expõe a pouca privacidade existente em uma expedição.
 

 

Acampamento no rio Pardo. Fumaça da queimada ao fundo. Por Florence.
 
 
 
 
 
Langsdorff se diz pesaroso por deixar o majestoso rio Paraná. Começa o trabalho dos remadores rio Pardo acima, “a parte mais penosa da viagem até Cuiabá”. 
Florence anota admirado que “a beleza das campinas, oferecendo à vista, já farta da monotonia de interrompidos matos, vastas perspectivas cortadas de outeiros, riachos e campões, facilitam a viagem terrestre, enquanto as canoas sobem, lenta e custosamente, o estreito e tortuoso curso”.  
Um barco carregado leva aproximadamente dois meses para chegar às vertentes do rio. Sem carga e liberado das transposições por terra nos saltos, a correnteza a favor permite que em apenas uma semana o barco atinja o Paraná. 
A caça torna-se mais abundante e “quando um caçador via um veado, tirava logo a roupa e, nu em pelo, marchava de rastos quanto possível até dar alcance à espingarda”.
Langsdorff anota os variados sons das matas e registra o cantar noturno contínuo do João-corta-pau, um caprimulgídio. A nova técnica de pouso durante as cheias é assim descrita: “Eles escolhem uma árvore grande e forte para amarrar suas canoas e barcos. A maioria dorme nos barcos; outros, mais acostumados à vida errante dos ciganos e preferindo ficar mais livres, sobem nas árvores, uns sobre os outros, estendem suas redes de um galho a outro e não temem nada. Um bivaque desse tipo, em cima de uma grande figueira, seria certamente um excelente motivo de inspiração para um artista”. 
A jacuba, mistura de farinha de milho, água e rapadura, é alimento refrescante e reconfortante nas paradas e o pessoal da primeira classe a incrementa com a adição de laranja ou vinho.
 
 
Gravidez inesperada,
bebidas descontroladas e
formigas esfomeadas
 
 

Encontro de Monções no Sertão. Óleo de Oscar Pereira da Silva, baseado nos desenhos de Florence abaixo. Museu Paulista da USP.

 
Langsdorff não menciona a gravidez de Wilhelmine em suas anotações. 
No dia 23 de agosto, os caçadores abatem uma arara para o preparo de “uma sopa de doente” para Wilhelmine. ‘Minnchen’, como ele carinhosamente se dirige à esposa, também expressa desejo de ‘comer mel’.
Em setembro, anota que à tarde Rubtsov abandona o acampamento e se embrenha pela mata, apenas com a roupa do corpo e uma pequena foice. É encontrado no dia seguinte, pelado, tremendo de frio, sentado na margem do rio. Suas roupas estavam estendidas para secar. Com uma pequena bússola, tentara chegar a Camapuã, a 12 dias de viagem. O esgotamento da viagem o levou a exagerar no consumo de bebida e a uma mania tão grande de perseguição que achava que o Brasil inteiro falava mal dele e até em São Petersburgo já chegara sua fama. 
O cônsul exorta: “Meus jovens amigos, vocês que me lêem, aprendam que essa é a consequência do consumo excessivo da aguardente”. 
Candelária, o ‘proeiro do Sr. Riedel’, “voltou com a camisa toda esburacada, contando que sempre que vê um cervo branco, ele tira a camisa e pendura em uma árvore como indicação. Só que, enquanto caçava, as grandes formigas vermelhas (saúvas) a comeram. (…) Elas adoram roupas molhadas de suor; em uma noite, são capazes de roer calças, camisas e até a corda com que se amarra a rede, derrubando de repente a pessoa que dormia nela, mesmo que a corda tenha sido bem amarrada. Às vezes nem se fica sabendo que foi a formiga que soltou a corda. Nosso guia, que foi atrás de uma ema, quase não conseguiu encontrar a camisa pendurada, de tanta formiga que havia nela”. 
 
 
 
Desenho original de Florence mostrando “O Encontro de Moções”. 
A Expedição Langsdorff encontra com uma Expedição Comercial.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Acampamento no rio Pardo.
Wilhelmine cuida da ‘bóia’ do pessoal da Expedição.
Desenhos de Florence.

 

 

 

 

 

 

Surpresas: berne e a reverência a um remador morto

No dia onze de setembro, acompanhado de sua ‘Minnchen” e de Riedel,  Langsdorff visita o salto do Cajuru.

Florence, amuado por razões que Taunay indiscretamente esclarecerá, está mais inclinado a fazer suas próprias anotações e desenhos. Langsdorff percebe: “O senhor Florence fingia que queria trabalhar”. Ao transpor a Sirga do Mato, Florence explica: “Chama-se sirga o lugar em que se puxam as canoas por meio de cabos”.
O médico Langsdorff registra assim sua apresentação ao berne: “Preciso relatar aqui que hoje tive uma grande surpresa. Há cerca de 14 dias tenho três grandes pústulas no abdômen, como se fossem vários furúnculos. Eram muito doloridas, duras, mas não supuravam; eu as espremia diariamente, com muita dor, e, de tempo em tempo saía um pouco de sangue e linfa. Mas hoje, quando eu fazia exatamente isso, qual não foi a minha surpresa ao ver sair, de repente, de cada pústula, o verme de uma mosca chamada mutuca, mosca-dos-cavalos. (…) Esse verme é chamado aqui de berne ou beruanha”.   
 
As formigas e os mosquitos não dão trégua: “De madrugada, as formigas devoraram minha casaca e o chapéu do Sr. Riedel. (…) Enquanto eu escrevia ou desenhava, dúzias de vespas pousavam sobre as minhas mãos”.
Numa curva do rio, o cônsul se enternece: ”(…) vários remadores correram em direção a  uma  cruz de madeira fincada sobre uma pequena colina circular, ajoelharam-se diante dela, beijaram-na e a enfeitaram com diversas flores coloridas dos campos. (…) A cruz havia sido colocada sobre o túmulo de um remador procedente de Porto Feliz que morrera e fora sepultado aqui há dois anos. É comovente o espírito religioso dessa gente: ela é capaz de render homenagem à alma de um conterrâneo ou concidadão totalmente desconhecido, rezando um Pai-Nosso por ele e enfeitando o seu túmulo com flores. Como é raro ver uma cena como essa na Europa! Quantas vezes lá se visita um cemitério onde jazem tantos amigos e conhecidos, passa-se de cruz em cruz, de epitáfio em epitáfio, e não se dá a mínima atenção a esses mortos”.
Elogia a surpreendente memória do guia Antônio Lopes, que há 40 anos percorre a região, e conhece todos os detalhes do rio, cada árvore frutífera, o nome dos córregos, os escravos e homens livres, os percalços e naufrágios das embarcações de Porto Feliz até Cuiabá.
 
 
 
Campo às margens do rio Pardo. 
Ilustração de Adrien Taunay.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Aquarela negra de Adrien Taunay, mostrando uma vista de cachoeira do rio Pardo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
Vista de outra Cachoeira do rio Pardo, também  em ilustração de Taunay.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os segredos de Taunay, a paixão de Florence e a chegada a Camapuã
 
 
Na cachoeira do Tamanduá, a expedição cruza com um batelão e uma canoa “do negociante José da Costa Rodrigues que vinha de Cuiabá e voltava para Porto Feliz”. 
Langsdorff envia cartas para Álvares Machado e para o vice-cônsul da Rússia. Taunay escreve para Álvares Machado e confidencia com cumplicidade: “O cônsul é mais feliz do que o pouco juízo dele (isto entre nós) nos tinha prometido”.
Taunay desenvolvera tal amizade com Álvares Machado e se sente à vontade para segredar que Florence teria caído de amores pela alemãzinha. Florence é jovem e inexperiente nos assuntos do coração e, provavelmente por ignorar a verdadeira relação existente entre o cônsul já cinquentão e a ‘moça alemã’, dedicara a ela uma carta em que expressava poeticamente seus sentimentos. A imprevisível Wilhelmine não pensou duas vezes e mostrou a carta ao maridão. 
Segundo Taunay, “a mulher cruel riu de seu tormento e mostrou a carta ao velho”. Langsdorff, irritadiço de nascença, teria saído com Florence na cabeça. Taunay conta que “o pobre Florence ficou abatido e pensou em abandonar a expedição”.
 
Indiscreção e saia-justa
Taunay, por ocasião da carta, ainda era um observador imparcial. Deliciosamente indiscreto, descreve uma cena em que é também personagem e que, sem dúvida, explicita quão remota seria a possibilidade de seu envolvimento emocional com a ‘moça alemã’ e expõe a pouca privacidade existente em uma expedição. “Wilhelmine adoeceu, penso que por causa do grande número de peixes que comeu. Banhos, purgativos, etc. Ah, meu amigo! A coisa de ter um piriri na frente de todos, principalmente para uma mulher, é um poderoso antídoto contra o amor”.
A receita não demoraria a ser esquecida por Taunay, que complementa poeticamente, ao despedir-se: “Adiós, até logo, eu invejo a sorte desta água rápida que corre para baixo e que sempre vai aproximando mais as terras que Francisco Álvares habita. Agora, da torrente não, vós não correis mais depressa que meus pensamentos, vossa força acaba no Paraná e as minhas saudades sobem o Paraná e o Tietê para alcançar as Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo e alcançarão o fim do mundo”.
Alguns de seus homens, “excelentes empregados por sinal”, saudosos de casa pedem autorização para trocar de lugar com componentes da outra expedição e voltar para Porto Feliz. 
Langsdorff concorda.
 
Florence conta as aventuras 
Riedel, Taunay e o amuado Florence seguem por terra até o salto do Corão, onde aguardam a chegada dos barcos. Florence conta a aventura: “Felizmente matou o Sr. Taunay um lagarto que nos serviu de ceia e que a fome transformou em manjar suculento. Deparou-se-nos também um cacho de banana que pendia de raquítico tronco. Caso houvessem estado maduras, não teriam escapado à gente de Costa Rodrigues: por incomíveis as deixaram, mas nosso apetite era tal que assadas, assim mesmo verdes, foram regalo precioso. Durante a noite cada um de nós, por causa das onças, fez duas horas de sentinela. Quando o dia clareou de todo chegaram as canoas”.
Florence desenha os campos vizinhos à cachoeira, “onde se acham muitos cupins. São cúmulos de terra escura feitos por uma espécie de formiga assim chamados. Chegam, às vezes, à altura de um homem a cavalo. A forma é muito vária, alguns têm uma espécie de tubo ou coluna”.
 
 
 
Vista de Camapuã. Florence desenha e descreve:
“Por aclive suave chegamos ao alto de uma montanha, donde avistamos Camapuã bem embaixo de nós. É ela o espigão mestre de uma vastíssima zona. Por trás, ficavam os afluentes da bacia do Paraná; para diante quantos vão ter ao Coxim e ao Taquari, na bacia do Paraguai”. Camapuã (MS) tem hoje 14 mil habitantes. 
 
 
 
 
 
Camapuã: das 300 pessoas, apenas 3 sabem ler e escrever
Florence descreve a chegada a Camapuã: “Por aclive suave chegamos ao alto de uma montanha, donde avistamos Camapuã bem embaixo de nós. É ela o espigão mestre de uma vastíssima zona. Por trás de nós ficavam os afluentes da bacia do Paraná; para diante quantos vão ter ao Coxim e ao Taquari, na bacia do Paraguai. A descida pareceu-me o triplo da distância que havíamos subido".  
 
As Monções, ao saírem do Pardo, sobem o Sanguessuga rompendo ramos e ervas, cortando às vezes grandes árvores que, caídas de margem a margem, impedem a passagem, e vão ter ao porto do Sanguessuga, duas léguas ao sul de Camapuã. Daí transportam-se primeiro as cargas em carros do estabelecimento; depois as próprias canoas, colocadas em carroções baixos e puxadas por sete juntas de bois são trazidas por um bom caminho. 
(…) É na verdade, caso de admiração poder pensar que de Porto Feliz a Cuiabá percorrem-se 530 léguas por meio de dez rios, havendo só duas léguas de varadouro, e nem é menos de pasmar ver passar grandes canoas por cima das montanhas”.
Langsdorff registra a decadência do local. Os habitantes são tão preguiçosos que, para não construir cercados, “as plantações estão a horas de distância, para evitar que o gado bovino e os porcos as arruínem”.
Camapuã foi criada para facilitar e explorar comercialmente as expedições fluviais na transposição pelo planalto, do rio Coxim ao rio Pardo. “Garantiram-me que das 300 pessoas que existem aqui, somente três sabem ler e escrever”.
 
 
Bócio ou papo:
doença também tropical
 
O bócio é muito comum e Langsdorff registra que é “a única coisa que se opõe à beleza e, nesse aspecto, as mulheres são, sem dúvida, mais vulneráveis que os homens. Os teóricos da Europa já tentaram decifrar esse mistério”.
Pensava-se na época que o bócio, ou papo, que é o aumento da glândula tireóide, fosse causado pelo consumo da água da neve, mas a ocorrência em um país tropical desmentiu a teoria. A charada, deficiência de iodo no organismo, ainda levaria décadas para ser solucionada. Langsdorff acha interessante assinalar que as populações indígenas não apresentavam essa deficiência.
 
Educação deficiente
A incompetência administrativa o revolta: “Não se faz nada pela educação das 60 ou 70 crianças do estabelecimento. São cabeças promissoras, que poderiam perfeitamente estar ocupadas com a aprendizagem da leitura e da escrita, mas que permanecem ignorantes. (…) É ridícula a cena que acontece todas as manhãs e noites, de crianças e velhos, na igreja e em cabanas, cantando orações que eles fingem ler num papel, já que ninguém entende coisa alguma do que está ali ou pensa no que está rezando. Para eles é um passa-tempo”.
Recebe uma tartaruga do campo de presente de um escravo, caçador da fazenda: “Ele disse que sabia do meu desejo de possuir toda espécie de pássaros e animais e que, nos poucos dias que me restavam aqui, iria trazer-me tudo que achasse interessante”.
 
Saúde precária
O médico observa: “Uma menina de cinco anos, há vários meses, estava muito nervosa, paralisada e insensível nas extremidades inferiores. Apliquei-lhe hipnotismo, fricções rápidas e emplastro vesicatório, que é tão eficaz em outros casos, mas que aqui não surtiu o menor efeito. (…) Dores de dentes são muito comuns. Os vermes provocam muitas doenças nas crianças e nos idosos. Há muitos resfriados e doenças reumáticas. Não observei nenhum sifilítico. (…) Receio que a raiz da cainca, que fui eu o primeiro a receitar e por em circulação, não possa tão cedo ser introduzida na Europa, pois ela não ocorre em regiões bem definidas, mas é conhecida em todo o Brasil (como remédio), e, em cada lugar, com um nome diferente. Aqui ela é chamada de poaia (ipecacuanha); de cainca, antigo nome indígena, em algumas regiões de Minas Gerais; de raiz-preta em Mato Dentro, Minas Gerais; de cruzadinha, na comarca de Sabará, Santa Luzia; de cipó-cruz, em São Paulo. (…) Seu nome científico é Chiococca racemosa L., e, uma vez definida cientificamente, ela não pode ser confundida com outras”.
 
Registra que não existem gatos em Camapuã, “devem ter sido dizimados por cães e homens, na falta de outros alimentos”. Um cavalo de passeio custa 1.200 réis ou dois pratos cheios de sal, preço equivalente ao de um machado. Os moradores comentam “que trabalhamos muito; que, em um dia, nós nos movimentamos mais que o comandante em um mês. (…) O vestuário dos habitantes é muito simples. Os homens usam uma camisa, calça curta e um colete de tecido. As mulheres vestem blusa e saia e, quando saem, uma manta de baeta na cabeça. As moças adultas usam simplesmente uma blusa longa de tecido de algodão grosso, que vai até o pescoço. As crianças pequenas andam nuas, mesmo os meninos de 8 ou 9 anos”.
 
Antes de partir definitivamente, encontra algumas palavras para aliviar a incompetência do administrador: “O atual comandante e administrador é um bom homem, mas um pobre idiota. Ele passou aqui a maior parte de sua vida, os seus 20 anos mais pujantes; portanto, não teve tempo de aprender nada nem de adquirir idéias. Ele não conhece livros nem tem a mínima idéia do que é ciência. Tudo o que ele tem pra contar são as experiências e os fatos da sua vida quotidiana: o escravo João ou o homem livre Luiz foi atacado, ferido ou morto pelos índios ou por uma onça neste ou naquele ano, nessas ou naquelas circunstâncias; ou quantos bois, vacas ou cavalos foram mortos pelas onças”.  
No dia 21 de novembro, depois de uma estadia de 43 dias, abandona “este estranho cantinho da terra” e reinicia sua peregrinação. A expedição parte sob o olhar contemplativo do comandante de Camapuã, que de sua janela observa indiferente aquele exótico agrupamento de pessoas de diferentes matizes a caminho de se deslumbrarem com a visão de um Pantanal ainda intocado.
 
 
 
Pensava-se na época que o bócio (ou papo)
fosse causado pelo consumo da água da neve. Langsdorff, como médico, comprovou a ocorrência em um país tropical e desmentiu a teoria dos médicos europeus. O bócio é o aumento da glândula da tireoide.
Ilustração de Florence
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
Salto do Cajuru. Desenho de Florence, 1826.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Na próxima edição, a PARTE 5 
da Expedição Langsdorff