Série Expedição Américo Vespúcio 10 anos

Lendas do Velho Chico – xiv

11 de fevereiro de 2014

E chegamos ao mar. O que será desse rio?

“Agora, como vês,
aportei aqui com um barco e tripulação,
navegando o mar cor de vinho…”

(Odisséia, canto 1)

 

Ao relatar agora na condição de idealizador e coordenador dessa expedição que batizei com o nome do famoso florentino, quem sabe um pesquisador isento em nome da precisão histórica, se disponha a fazer uma pesquisa nas fontes sobre qual o verdadeiro descobridor do rio São Francisco: Vespúcio, André Gonçalves, ou Gonçalo Coelho? Na verdade, o cosmógrafo e outros estrangeiros estavam a bordo prestando serviços numa expedição portuguesa de reconhecimento palmo a palmo da costa brasileira com rumo sul, dando nomes do santo do dia aos principais acidentes geográficos, cujo comandante era português. Aqui surgem outras perguntas: quem descobriu a América? Por que ela tem este nome? Quem era o comandante?

E o herói esquecido só lembrado de quatro em quatro anos? É dura a vida do homem ribeirinho, ele tem que tirar da terra e das águas o seu pão e seu peixe. Vendo esta realidade ao vivo, lembramos da justiça e a sabedoria bíblica: “Os que semearam entre lágrimas ceifarão com alegria, os que partem chorando, com o cesto de sementes, voltam cantando, carregados de espigas”. 
Retrato aqui em versos minha homenagem à gente simples do vale, em O Barranqueiro:
 
 
Qual labaredas de fogo devorando 
as montanhas
As línguas das águas devoram os beiços, 
os barrancos
As entranhas do rio São Francisco 
A que todos chamam Chico, o Velho.
As mesmas águas, as línguas das águas
Que devoram os beiços, os barrancos
As entranhas das terras, 
nas duas margens
Não rolam nas terras das duas margens
Onde vivem os homens sem terra e sem água na terra
Com suas mulheres e seus filhos.
“Largas são as pastagens, estreitas 
são as margens”
Diz o homem à mulher e às crianças 
A escadinha de oito filhos
Que tudo escutam e nada entendem
Ao entrar os dez na casa de barro 
na beira do barranco
As terras nuas e áridas em volta
E o rio caudaloso a correr a seus pés.
 
 
Grande parte da bacia é dominada por latifúndios improdutivos e grupos corporativos. John Berger em Terra Nua (2001) cita um provérbio camponês grego que retrata aqueles que a terra expele: “A terra revela aqueles que têm valor e aqueles que não valem nada”. Quanto a nós, não podemos ser apenas “caniços pensantes que se dobram ao vento”, como dizia o filósofo francês Pascal. Muito além de chiconautas, temos que descobrir a forma de gerar riqueza nessa bacia, e preservando seus valores seculares. Na minha modesta opinião, há que se irrigar as terras em ambas as margens com parcelamento agrícola suficiente para uma família viver de forma sustentável, econômica e ambientalmente. As terras são planas e férteis, a água está a correr lado a lado, os custos para irrigação são menores. Conviver com o Semi-árido, não combatê-lo, devendo a agroecologia ser incentivada. Monoculturas alienígenas e destruidoras como a cana devem ser banidas.
 
Estamos sempre a desafiar este rio, enquanto ele não desafia ninguém: sempre achei mal contada essa história de “temos que enfrentar os desafios da natureza”. É bom lembrar que quanto mais selvagem um rio, mais vida ele terá. Nós brincamos com esse rio como se tivéssemos mais um de reserva.
Chegando ao mar, tivemos uma boa notícia: a velha canoa de tolda Luzitânia, foi restaurada por mestre Nivaldo, último guardião dessa arte naval, em projeto aprovado pelo Iphan. É a terceira remanescente dessa tradicional barca em Brejo Grande e Canindé, próximo a Penedo e Piaçabuçu. Uma outra é catarinense. São barcas de origem do antigo Egito, trazidas pelos portugueses. Então, já são três os barcos ou barcas restaurados em dez anos: o Benjamim Guimarães em Pirapora, o São Salvador em Ibotirama, e esta nau Luzitânia.
 
Barcos coloridos marulhavam inquietos. Um burrico desgarrado badalava o  ruidoso cincerro. A barca PIPES tremulava atracada num coqueiro. Niude E. Santo caminhava entre as dunas de Piaçabuçu. Lico Paiva, após seu último ato, disse que iria catar cocos e nunca mais foi visto. Antes, ali junto ao mar, ajoelhou na areia quente e rezou. Questionado como sempre, aprumou-se, abriu as abas do chapéu de lebre furado, olhou com os olhos firmes o rio de águas azuis e o mar de águas verdes e disse:
–  O que será deste rio?