Gente que fez

Os Rastros de Martin Kuhne

11 de fevereiro de 2014

Coroas de sempre-vivas para homenagear um defensor do Cerrado e da vida

 

 

“Como pouco sei e pouco sou, faço o pouco que me cabe: Me dando inteiro.” 

Martin Kuhne citando Thiago de  Mello.
 

 

Legado de Martin Wilhelm Kuhne 
Atitudes e realizações de quem passou pela vida para construir a paz pela generosidade com os homens e com a natureza.
 
Igor Simoni Homem de Carvalho 
 

Conheci Martin Wilhelm Kuhne assim que cheguei a São Gonçalo do Rio das Pedras, em finais de 2011. Os dois anos de amizade certamente não me qualificam para uma biografia detalhada – mas os aprendizados nesse tempo de convivência são valiosos demais para que eu perca a oportunidade de compartilhá-los.
Martin se fixou no Brasil em meados dos anos 1970. Inicialmente como professor no Rio de Janeiro, abriu, com sua então esposa Ana, uma iniciativa que visava explorar as belezas do país através de longas caminhadas, em locais hoje adotados pela visitação massiva, como o litoral sul da Bahia. Isso em um tempo onde “ecoturismo” e “tracking” eram palavras ausentes do vocabulário tupiniquim.
Uma destas grandes trilhas seria a “recém-redescoberta” Estrada Real. Percorrer todo seu caminho a pé, do litoral até Diamantina, mostrou-se logo inviável – ao menos para os turistas. Assim, estabeleceram a Serra do Espinhaço mineira como trecho preferencial, o que definiria o local de morada do casal: a comunidade de São Gonçalo, no município do Serro-MG. Suspeito que a cordialidade do povo do sertão mineiro foi determinante para esta escolha – foi isso que também me atraiu a estas bandas, mais de 20 anos depois.
A casa adquirida por Martin e Ana serviu de abrigo para grupos escolares e visitantes diversos, até se tornar a primeira pousada da região, o “Refúgio dos 5 Amigos”. Com a separação, Ana passou a tocar a pousada sozinha, tarefa que exerce com grande simpatia até hoje.
No período em que deu aulas em Diamantina, Martin fazia questão de percorrer a pé os 40 quilômetros de volta a São Gonçalo, aos sábados. No caminho, não hesitava em contemplar as deslumbrantes paisagens e aproveitar suas inúmeras cachoeiras. Martin conheceu a região como poucos, sempre atento às belezas contidas em suas pedras, plantas, bichos e gentes. Verdadeiro “andarilho”, Martin era um árduo defensor do andar a pé – “Deus não nos deu rodas, nos deu pernas!”, dizia-me, ao ver-me montado na bicicleta. Se indignava com a banalização do automóvel, e recordava-se nostalgicamente de sua “indestrutível” toyota, usada para explorar as rústicas savanas africanas no tempo em que morou na Namíbia.

 

E fundou a FUNIVALE
Após quase uma década de andanças e vivências pelo sertão mineiro, Martin se juntou a amigos, como o escritor Oswaldo França Junior, para fundar a Associação Pró-Fundação Universitária do Vale do Jequitinhonha (Funivale). Seria o início da construção de uma “Universidade livre, experimental e comunitária”, que visa contribuir no atendimento das necessidades e no desenvolvimento dos potenciais educacionais, sócio-culturais, econômicos e ambientais do Vale. Numa região tida como extremamente pobre, Martin enxergava, como ninguém, riquezas, belezas e potencialidades. Inicialmente prevista para funcionar na pequena vila de Biribiri, a 8km de Diamantina, a sede da Funivale acabou sendo implantada na própria São Gonçalo, que Martin tanto amava. 
Em seus 25 anos de existência, acumulam-se inúmeros cursos e projetos, dedicados ao que Martin mais prezava: o amor que congrega pessoas das mais diversas origens e profissões, em solidariedade mútua e comunhão com a natureza. Sim, a Funivale é um sonho concretizado. Suas atividades seguem firmes, e suas portas seguem abertas. Como Martin a idealizou.
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Pequizeiro preservado é um testemunho vivo da ternura e da saudade de Martin, um apaixonado pelo Cerrado.
 
 
Orientação simples de Martin: deixar que o “cisco” (cobertura vegetal morta resultante de podas e capinas) apodreça sobre o solo, ao invés de queimá-lo. Uma proteção do sol e das chuvas fortes. Além de conservar melhor a umidade, incorpora matéria orgânica e alimenta as minhocas.
 
 
 
Um apaixonado por filosofia, música, poesia e política
Martin era apaixonado por filosofia, ciência política, sociologia e outros campos do conhecimento – seu acervo pessoal é digno das melhores bibliotecas. Também se enamorava por música clássica, poesia e outras artes. Na política, além da atuação pela Funivale, Martin chegou a se eleger vereador no município do Serro, mas sua pureza de sentimento e ação talvez não fosse adequada aos meandros maliciosos da política oficial. De todo modo, Martin era um homem de grande conhecimento e nos deixou grandes realizações, as quais, sem dúvida, cravam seu nome na história.
 
Exemplos de simplicidadena prática agrícola
De tudo isso, porém, algo me admirava mais em Martin: a prática cotidiana da simplicidade e do cuidado com o outro. Dois exemplos ilustram bem essa prática, e podem ser facilmente replicados por aí. O primeiro é a orientação dada por Martin a agricultores da região, revelada por mim pelo Seu Zeca, morador antigo de São Gonçalo. Uma orientação muito simples: deixar que o “cisco” (cobertura vegetal morta resultante de podas e capinas) apodreça sobre o solo, ao invés de queimá-lo. Essa prática faz uma grande diferença para o solo: protege-o do sol e das chuvas fortes, conserva melhor sua umidade, e incorpora matéria orgânica, alimentando minhocas e outros organismos benéficos. Um solo de melhor qualidade resulta em uma melhor produção agrícola, melhorando também a qualidade ambiental. 
Outro exemplo (também revelado pelo Seu Zeca!) é o lindo pequizeiro que se encontra na Casa Guimarães Rosa, primeira sede da Funivale e hoje um local de hospedagem solidária da instituição. Seu Zeca me contou que, quando a obra da casa estava sendo concluída, Martin fez questão de que o pequizeiro fosse preservado, fazendo com que a varanda tivesse que contorná-lo. Desde então, esta linda árvore causa admiração em todos os visitantes da casa, e ainda sustenta um balanço que faz a alegria das crianças, além, é claro, de oferecer seus deliciosos frutos e sua agradável sombra.  (foto 2)
Bom, estes exemplos foram escolhidos por alguém apaixonado por agroecologia e pelo Cerrado! Mas, certamente, muitos outros exemplos estão na lembrança de todos aqueles que tiveram o prazer de conviver com Martin. Seu carinho com as pessoas e com a natureza nos deixou inúmeras lições, aprendizados, bons sentimentos e esperanças.
Partiu, neste 1º de janeiro de 2014, um ser humano grandioso, pela sua simplicidade, pelas suas atitudes e realizações. Não direi “descanse em paz”, pois Martin viveu em paz, e batalhou incansavelmente por um mundo melhor. Portanto, Martin, “esteja bem!” – em nossos corações, idéias, e onde mais puder.  
 
(*) Igor Simoni Homem de Carvalho é associado à Funivale, professor, pesquisador e pretendente a agricultor.
 
 
 
 
POEMAS PARA MARTIN KUHNE
 
Martin tin / Aniba bá / 
Apolo lu / Alex leque
 
Aníbal Freire  – [email protected]
 
Numa noite, acho que num seu aniversário, 
des/vis/lumbramos em São Gonçalo do Rio das Pedras, 
nosso futuro próximo, numa comunidade/ abrigo de amigos, 
para encerrar nossas vidas, amáveis e saudáveis e produtivos, 
num lar do desabandono solidário.
Não deu. Um dos seus projetos que não se consolidou.
Martin fechou antes seu círculo de vida-e-morte, e num looping, 
saiu pela tangente, caiu no vazio monumental.
Saiu espetacularmente de cena, deixou o cenário, 
a mesa posta, os amigos esperando.
Uma tragédia de fim de ano.
Um mistério! Um ponto final no conto fantástico de sua vida!
A comunidade de São Gonçalo fez seu rito de passagem, 
chorou, agradeceu, lembrou seus feitos, rezou, 
depositou coroas de Sempre-Vivas. 
E ficou órfã.
Depois alguns amigos mais chegados fomos a sua casa 
e a sua maneira bebemos o Martin tin de sempre.
No velório, entre tantas homenagens, 
eu queria deixar a minha reverência 
budista sertaneja. Emocionado, não o fiz. Canto agora.
“Gya tei. Gya tei. Hara gya tei. Hara so gya tei. Bodhi sowa ka. Hanya  Shingyo.”
Que traduzo em mantra rosiano:
“Para a outra margem. Para a outra margem. Para a terceira margem do rio. Sutra do Diamante.”
 

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.Martin  Kuhne….
 
Carla Macedo – [email protected]
 
Eu tenho um amigo  que morava  no cimo d’um outeiro.
De  lá,  via  do  mundo  tudo  quanto  há  para  ver…
a dor  das  crenças,  os  frutos  da  ignorância,  
a cegueira  celebrada,  o  futuro  incerto.
Mas  o  anjo  que  o  habitava    lhe  deu  a  sua  aldeia  
e lá    parou    o  tempo,  pra  que  de  perto  ele  visse
os  morros e  as  águas  limpas
e as  gentes que  dão  bom  dia  
e atravessam a cachoeira  
e carregam na cabeça os galhos secos
para o fogão de lenha
e onde as vacas soltas, nas ruas de terra,  
com  seus  pescoços  de  girafa  nos  comem  as  plantas do jardim. 
Apenas  porque  nada,  pode  ser  perfeito.
Seus  olhos  viam  e  o  coração  batia  em  cada  compasso  a  dor  da  cegueira  
que  rouba  tudo  isso  ao futuro  dos  que  vêm.
Certamente  meu  amigo  agora  ouve  Pessoa  a  declamar  seus  versos,  
argumenta  com  seus filósofos  e  ri  em  paz  no  colo  do  criador
que  o  afaga  com  a  doçura  do  Pai  a  rever  o  filho  amado
 regressando  da  viagem  que  lhe destinara,    
onde  enfrentou  tremendos  perigos  e  desafios
mas  trouxe  inteira  a  carga  preciosa  de  sua  alma  humana,  
limpa,  luzindo  o  fogo  do  amor.
E  aqui  ficamos  na  imensa  alegria  te  ter  conhecido  e  na  saudade
que  só  vai  parar  de  doer quando  te  encontrar  de  novo,  
meu  querido amigo.
 
 
 
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As lições de Martin  Kuhne
 
“Eu sou vida que quer viver no meio de vida que quer viver.” 
Albert Schweitzer 
 
Sandra Viviane de Moura – [email protected]
 
Meu coração bate forte agora…
a frase acima eu ouvi dele inúmeras vezes cada vez me impressionando mais…  
especialmente agora que ele não está mais entre nós…
Foram muitas as experiências que vivi com ele, todas elas sempre 
“mexendo”  muito comigo… tocando ora minha cabeça, ora meu coração.
Quando eu o conheci eu era uma jovem de 16 anos com a responsabilidade de educadora em uma 
pequena vila onde meus pais (agricultores) me criaram, às margens do Rio Paraúna (Tombadouro/Datas/MG). 
Ele era grande, barbudo, de fala grossa, com um nome muito 
complicado de se falar, por isto, entre nós, o chamávamos de 
“alemão”, mas mesmo assim, me lembro do primeiro abraço que dei nele… leve e caloroso!
E das coisas que ele falou conosco na 
primeira reunião… reflexões sobre qual tipo de desenvolvimento 
esperávamos depois do fim da atividade garimpeira na região.
Não sei ao certo o que se passou, mas a vida nos aproximou até que fui morar na sua vila encantada, São Gonçalo do Rio das Pedras.
Foi presente do Universo para mim. Ele me dava livros de Erich Fromm à Guimarães Rosa, textos de autores que só conheci por sua influência, todos tinham a ver com a beleza 
da vida e com o questionamento da humanidade.
Tudo sempre profundo, mas aprendi a andar nas ruas catando lixo e colocando dentro de minha bolsa, dando bom dia e chamando as pessoas pelo nome.
Aprendi a enxergar, um pouco, algumas das faces da corrupção de valores humanos.
 Nos seus relatos, aprendi a ver as coisas com 
olhares mais críticos que o habitual. 
Aprendi sem ele me dizer que era necessário, 
aprendi vendo-o fazer isto e achando nisto boniteza. 
Ele não se cansava de dizer e escrever em suas cartas e emails a frase do Thiago de Mello: “Como pouco sei e pouco sou, faço o pouco que me cabe: Me dando inteiro.” 
Impossível de esquecer! E foi assim… agora morando na França, 
desde setembro de 2013, agradeço a oportunidade que a vida me deu de conhecer esta pessoa do bem que escreveu sua história de maneira tão significativa. 
 
 
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