Expedição Langsdorff - PARTE 5

EXPEDIÇÃO PELA PROVÍNCIA DO MATO GROSSO: DE CAMAPUÃ A CUIABÁ

21 de março de 2014

Depois de percorrer o estado de São Paulo, chegar a Camapuã, pelo rio Paraná, Langsdorff chega com sua expedição a Cuiabá. A saga aventureira continua.

Langsdorff autoriza a partida da expedição no dia 21 de novembro de 1826. O comandante observa indiferente de sua janela e o cônsul, magoado com a grosseria, ainda receberia um presente de grego do oficial coió: “Na manhã seguinte, antes do sol nascer, recebi uma carta oficial do comandante de Camapuã, em que me avisava que dois desertores de Miranda e me pedia que os levasse, sob custódia, para Albuquerque. Isto acabou retardando nossa partida, pois esses homens vieram mais tarde, escoltados, a pé”.
 
No rio Coxim, “pouco abaixo de sua confluência com o Camapuã” e mais de cinco léguas distante, encontra o guia e os barcos quase prontos para partir. “Já passava das 10h quando os desertores de Miranda chegaram; comuniquei imediatamente a recepção deles ao comandante. Eles chegaram acorrentados; recebi a chave e entreguei ao portador o cartão de recebimento para ser dado ao comandante, com a promessa de entregá-los em Albuquerque”. 
Os toldos dos barcos são desmontados por causa da pequena largura do rio e da vegetação exuberante. Florence também detalha uma das transposições de um salto no rio: “Toda a carga sai das canoas, nas quais se metem cinco ou seis homens dos mais entendidos. Sobem um pouco e rio e, virando de repente, enfiam no canal. Eis que o frágil batel se inclina; voa que não corre; num redemoinho de espuma mergulha a proa ou a empina temeroso. Mas aí vigia o guia, em pé com o varejão na mão; à popa, o ajudante e os pilotos estão alertas, e no meio trabalham os proeiros. Curvados para maior firmeza das pernas, manejam o remo e a zinga, desviando a todo instante os choques de encontro aos penhascos; onde as canoas se fariam em mil pedaços”.
 
 

Transposição de um salto.
Desenho de Florence.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Gravações no arenito lembram até D. João VI
 

 
Povoação de Albuquerque (Corumbá)
e o rio Paraguai.
 Desenhos de Florence.
 
 
 
 
 
 
 
 

Langsdorff presencia a prática da pichação litográfica: “Aqui devo registrar um fato curioso: como todos que viajam por aqui, fomos obrigados a parar na margem esquerda do rio, num ponto onde ele é ladeado por rochas planas de arenito dispostas horizontalmente. Pois bem, nessas pedras, viajantes de todos os tempos deixaram cravadas as letras de seus nomes para a posteridade”. 
E, irônico, alfineta um dos ilustradores: “Um companheiro nosso chegou a pensar em erguer aqui um monumento para si próprio, mas consegui convencê-lo que um desenho da cachoeira seria um monumento mais belo e duradouro". 
Na cachoeira de Avanhandava-Mirim, detalha: Como na outra cachoeira, nessa há vários nomes gravados e vivas ao Rei D. João VI, Príncipe Regente. “O ano mais remoto que se lia era de 1778 e o mais recente, o ano passado, 1825, com referências não muito cordiais, eu diria mesmo indecentes, contra o Imperador”. 
O desgaste altera a rotina dos viajantes: “Curioso: Antes, como era difícil de fazer o pessoal embarcar de manhã cedo! Agora, nem bem amanhece, ao primeiro aceno do guia, já estão prontos para partir. Acho que eles não vêem a hora de terminar esta viagem terrível”.
Os toldos dos barcos são novamente montados . O cônsul é incansável e nem a noite o acalma: “Como sempre, tentei pegar algumas mariposas: fui bem recompensado pelo meu esforço, que não foi pouco, pois eu tinha que segurar a lanterna e a caixinha, capturar os insetos e prendê-los com alfinetes, tudo isso absolutamente sozinho. Foi difícil conseguir um escravo para me ajudar, pois todos estavam dormindo, estava tudo em silêncio”.
 
Florence expressa o alívio geral na transposição da última cachoeira do rio Coxim, que também é a última até Cuiabá, comemorada com salvas de tiros. A expedição encontra uma monção do governo que explora a navegabilidade do rio Sucuriú: “O tenente Manuel Dias tinha por companheiro o alferes Pedro Gomes. (…) Ambos, com efeito, nada conheciam do país e não sabiam usar a bússola. O tenente apresentou-se-nos de pés no chão e em mangas de camisa; o alferes não dizia cousa com cousa e parecia teimoso. Finda a comissão, nem sequer puderam dar notícia da varação, se era praticável ou não”. 
 
O Pantanal se descortina a Langsdorff: “A palmeira buriti, pouco vista ultimamente, voltou a aparecer com mais frequência, o que quer dizer que as margens começam a ficar pantanosas, um prenúncio, uma preparação para o pantanal que veremos daqui a pouco”. 
No dia seis de dezembro, Langsdorff é misterioso: “Circunstâncias especiais me levaram a mandar na frente, hoje cedo, um batelão com os Srs. Riedel e Taunay a Cuiabá”.
Como existe registro que Wilhelmine deu à luz uma menina, Alexandrine, em algum lugar do Mato Grosso em 1826, extrapola-se quais sejam as ‘circunstâncias especiais’. Pelos cuidados prestados a Wilhelmine e anotados no diário, Alexandrine pode ter nascido por volta de 23 de agosto, dia da ‘sopa de arara’, possivelmente preparada para o ‘resguardo’. 
Se o nascimento de Alexandrine acontecesse em Cuiabá, o nome da capital da Província constaria no registro. Assim, as ‘circunstâncias especiais’ seriam uma nova gravidez ou complicações com a saúde de Wilhelmine ou Alexandrine. Não existe registro se Alexandrine sobreviveu ao parto. 
Pensando bem, se realmente o cônsul solicitou a Taunay que acompanhasse Wilhelmine a Cuiabá, o dito dos antigos ‘pediu ao cabrito para tomar conta da horta de couve’ se aplicaria à perfeição.  
 
Do Coxim ao rio Paraguai
Do rio Coxim, a expedição passa para o Taquari e chega ao Pantanal. Por um ‘sangrador’ ou ‘sangradouro’ atinge o rio Paraguai. Os mosquitos não dão trégua e Langsdorff improvisa: “Temos nos protegido deles em uma canoa com mosquiteiro, da mesma forma como são usados em volta das camas, no Rio de Janeiro e em outros lugares”. Florence registra um cuidado adicional no Paraguai e seus tributários: “Quando a gente se banha em lugar de poucas piranhas, o perigo é diminuto, mas assim mesmo é preciso ter o cuidado de cobrir com as mãos as partes pudendas, porque é por aí que elas atacam de preferência. (…) Para dar uma idéia da multidão e voracidade desses animais, basta-me-á contar o seguinte caso. Havendo um dos nossos camaradas caçado um macaco e querendo moqueá-lo, pôs-se a limpá-lo e em seguida o mergulhou no rio. Sacou-o porém depressa com cinco piranhas atracadas à carne e que caíram na proa do barco. De cada vez que repetia a imersão, tirava d’água quatro ou cinco peixes, de modo que num instante contamos 60, pescados por modos que muito nos divertiu”. 
 
Albuquerque ou Corumbá
Ordena novamente o hasteamento das bandeiras para a chegada na Povoação de Albuquerque, ou Corumbá, onde é recebido cordialmente pelo comandante. Descobre uma inesperada comodidade na “melhor casa do lugar” colocada à sua disposição para as ‘idas ao matinho’, evento crítico e embaraçoso que os viajantes sempre evitam mencionar. Assim a descreve: “E ainda descobrimos uma outra comodidade, que não se vê nas melhores casas do Rio de Janeiro: uma cabaninha toda feita de folhas de palmeiras. Isso nos poupava de ter que procurar moitas ou lugares afastados, como em Camapuã”.
 
Piranhas no rio Paraguai
A limpeza e organização de Corumbá surpreendem Langsdorff: “Notei nas pessoas boas maneiras e muita decência; a perversão moral aqui é menor”.
No rio Paraguai, em Corumbá, Langsdorff se entusiasma e toma um banho no rio: “Durante nossa permanência em Corumbá, nossos principiantes viram os habitantes da vila se lavando diariamente no rio e perderam o medo desses peixes, mas ainda evitam se afastar da margem e ir para o fundo do rio. Até eu acabei me deixando seduzir pela idéia: com o sangue fervendo e a pulsação bastante acelerada por causa do calor, resolvi reanimar meu corpo cansado e aliviar a respiração com um banho. Satisfeito por ter tanta companhia, tirei rapidamente minhas roupas e me joguei na água. Mas, na mesma hora, contra a minha vontade, as crianças e os demais saíram da água, numa atitude de respeito, e me vi sozinho dentro do rio, com uma água a 1,5 pé de altura". 

 

E uma piranha pega Langsdorff
 
 

Índios Guanás, ilustração de Florence

"Recuperei o fôlego, me refresquei e ia dar um último mergulho, quando, de repente, uma pequena (felizmente!) piranha mordeu uma parte nobre e preciosa do meu corpo, deixando em volta dela a marca de um círculo bem feito, com seus 12 dentes. Por sorte, não o arrancou fora. Corri como um raio para fora do rio. Embora estivesse bastante machucado e sangrando muito, percebi que eu ainda era um homem inteiro: não havia perdido aquele pedacinho de carne precioso do corpo. Fosse um peixe maior, provavelmente eu estaria mutilado para o resto dos meus dias”.
 
Os  índios Guanás
Pela primeira vez, recebe a visita dos índios, os Guanás, já civilizados. “Falam até um bom português. (…) Estão sempre bem-humorados, cantam e riem muito”.    Florence complementa: “Os guanás moram na margem oriental do rio Paraguai, um pouco acima da vila de Miranda: acham-se todos juntos e aldeados numa espécie de grande povoação. Usam língua própria, mas em geral sabem alguma coisa de português, que falam à maneira de quase todos os índios ou dos negros nascidos na costa africana. De todas as tribos das margens do Paraguai, esta é a que mais contatos tem com os brasileiros. Lavradores, cultivam o milho, o aipim e a mandioca, a cana-de-açúcar, o algodão, o tabaco e outras plantas do país. Fabricantes, possuem alguns engenhos de moer cana, e fazem grandes peças de pano de algodão, com que se vestem, além de redes e cintas, suspensórios, silhas de selim e tabaco. Grande parte deles emprega-se nas plantações ou moendas, ganhando dois a três vinténs por dia, além do sustento, ou então se entrega a pescaria, indo levar o peixe à cidade de Cuiabá, em cujo porto habitam numas choupanazinhas. (…) O modo de falar denuncia uma língua muito doce, destituída de energia: exprimem qualquer sentimento mais forte por uma aspiração de garganta seguida de um som que bem se pode comparar ao fraco gemido de quem está sofrendo. (…) Entre as mulheres reina a mais completa devassidão, tanto mais quanto os próprios maridos, desconhecendo o que seja o ciúme, as entregam a estranhos com a maior facilidade, mediante algum dinheiro ou peças de roupa”.
Os índios se dirigem em vários barcos a Cuiabá para seus comércios e passam a acompanhar a expedição, mas logo se cansam e decidem seguir mais rápido. Langsdorff anota que sempre se arrependem das trocas efetuadas e querem seus pertences de volta. 
 
Senso de pudor dos índios
O cônsul observa a diferença do senso de pudor: “Os homens consideram que, para estar vestido, basta esconder a glande do pênis, o que eles fazem de uma forma estranha, amarrando o prepúcio na ponta”.
Florence observa a tecelagem dos Guanás: “As peças de algodão trançado, que aqui são conhecidas pela palavra portuguesa panões,   não têm, via de regra, mais que quatro varas de comprimento e duas ou três de largura. São tramadas de um modo para mim desconhecido, os fios verticais inteiramente cobertos pelos horizontais de lado e de outro, o que faz com que o tecido seja muito espesso e próprio para barracas, por ser impermeável à mais violenta chuva. (,,,)    Os panões têm riscas largas e de diferentes cores: escuro carregado, preto, branco, pardacento, ruivo e azul claro; mas essas cores, que os fabricantes tiram de minerais e vegetais, não conservam a viveza senão por pouco tempo; depressa, descoram, parecem sujas, desmaiam; nunca, porém, de todo”. 
 
O cônsul percebe que os mosquitos incomodam também os índios:“Como os índios também são vulneráveis aos mosquitos, inventaram uma forma bastante peculiar de se proteger deles. É um pedacinho de pano grosso, feito de fibras de tucum, todo rodeado de franjas, com duas pontas presas em uma vareta, que eles penduram nos ombros nus. De vez em quando, com muita habilidade, eles sacodem em volta do corpo, para a direita e para a esquerda, e assim espantam os mosquitos.
 
Indios Guatós, no São Lourenço
No rio São Lourenço, descreve os índios Guatós e suas cabanas e alguns de seus costumes. “Para os homens, é vital usar uma faixa em volta do braço esquerdo, para evitar que a tira do arco ricocheteie ao lançar a flecha. (…) Os seios das meninas e das moças não têm formato esférico, mas cônico, são fartos e pontudos”.
Os índios criam galinhas, apenas por diversão, e seus papagaios falam a língua indígena, para o espanto dos remadores. Langsdorff não se sai bem na prática do escambo: “Um índio resolveu trocar uma coberta pequena pelo meu longo espelho da Boêmia e o carregou, com todo o cuidado, de Corumbá até aqui. Volta e meia ele se olhava nele; às vezes, emprestava aos companheiros para estes se verem também. Mas, hoje, este pobre homem me procurou e, muito triste, me devolveu o espelho. Pelo que pude entender de sua explicação, durante a tempestade e os ventos de ontem, ele sentiu frio, pois não tinha mais sua coberta; e, como não podia usar o espelho para se cobrir, quis desfazer a troca. Deu-me o espelho de volta, não sem antes olhar pela última vez nele”. 
 
 
Aracuãs: Florence antevê personagens da Disney
Florence está sempre atento aos sons da natureza. Descreve a vocalização dos aracuãs antes que essa ave, aparentada com o jacu e a galinha, fosse convidada para ser personagem de desenho animado da Disney: “Há dias, ainda a navegar o Taquari, ouvíramos com muita frequência o canto das anhumapocas e aracuãs,  Com freqüência víamos esta interessante ave, sempre aos pares; quando muito, três juntos. Seu canto, erguendo-se na solidão dos pântanos recorda o som do sino no campo. O casal de aracuãs é inseparável. Se canta o macho, responde a fêmea, repetindo as mesmas notas, mas em tom diferente. Quando avultam os pares, então o alarido é forte. Esse canto imita os gritos de uma galinha que está sendo perseguida, com diferença de que é cadenciado e repetido alternadamente por um e outro”.
 Florence reconhece outros sons mais familiares:  “No dia 26 de dezembro ouvimos, por volta do meio-dia, o latido de cães e cantar de galos. Aproximávamo-nos de um ponto habitado. Que consolo!  Chamava-se Dourados o lugar; abicamos, e daí a pouco chegaram umas canoas cheias de guatós. Em pé, à proa, os maridos remam; as mulheres sentadas à popa vêm governando por meio de uma pá: as crianças acocoram-se no meio sobre esteiras. As embarcações, com três palmos e meio de largo sobre 20 ou 25 de comprido, se tanto, levam sempre no bojo cães, arcos e flechas para caçadas e pescarias".
 
Costumes de homens e mulheres
Os homens apresentam-se vestidos com uma calça de algodão; as mulheres com uma saiazinha, deixando o resto do corpo descoberto. Estas roupas, que conseguem dos brasileiros por meio de barganhas, são em geral muito sujas por não serem lavadas ou, se passadas por água, por não levarem nunca sabão. (…) Os varões deixam crescer o cabelo: amarram-no no alto da cabeça e fazem uma espécie de penacho; as mulheres e as crianças usam-no corrido. Os adultos andam nus; as moças, cobrem as partes pudendas com rolo de cordas da casca da palmeira tucum, suspenso a uma embira amarrada à cinta. Todos eles trazem nas orelhas, como brincos, penas vermelhas, negras ou de cores várias. (…) Quando toda a família está embarcada, a borda da canoa fica com dois dedos acima da água, o que não os impede de manejarem com a maior habilidade as flechas para fisgarem peixes ou traspassarem pássaros. Matam, além disso, jacarés que lhe servem de principal alimento, porque deles nunca há falta. Em terra não são menos destros caçadores. Valentes agressores da onça, procuram de princípio enfurecê-la, fazendo-lhe a flechadas ligeiros ferimentos: quando a fera irritada se atira, o guató a espera de pé, imóvel, e crava-lhe a zagaia, lança curta armada de um osso de jacaré ou espigão de ferro, conseguido por troca com os brasileiros. (…)  Seu artesanato consiste em tecer com casca de tucum grosseiros mosquiteiros, dentro dos quais dormem; abrigos, porém, por tal modo espessos e pesados, que só por força do hábito é possível suportar o calor que faz debaixo deles. Fabricam ainda um tecido quadrado de pé e meio a dois de lado e que prendem por duas extremidades a um pau para servir de ventarola e com elas afugentam os temíveis pernilongos. Só à noite o deixam: tal é a importunação daqueles teimosos e sanguissedentos insetos”. 
 
Dourados
Nas proximidades de Dourados, a expedição passa para o rio São Lourenço, que através de sangradouros, liga o rio Paraguai ao Cuiabá. Cansado de tanto espantar mosquito, Langsdorff  passa a noite de Ano Novo acampado na beira do rio. Encontra uma expedição militar proveniente de Cuiabá, enviada para combater os Guaicurus. “Pela primeira vez, as bandeiras do Império Russo e do Brasil se saudaram”.
 
Nova técnica de navegação é empregada no rio São Lourenço: “Tornava-se de dia para dia mais penoso o modo de subir contracorrente pelo crescimento do rio que tendo, naquela estação de chuvas, recebido já bastante águas das cabeceiras, não permitia mais às zingas alcançarem o fundo. Recorriam então nossos camaradas a umas varas compridas, terminadas em forquilhas, com as quais, agarrando os ramos de árvores e troncos ou apoiando a extremidade de encontro a eles, empurravam as canoas por diante. Raros eram, porém, os galhos resistentes e cada vez mais violenta a correnteza. Por isso também nos movíamos com morosidade desesperadora, que os mosquitos, a chuva e a monotonia transformavam em sofrimento quase intolerável”, explica Florence. 
 
 
Índios Guanás no rio São Lourenço. Desenho de Florence.
 
 
 
 
A expedição em Três Barras
A expedição acampa em Três Barras, na região do Alto Paraguai. Florence anota o diálogo com um índio Guató: “Dizem que os guatós vivem com mais de uma mulher: a maior parte dos que vi levavam uma única. Lembro-me, porém, que numa ocasião troquei algumas palavras com um deles que tinha na sua canoa três mulheres. Perguntei-lhe se todas eram suas; respondeu-me que sim. Pedi-lhe então por gracejo uma e ele retorquiu-me zangado que eu deveria ter trazido comigo a minha. Repliquei-lhe que não fora isso possível. “Pois bem, disse-me ele, se você tivesse aqui sua mulher, eu a trocava por uma destas”.  Bem ao contrário dos guanás, são muito ciosos de suas esposas, a quem amam extremosamente e das quais recebem grandes provas de ternura e fidelidade. Aos filhos dedicam vivo afeto e os mais cuidadosos carinhos. A língua deles é rápida. Quando estão dois a conversar, nada se ouve senão monossílabos ou palavras curtas que sucedem de um a outro alternadas e breves. O sim é uma forte inspiração seguida de um som gutural”. 
 
Guanás e Guatós
Florence dedica vários parágrafos aos índios Guanás e Guatós, descreve suas características físicas, suas atividades, seus comércios e costumes gerais. Relata um episódio tristemente trágico para exemplificar o caráter dessas tribos: “A vista, um dia, de uma choupana dos Guatós situada num bonito local que por isso tem o nome de Alegre, dissipou por instantes nossa tristeza e deu alguma animação aos remadores. Desembarcando, avistamo-nos com uma família feliz. O marido voltara da caça e trouxera um jacaré; a mulher era moça e de fisionomia agradável; dois filhinhos, o mais velho com menos de quatro anos, mereciam-lhes os mais ternos cuidados. Essa boa gente tinha bananas, raízes de cará e mandioca, uma canoa, arcos, flechas, esteiras, cestos, panelas, dois mosquiteiros e matapás. Um cão guardava a casa. O Sr. Cônsul  propôs ao guató irem juntos até Cuiabá e num ápice a família, acedendo ao convite, embarcou-se não deixando em terra senão a palhoça. Tudo coube na canoínha que não tinha mais de 18 polegadas de largo sobre 14 ou 15 pés de comprido. Como todos os da sua tribo, este era hábil em caçar e pescar, de modo que nos trouxe a mesa sempre farta de aves e peixes. Quinze dias depois de nossa chegada à capital, o Sr. Cônsul despediu-os, presenteando-os com facas, machados, anzóis e outros objetos de grande estimação entre aquela gente. Estas dádivas, porém, lhes foram funestas. Excitaram a cobiça de dois guanás que moravam no porto de Cuiabá e que, depois da partida, seguindo-os numa canoinha, foram atacá-los à falsa fé e os mataram a todos, homem, mulher, criancinhas, atirando os cadáveres à água para que as piranhas os devorassem.
Depois de tão negra ação, retiraram-se os assassinos para o seu aldeamento e, crendo-se em segurança entre os seus, não supuseram necessidade de calar o que haviam feito. Chegou a notícia aos ouvidos do Tenente-Coronel Jerônimo e ele deu-se pressa em mandar prender os criminosos, remetendo-os em ferros para Cuiabá. Como na expedição de Jerônimo achavam-se alguns guatós, reclamaram estes os guanás para levá-los e tomarem por suas mãos desagravo; o comandante, porém, não consentiu em tal, afiançando-lhes que o capitão-mor de Cuiabá os mandaria supliciar. (…) Levantou-se toda a tribo; plantou seus arcos e flechas ao longo do rio e foi esperar a canoa, que não tardou a navegar naquelas águas. (…) Esse comandante, que não passava de um sargento, não tendo talvez armas suficientes e vendo a inferioridade de suas forças contrapostas à firmeza dos guatós, entregou os dois miseráveis que, apesar de se prostrarem de joelhos pedindo misericórdia, foram num instante feitos em postas. Cortaram as cabeças e as fincaram à beira do rio em paus com pedaços de pele, expostas às vistas dos guatós cujo caminho para Cuiabá é este de São Lourenço. (…) Em seguida levaram as correntes de ferro para o tenente-coronel Jerônimo, dizendo-lhe: ‘Eis o que vos pertence. Guató não é ladrão. Guaná tinha matado guató, guató mata guaná’”. 
 
 
Ìndios Guatós no Rio Paraguai. Ilustração de Florence
 
 
Mosquitos e os pecados
Florence e outros viajantes europeus registram que o uso constante das canoas pelos índios provocava um desenvolvimento maior da caixa torácica e membros superiores, que contrastava com as extremidades inferiores pouco desenvolvidas. Langsdorff luta contra os mosquitos: “Eram tantos que as telas do lado de fora pareciam pretas. Bastava encostar o pé, a mão ou o cotovelo nelas para que viessem milhares deles; e picavam através do tecido. (…) Quem quiser se penitenciar de seus pecados, está aí uma ótima oportunidade”.
As águas estavam alguns palmos acima de seu nível e a expedição se adapta: “Nesse caso, costuma-se colher galhos de árvores pelo caminho, colocar um pouco de barro na proa do barco e ali fazer o fogo para cozinhar. Portanto, prepara-se a comida na própria canoa, às vezes até se dorme nela ou em redes amarradas nas árvores por sobre as águas. Às vezes, numa única figueira grande, penduram-se as redes de todos os tripulantes do barco”.

 

Langsdorff:
“Por que todo artista tem que ser temperamental?”
 
Langsdorff nota " no jovem artista a Florence uma certa preguiça e indiferença em relação aos assuntos da expedição. Ele não achava com o que se ocupar, só pensava em chegar logo a Cuiabá. Veio, então, me procurar ontem à noite, para pedir permissão para seguir na frente para Cuiabá, naquela canoinha onde mal cabiam três remadores. Por bom senso, neguei-lhe a permissão. Ele respondeu com muita grosseria e impertinência, esquecendo-se do respeito que me deve. Fui, então, forçado a demiti-lo: a partir de hoje ele será tratado como simples passageiro; mas vou continuar exigindo que me trate com cortesia, como pessoas civilizadas”.
 
E divaga: “Não entendo porque todo artista tem que ser temperamental, nervoso e displicente. Talvez por isso a maioria deles morra na miséria. Suas obras só são reconhecidas depois de sua morte e vão enriquecer os comerciantes de livros, quadros e antiquários, até mesmo de objetos da História Natural, pois estes sabem muito bem como valorizar esse material que um pobre colecionador, a duras penas, conseguiu reunir, muitas vezes correndo riscos e sacrificando a própria vida”.
 
Em um acampamento, a coisa piora: “Em outros lugares foram os mosquitos; aqui são as formigas, e muitas; num minuto havia milhares delas espalhadas por todo lugar. Como não sabíamos qual inimigo do sono escolher, resolvemos nos proteger de ambos: fomos dormir nas canoas – a tripulação se cobriu bem, e nós ficamos debaixo dos toldos cobertos com mosquiteiros. Assim, pudemos desfrutar uma noite fresca e agradável”.  
 
Pelo sangradouro ‘Garandá-mirim’, a expedição passa para o rio Cuiabá. “A mulher de um dos escravos me procurou queixando-se de dores; desembarcou com muita dificuldade e, depois de algumas horas, deu à luz uma criancinha de 7 a 8 meses de gestação”. A criança morre um dia depois. 
 
No dia 29 de janeiro, “pouco antes do anoitecer, vimos, de longe, uma canoa descendo o rio. Nosso guia disse na mesma hora, antes de ver a pessoa ou a canoa: ‘Pela maneira de remar, só pode ser o remador Candelária, o proeiro do Sr. Riedel’. Efetivamente, poucos minutos depois, estávamos dando as boas-vindas a Riedel e Taunay, depois de quase dois meses de separação”.
Além das notícias, trazem também melões e melancias.
 
Notícias para Langsdorff
Riedel entrega a Langsdorff um pacote com as correspondências e, depois de meia hora, volta pra Cuiabá com Candelária e Taunay. 
Dentre as notícias: “Uma notícia inesperada foi a morte da Imperatriz viúva Elizabeth. Que ela descanse em paz! Tomei conhecimento das medidas acertadas do Imperador Nicolau, da morte de meu estimado e leal amigo Molvo e da minha cunhada Dorothea, e da venda de minhas terras na Mandioca. Não recomendo a ninguém ter propriedades numa terra sem leis”.
 
Assim, em pleno sertão, Langsdorff recebe as notícias da morte de seu amigo e agente financeiro Molvo e da compra da Fazenda da Mandioca pelo Governo. É o fim de uma era. O dia, 29 de janeiro de 1827.
No dia seguinte, Florence se mostra aliviado ao anotar: “Aproamos ao troar das salvas de mosquetaria que partiam de entre os nossos e eram correspondidas por terra. (…) Afinal, a 30 de janeiro de 1827, após sete meses e meio de viagem e vencidas 530 léguas e 114 cachoeiras, atingiu a comissão científica o suspirado porto de Cuiabá”. 
 
 
Chegada da Expedição a Cuiabá. Desenho de Florence.
 
 
 
 
Vista Geral de Cuiabá. Desenhos de Florence.
 
 
Expedição Langsdorff – Parte 6 
Próxima edição de abril – Os conflitos internos dos viajantes, diluídos nos grandes espaços dos campos e rios percorridos, serão postos à prova na convivência de quase um ano em Cuiabá.