Série Expedição Américo Vespúcio 10 anos

Lendas do Velho Chico – Xxv

21 de março de 2014

Volta a Ítaca

“Virtualmente viajou na barca PIPES o pescador Lico Paiva, de nome Clodomir de Paiva Cardoso, que viveu cerca de 90 anos, iguatamense que jamais saiu da sua terra natal”. 

 

 
Dali avisto o rio estreito curvo e recurvo na neblina que me envolve enquanto desço e recordo. Não ouço o murmúrio das águas, estão mudas, o rio está com sede, a meio barranco. Galhos e raízes despontam no leito. Continuo a caminhada na trilha ouvindo o canto dos anus e pássaros pretos em bando até a Ponte de Ferro; atravesso segurando pela passarela de tábuas podres e sigo até a ponte nova. Um socó alça vôo rente às águas. Nuvens de borboletas esvoaçam de poças; quero-queros tentam bicar meus cabelos. Daí chego à descida da Barca. Foi aqui que a barca PIPES foi a pique, e também em Pompeu. Retorno pela Ponte da Carranca, cuja escultura gira sobre si mesma nas madrugadas, em busca do rio, é o que dizem.
2001, novembro. Daqui partimos, para cá volto doze anos depois. Aqui encerro a série a que denominei lendas, nada mais que crônicas franciscanas soando quase metáforas desse rio de nome forte, de santo e agora de papa. 
A temerária expedição a la Fitzcarraldo, desceu do alto rio de ponta a ponta, seguindo aqui e ali os passos de naturalistas que o cruzaram e recruzaram, como St. Hilaire, Pohl, Peter Lund, Spix e Martius e tantos outros. Mais abaixo as remadas de Burton em “Viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico”, e de Halfeld que o mediu légua a légua de Pirapora ao oceano. Mais recentemente o bispo dom Luiz Cappio desceu seu curso em uma cruzada pela revitalização. Viajantes e turistas relatam o caminho em peregrinação. Veja em www.caminhodosaofrancisco.com.br.
Certamente desde então alguma coisa mudou, tanto o rio como eu, a julgar pelo aforismo de Heráclito: não atravessamos duas vezes o mesmo rio, uma vez que ele e eu já não somos os mesmos. Tanto o rio como eu mudamos, para melhor ou para pior, e a história dos homens e a história natural são implacáveis no julgamento:
“O Velho Chico agoniza;
“Comi peixe e aspargos regados a vinho do São Francisco;
“Não, ele apenas desmaiou, com as sangrias nas suas nascentes e nas dos afluentes;
“O São Francisco jorra leite e mel, é uma cornucópia de riquezas;
“Perde mais sangue do que ganha com as barragens em escadas;
“Vou fazer meu rancho às margens do São Francisco;
“Carvão é aço, queremos carvão;
“Como o Nilo, é uma dádiva dos deuses;
“O último palmo para o boi indiano, a cana e o capim africano;
“Só faltam as pirâmides e os faraós;
“Rio temporário, afluentes efêmeros.
Belos Cerrados! Lindas Caatingas!! Matas Atlânticas!!!
Lagoas-berçários e peixes! Jacarés e jabutis!! Lobos e tatus!!!  
Cavernas! Veredas!! Carnaubais!!!
Borboletas… Papagaios… Pássaros mil…
Pescadores… navios-gaiolas… carrancas… 
Lendas… Ora, lendas…
 
Virtualmente viajou na barca PIPES o pescador Lico Paiva, de nome Clodomir de Paiva Cardoso, que viveu cerca de noventa anos, iguatamense que jamais saiu da sua terra natal. Lembro-me bem dele, sempre turrão e apressado, a resposta pronta afiada e mordaz. Havia que ter um homem do rio a bordo lançando a sua semente, gente da sua têmpera e à do empresário Pedro Iran Pereira do Espírito Santo, dito PIPES, da maranhense Carolina, de onde partiu a barca, ora nas águas do rio, ora no dorso de uma carreta. Para os pescadores e barqueiros tostados pelo sol, os eternos guardiões do rio, seguem esses versos, em O Velho Pescador:
E os peixes
Por onde andam (nadam) os peixes
Nos 500 anos do São Francisco
A que todos chamam Chico, o Velho?
Não vejo mais Lico Paiva
O velho pescador barbudo a passar
De calças rotas “pega frango”
Nos seus passos largos
Os peixes enganchados
Seguros pelas mãos quase arrastando
(certa vez todos viram um tão grande
Que parecia o da Emulsão de Scott).
Estará ele remando à voga
De pé na popa da canoa
A passar debaixo da Ponte da Carranca?
Onde foram parar os peixes?
Onde está o Velho Pescador?
O Velho Pescador naufragou
Virou lenda nas profundezas do rio.
 
Meus netos, os pequenos Lucca e Cecília, já quase dormiam quando terminei de lhes contar a longa história. Mas dormiam com um olho só, e eles perguntaram em coro: “Vovô, e o barquinho onde está?” 
– “Boa pergunta”, respondi, “o barquinho PIPES voltou para Carolina, dentro da carreta, serpenteando…”