Expedição Langsdorff - PARTE 6

aventuras mato-grossenses

22 de abril de 2014

Permanência em Cuiabá e o pedido de demissão de Taunay

"O  temperamento introspectivo de Taunay e sua educação liberal em uma família de artistas desagradam Langsdorff, que o considera “indolente”.  O interesse musical de Taunay, que encontra em Cuiabá 84 peças de padre José Maurício e transcreve as partituras, o tempo gasto em pintar um retrato de Pedro I e 
doá-lo à Província em retribuição à acolhida e as brincadeiras com os filhos do Governador Provincial irritam Langsdorff, que considera estas “outras atividades” como desperdício de tempo."
 
 
Vistas panorâmicas de Cuiabá. Desenhos de Florence em 1827.
 
 
As salvas de tiros de duas canoas assinalam a chegada da expedição em Cuiabá. O cônsul anota: “Chegamos lá por volta das 9 horas e desembarcamos, cercados por uma multidão de curiosos que vieram ao nosso encontro. 
O Inspetor do Porto nos recebeu na Intendência da Coroa. Logo depois chegaram os Srs. Riedel e Taunay, os dois filhos do Presidente José Saturnino da Costa Pereira e um oficial, Sr. Navarro Cadete, filho do homem mais rico da Província, que me deu as boas-vindas como ajudante-de-ordem em nome do presidente. Ele também nos enviou cavalos para nos levar ao palácio, onde fomos recebidos da forma mais amigável possível, maravilhosamente bem servidos e hospedados”. 
Cuiabá: o casario e os costumes, segundo Florence
 
Florence descreve a cidade, o casario e os costumes de sua população de seis mil habitantes: “Não há uma só casa que tenha chaminé; a cozinha faz-se no jardim debaixo de um telheiro. (…) Quando chove, as crianças entretêm-se em procurar ouro no meio das ruas, porque nos regos d’água que se formam descobrem sempre algumas palhetas. (…) Os casamentos ainda são pouco freqüentes. Geralmente só se casam os homens já maduros que buscam uma companheira para os tempos de velhice. Os mais vivem amancebados e nem se limitam a isso, entretendo intrigas amorosas com pessoas casadas e solteiras. (…) A fidelidade conjugal é, muitas vezes, falseada. Apesar de temerem os maridos e considerá-los como amo e senhor, sabem perfeitamente enganá-los. (…) As moças filhas de pais pobres nem sequer pensam em casamento. Não lhes passa pela cabeça a possibilidade de arranjarem marido sem o engodo do dote e, como ignoram os meios de uma mulher poder viver do trabalho honesto e perseverante, são facilmente arrastadas à vida licenciosa, na qual, justiça se lhes faça, apesar de pertencerem a todos, nunca mostram a ganância e a baixeza das mulheres públicas da Europa”.
 
Expedição em Cuibá, desenho de florence
 
 
 
Langsdorff: sonho de aposentadoria
Em carta a um amigo, Langsdorff declara seu sonho de aposentadoria: “No Rio de Janeiro eu gostaria de encontrar, nos anos que me restam, uma ocupação permanente para deixar esta vida de cigano e viver e morrer em paz”. 
O ano de 1827 é dedicado à exploração da região. No final de abril, Langsdorff excursiona até a serra da Chapada, conhecida hoje como Chapada dos Guimarães, na companhia de Rubtsov, Riedel e Florence. “Taunay, que era sempre o último em tudo, veio desculpar-se e pedir permissão para ficar ainda oito dias na cidade, pois queria terminar o retrato do Imperador do Brasil, D. Pedro I. Ele começou esse trabalho há três meses, e agora veio alegar que não tivera tempo de acabá-lo”. 
Taunay tinha lá suas razões! Langsdorff reencontra as teimosas mulas em suas excursões por terra e desabafa: “Os viajantes europeus que ficam impacientes por ter que esperar três horas nos correios deveriam vir para cá e fazer uma viagem como esta. Certamente aprenderiam a ser mais pacientes e ainda ficariam felizes por poder partir após 2 ou 3 dias de espera”.
O temperamento introspectivo de Taunay e sua educação liberal em uma família de artistas desagradam Langsdorff, que o considera “indolente”.  O interesse musical de Taunay, que encontra em Cuiabá 84 peças de padre José Maurício e transcreve as partituras, o tempo gasto em pintar um retrato de Pedro I e doá-lo à Província em retribuição à acolhida e as brincadeiras com os filhos do Governador Provincial irritam Langsdorff, que considera estas “outras atividades” como desperdício de tempo. Taunay vai ao encontro do grupo na Chapada e Langsdorff reclama: “Os Srs. Riedel e Florence acompanharam o Sr. Taunay, que, há três dias, achou por bem vir para cá, desobedecendo minhas ordens de ir para Buriti. Mandei que ele viesse falar comigo. Ele se sentiu muito ofendido e me mandou uma carta de demissão, que vou conceder com o maior prazer. (…) Como conheço os artistas, aceitei o Sr. Florence, às suas próprias expensas, um jovem muito mais solícito, que, espero, será de grande utilidade para mim daqui por diante”.
 
O rio Pary nas proximidades de Cuiabá. Ilustração de Taunay.
 
 
 
Taunay: pedido de demissão
Como direito de defesa, eis a transcrição da carta em que Taunay solicita sua demissão: “O senhor pensou fazer um grande ato de autoridade obrigando-me a segui-lo e deixando o Sr. Florence na Chapada para me provar que, com efeito, lhe caberá decidir se os dois pintores devem ir juntos e sem ver que esse artigo de sua carta é ditado por um sentimento de acrimônia especial e contradiz aquele onde o senhor fala que as minhas paisagens têm um caráter mais artístico do que as do Sr. Florence, pois se há um lugar onde a representação da natureza exige o pincel de um artista hábil, este lugar é a Chapada; eu sabia disso antes de ir até lá e é por esta razão que eu desejava ficar. Lamento vivamente ser obrigado, devido às circunstâncias, a não acabar a viagem que comecei e a deixar incompletos trabalhos interessantes; o que me consola é que mais tarde, poderei mostrar à S.M [o Czar] que eu era indigno do posto que ocupava, e tenho entre as mãos o necessário para responder a todas as questões sobre as quais o senhor poderá me acusar. (…) queira, portanto, aceitar minha demissão de empregado como pintor da Expedição da qual o senhor é chefe; quando o senhor voltar a Cuiabá, terei a honra de entregar-lhe os pincéis e tintas pertencentes à Expedição, bem como os esboços que me restam e que não posso acabar, tendo em vista a determinação que os seus procedimentos mal calculados me obrigam a tomar”. 
Ao entregar os 42 desenhos, Taunay externa a incômoda pressão científica sobre sua veia artística: “(…) os desenhos que poderão ser olhados verdadeiramente como trabalho da Expedição e resultado da viagem serão aqueles que, à nossa volta, eu mesmo levarei, após ter tido tempo de reunir e colocar em ordem uma grande quantidade de materiais dispersos que os embaraços de mudanças contínuas e, sobretudo a necessidade de recolher esses materiais, não permitem tornar a por em execução”. 
Provavelmente o cônsul, ao ver as maravilhosas ilustrações feitas por Taunay na Chapada, tenha vacilado em conceder a demissão solicitada. Mineiramente, encontra um jeito de contornar a situação. Divide a expedição em dois grupos e deixa para o conciliador Riedel o encargo de administrar o espírito livre do pintor. Durante o período em que se acredita demissionário, Taunay passa o tempo e gasta os rublos da expedição em copiar os retratos dos vice-reis existentes no palácio do governo. Em carta de Cuiabá para Álvares Machado, Taunay segreda: “(…) como resultado dos eventos acontecidos, fiquei por muito tempo em maus termos com Langsdorff”. Sugere que a divisão da expedição em dois grupos vai “me libertar de suas insistências e permitir um distanciamento para arrefecer certo sentimento difícil que, apesar de todos os compromissos, não pode deixar de existir entre mim e Langsdorff”.
 
 
Original da carta de demissão de Taunay. Última folha. 1827.
 
Os caricatos condes: de cima para baixo, da Cunha, de Azambuja e de Bobadela. Por Taunay, em 1827.
 
 
 
Música: Wilhelmine e Taunay têm a mesma paixão 
Langsdorff não se refere mais à sua Minnchen, e o ‘sentimento de acrimônia especial’ deixa a entender divergências além de profissionais ou filosóficas: a disputa por Wilhelmine. Wilhelmine era filha de um major, tio de Langsdorff. Sempre vivera em meio à severidade militar e, é claro que a companhia do pintor, muito bonito e na exuberância de seus vinte e poucos anos, é agradável e um lenitivo à do estressado barão, já bem passado dos cinquenta. Wilhelmine e Taunay têm aproximadamente a mesma idade, a mesma paixão pela música e ela está fragilizada pelos acontecimentos. 
Os ingredientes para um envolvimento emocional estão à solta. Não há outra referência ao assunto, a não ser o depoimento de Taunay. Por carta, ele segreda a Álvares Machado que continua a pertencer à Comissão Científica Russa graças somente a Riedel, “que em circunstâncias difíceis, ficou a meu lado como um amigo dedicado e carinhoso. (…) Ele foi o único que apoiou os meus passos trôpegos na borda de um precipício muito mais perigoso em que eu, consciente de sua profundidade horrível, tentei mergulhar, possuído por um espírito de vertigem que só a sua voz amiga atenuou”. Conclui e faz questão de dizer que um dia quer relatar o caso ‘bocalmente’: “A Guilhermina não está mais conosco, e esse passo ainda o devo a Riedel, que assim cortou a raiz do mal e desfez o feitiço. Grandes asneiras fiz eu, que toda a vida hei de chorar; mas, o quê não pode a paixão! Se algum dia nos encontrarmos, digo melhor, quando nos encontrarmos, que acabando essa viagem faço tenção de lhe ir visitar nesse Engenho, ermida de um filósofo de que me falais, hei de desenvolver bocalmente o encadeamento desses acontecimentos de que nem me quero lembrar por ora, por serem muito próximos ainda”. Quais as providências tomadas por Riedel, não se sabe. Há discrição geral sobre o assunto. Quase dois séculos depois, é agradável pensar que, naqueles meses passados em Cuiabá, num ambiente leve e informal inédito para ela em companhia do sensível Taunay e dos jovens e alegres filhos do Presidente da Província, Wilhelmine tenha experimentado um pouco de felicidade. As circunstâncias futuras negariam a ambos outra chance. 
É possível que Langsdorff passe a acalentar a idéia da divisão da expedição em dois grupos como forma de manter o pintor genial e, ao mesmo tempo, se livrar do rapaz inconveniente. 
 
 
Vista das rochas da Chapada. ilustração de Florence.
 
 
 
Paisagem deslumbrante da Chapada
A paisagem deslumbrante da Chapada arrebata os artistas e Florence tenta descrevê-la: “(…)  ao longe, coroando verdejante eminência também à direita, erguem-se rochas de formas extraordinárias e mais longe ainda maciços azulados enchem o horizonte, como se fora o velame de numerosa esquadra. (…) Aproximando-nos dessa eminência, vimos pouco a pouco surgirem sete enormes penedos de 50 pés de altura, isolados e esparsos na colina e na planície, mais estreitos em baixo do que em cima e saindo, não se sabe por que força da natureza, de um terreno falto de pedras e coberto de verdura, como se houvessem caído do céu e, pela violência da queda, fincado a base pela terra adentro. (…) O que, porém, obriga mais a atenção é ainda um grande fragmento isolado de muralha, atravessado na estrada e aberto como se fora um pórtico, tendo acima um furo circular, um pouco à direita, figurando uma janela. (…) O caminho plano serpeia por entre essas majestosas massas que para nós se destacavam num céu tocado das suaves cores do crepúsculo. (…) Nos montes e na planície, por toda a parte, avistam-se grupos de pedras que, com os contrafortes, semelham os restos de uma cidade imensa, em que durante séculos imperara a mais nobre arquitetura. Fica a gente pasma ao achar-se de repente no meio de uma natureza que fala linguagem desconhecida até então, pois onde só há rochas julga-se ver os destroços de soberbos monumentos levantados por uma raça de arquitetos gigantes”.
Inebriado pelo que vê, Florence percorre a região com seus apetrechos de desenhos: “Por todos os lados não se enxergam senão túmulos, pedestais, colunas partidas, escadarias, anfiteatros e urnas”. 
No dia cinco de maio, Langsdorff é lacônico ao anotar a chegada de Giuseppe Angelini, comerciante italiano que conhecera em Cuiabá, na Vila da Chapada. Angelini partiria para o Rio de Janeiro com uma tropa de quase uma centena de animais, a caminho de seus empreendimentos na Europa. A particularidade é que, além de “se encarregar de nossas coleções, leva boa porção de caixotes cheios de objetos de história natural, diversos relatórios e manuscritos, cartas nossas para o Rio e a Europa, e um maço de desenhos do Sr. Taunay e meus (Florence), tudo endereçado ao vice-cônsul da Rússia, que deve dar destino às cartas e fazer chegar as demais a São Petersburgo”, uma passageira ilustre acompanhará a caravana. Langsdorff se mostra distante e indiferente na partida da caravana no dia 14 de maio: “Aproximadamente às 10h30, partiram o Sr. Angelini e D. Guilhermina, e mais os 54 animais, sem contar as 10 mulas que foram mandadas na frente com o carregamento de milho”.
 
Heinrich von Langsdorff, um apaixonado pelas imagens
A intimidade do tratamento cede lugar à formalidade. De Minnchen, tratamento alemão carinhoso que demonstra confiança e estima, Langsdorff se refere a ela como ‘D. Guilhermina’. Wilhelmine apresenta uma gravidez de aproximadamente cinco meses. 
No dia 26 de agosto de 1827, ela dá à luz um menino, Heinrich, no Rio de Janeiro. Para felicidade geral e manutenção do bem estar, os exames de DNA para reconhecimento de paternidade ainda levariam século e meio para serem descobertos. Coincidência ou não, ironicamente Heinrich von Langsdorff (1827-1897) viria a ser um apaixonado pelas imagens e se tornaria fotógrafo profissional. 
 
 
Vista de rochas da Chapada. ilustrações de Taunay.
 
 
Vistas de rochas da Chapada. ilustrações de Florence.
 
 
 
Diário de Florence, com os esboços das formações rochosas.
 
 
 
 
Próxima edição (maio):  PARTE 7 da Expedição Langsdorff – a Chapada dos Guimarães inspira Taunay em suas ilustrações da região.