Langsdorff percorre o Mato Grosso, pensa em viajar para o Pará e faz amplo relatório para a Academia de Ciências de São Petersburgo. Já Taunay deixa suas impressões sobre a Chapada que inspira algumas de suas mais lindas pinturas de paisagens.
ALPINISMO NÃO É ATIVIDADE PRA MARINHEIRO
Numa excursão ao morro de São Jerônimo “a fim de executar o que poucos têm empreendido”, Florence dedura seu colega de infortúnio: “O Sr. Rubtsov, apesar de ser oficial da marinha russa, não se atreveu a subir o São Jerônimo: ou por prudência ou por querer com mais vagar aproveitar o tempo, declarou que enquanto subíssemos, ficaria a fazer observações astronômicas”. Para provar que alpinismo não é atividade para marinheiro, Florence não demora a se juntar a Rubtsov: “Chegados ao fim desse primeiro trecho, deparou-se-nos uma grande fenda que separa um enorme bloco do flanco do São Jerônimo. Daí a vista mergulha a prumo até embaixo. Então apresentam-se à direita rochas que têm de ser galgadas, umas após as outras. Para meus companheiros foi um instante; quanto a mim, mal me abracei com pés e mãos a um desses rochedos, vertigens seguidas me puseram a cabeça ourada. Debalde tentei dois ou três arrancos; todos os mais passaram e sumiram-se; eu, ali fiquei, contristado de minha derrota”.
No retorno da excursão, os comentários dos aventureiros deixam claro para quem sempre sobra a pior parte: “No último trecho, achando-o por demais perigoso, mandaram adiante o Gavião, escravo do Sr. Langsdorff, para amarrar uma corda, por meio da qual içaram-se até o cume”.
Langsdorff registra: “Mas o mais curioso são as petrificações de moluscos em rochas ferríferas, mais de 2.000 pés acima de Cuiabá”.
Vila de Guimarães, Fazenda do Buriti e dona Antônia
No caminho para a vila de Guimarães, Florence descreve a visita à Fazenda do Buriti, “pertencente a uma velha chamada D. Antônia, a qual chegou ao mesmo tempo em que nós, vinda de Cuiabá. Viajava de um modo novo para nós, carregada por dois negros numa rede suspensa a uma grossa taquara de guaitivoca. De muda, iam outros dois negros aos lados. Acocorada nessa rede e a fumar num cumprido cachimbo, vinha ela seguida de negras e mulatas, todas vestidas limpamente e carregando à cabeça cestos, trouxas e roupas, vasilhas de barro e outros objetos comprados há pouco. O administrador, que era irmão dela, e o feitor adiantaram-se ao seu encontro, e os negros e negras que ficaram em casa se chegaram para dar o louvado. ’Dar o louvado’ é por as mãos juntas e pronunciar as seguintes palavras: ‘Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo’, ao que responde o senhor: ‘Para sempre seja louvado’, ou simplesmente ‘para sempre’. É o bom-dia do escravo para o amo, do filho para o pai, do afilhado para o padrinho, do aprendiz para o mestre. Os pretos, que estropiam todos os vocábulos portugueses, fizeram dessa frase uma corruptela que exprimem por esta bárbara palavra ‘vasucruz’. Em São Paulo e Cuiabá dá-se o louvado, no Rio de Janeiro, pede-se a bênção por esse modo: ‘A bênção?’”.
Langsdorff encontra um jovem índio da vila de Barcelos, no rio Amazonas, de nome Gabriel. “Não foi preciso muito esforço para convencê-lo a partir comigo e regressar à sua terra natal. (…) Ele é forte e jovem, prestativo, comportado, exímio caçador e flecheiro, fala português e diz falar também a língua geral dos índios”. É incorporado com alegria à expedição.
Taunay: inspiração e ilustrações na Chapada
Dona Antônia transportada em rede. Fazenda do Buriti.
Por Florence.
Na Chapada, as paisagens inspiram algumas das mais lindas ilustrações de Taunay. A originalidade de Taunay se manifesta na inclusão de fragmentos da história local em suas pinturas de paisagens. As lavadeiras, a pequena fogueira, a técnica de bater a roupa e a mulher com seu longo cigarro estão presentes na ilustração do rio Quilombo.
Uma linda ilustração de Adrien Taunay, na paisagem do rio Quilombo, distrito da Chapada. Taunay. mostra lavadeiras, a pequena fogueira e a técnica de bater roupa
A Fazenda do Buriti, de Dona Antônia, em desenho de Florence.
▶ Ao ilustrar as palmeiras buritis, os índios Guanás aparecem em primeiro plano.
“Palmeiras denominadas Buriti, desenhadas em Quilombo, distrito da Chapada. (Essa espécie prefere lugares úmidos, cresce em bosques e também nos campos. (…) No primeiro plano vemos três índios Guanás com suas provisões de viagem. Eles são encontrados, freqüentemente pelo caminho das fazendas e engenhos, onde vão oferecer seus serviços. Junho, 1827.”
Adrien Taunay.
Planta de Cuiabá, por Néster Rubtsov.
“O tempo nublado impede ver os objetos à medida que eles se afastam. Palmeiras denominadas ‘pindovas’, uma vista de frente, outras de lado. Esse desenho representa também uma capoeira – floresta devassada pelo fogo e por árvores abatidas. Distrito da Chapada, 1827”. Adrien Taunay.
Langsdorff retorna a Cuiabá, já pensa em ir ao Pará e faz relatório para a Academia de Ciências de São Petersbusgo
No dia 27 de maio, Langsdorff está de volta a Cuiabá, “para aproveitar a vinda do Presidente da Província do Mato Grosso para pedir as providências necessárias para a viagem ao Pará. Ao mesmo tempo, vamos aguardar o correio que vai chegar por esses dias, do Rio de Janeiro, e regressará no dia 6; e vamos fazer algumas compras”. Antes de continuar as excursões pela região de Cuiabá, o cônsul envia seu relatório para a Academia de Ciências de São Petersburgo e inclui “com a correspondência que saiu para o Rio de Janeiro em 6 de julho, mandei também um requerimento ao Desembargo do Paço pedindo um ‘brevet de découverte’ para a cainca”.
Relatório para São Petersburgo
Relatório original do Sr. von Langsdorff à Conferência da Imperial Academia de Ciências de São Petersburgo. Cuiabá, capital da província de Mato Grosso, 2 de abril de 1827. “Em meu último relatório anunciei o envio de material zoológico e a descoberta da raiz Chiococca (cainca), como quasi specificum no tratamento dos hidrópicos e das enfermidades do sistema linfático. Desde então tive a agradável satisfação de fazer repetidos experimentos sobre o efeito extraordinário dessa raiz medicinal …”.
Cenas do quotidiano em Cuiabá.
Ilustrações de Florence.
Langsdorff, o médico, diagnostica
doença e recebe a gratidão
Langsdorff visita as nascentes do rio Cuiabá: “Depois de assistir a D. Senhorinha e sua escrava que deram à luz crianças natimortas, e depois de ver duas mulheres e dois bebês serem enterrados numa mesma casa no espaço de dois dias, achei que precisava de descanso e saí para fazer, então, a excursão”. Vê nas margens do rio muitas plantações de melancia, “os habitantes chegam a levar nas canoas, de 40 a 80 dúzias dessas frutas para vender na cidade e conseguem lucrar bastante com isso”.
Diagnostica a cor amarelada e aparência pouco saudável dos habitantes como consequência do uso da água de um lago pantanoso.
A gratidão dos habitantes deixa o cônsul comovido: “À minha revelia, levaram muitos alimentos para os barcos, e mesmo não dispondo de muitos escravos, cederam-me o seu melhor barqueiro para que eu pudesse subir o rio com mais conforto”.
Registra satisfeito a caça de um sinimbu.
Com a carga de 60 dúzias de melancias enviadas para Cuiabá, aproveita e encaminha “uma caixa grande com os espécimes de História Natural que coletei durante minha estada aqui”.
Os moradores o recebem em suas casas e o cônsul se impressiona: “Em uma delas, o pai foi casado duas vezes; teve 6 filhos com a primeira mulher e 22 com a segunda, sendo que, desses 22 morreram 15, e dos primeiros 6 filhos, morreram 3 (acredito que por causa da miséria). Quase todos os 10 filhos estão casados, de forma que o pátio mais parecia um formigueiro de netos, aparentados e colonos de todas as cores”.
Entretém-se agradavelmente com a caça e com a pesca. Consegue uma ariranha.
Toma conhecimento durante a excursão “que o correio do Rio de Janeiro chegou no dia 22 deste mês; (…) que, na cidade de Cuiabá, o acontecimento mais importante e interessante foi a chegada de uma tropa do Rio ou de São Paulo; e que o coronel Velasco, um espanhol que há muito eu esperava” pois traria um reforço monetário. Abrevia então excursão e regressa novamente para Cuiabá.
“Um moço alto, esbelto e robusto; fisionomia máscula, mas feroz. Dois cúbitos de socó (Ardea) passam pela cartilagem que separa as narinas: outro, de 8 polegadas de comprido, é metido num buraco que existe sob o lábio inferior e pende-lhe até o peito. Esse osso é retido dentro da boca por uma maça ou bola que o termina para impedi-lo de cair. Uma bela coroa de dentes e unhas de animais selváticos orna-lhe a testa, e diversos crescentes nacarados servem-lhe de brincos. Os espessos e longos cabelos aumentados de um punhado de crinas de cavalo cobrem-lhe os ombros e descem até os rins. A cara, peito e cabelos estão pintados de vermelho por meio do urucum. Faltam sobrancelhas que ele arrancara; igualmente a barba: quanto a esta, não sei se pelo mesmo motivo”.
Ilustração de Florence.
O sinimbu, lagarto da família
das iguanas. Ilustração de Taunay.
Samambaia e guaitivoca no caminho de Cocais. (Florence)
Um desviozinho de 300 km
Em agosto, enquanto o cônsul se ocupa com os relatórios e preparativos para levantar acampamento e prosseguir com a Expedição, Rubtsov e Florence excursionam à Vila de São Pedro d’El Rey (Poconé), Vila Maria (atual Cáceres) e Jacobina. Para uma viagem dessas dimensões, um desviozinho de 300 quilômetros é coisa à toa. Atravessam o rio Cuiabá e passam por Cocais.
A fazenda de Jacobina, “a mais rica fazenda da Província”, deixa Florence impressionado: “Mais de cem pessoas entre escravos e gente forra, na maior parte do sexo feminino, aí se achavam em movimento, e cada qual ocupado com sua tarefa. O vigário apresentou-nos ao chefe dessa grande oficina, que dirigia tudo, tudo vigiava, obras, engenhos, plantações, gado, escravos, agregados, enfim a fazenda inteira, sem esquecer o tenente-coronel e sua família. Esse chefe, atlético no corpo e no espírito, era a sogra do tenente-coronel e irmã do nosso vigário, matrona de cinco pés e oito polegadas e de corpo proporcionado à altura. Sua cara de queixo tríplice parecia confundir-se com o largo pescoço, cercado de muitas voltas de colares de contas grossas de ouro. Sua voz de extentor dominava quase incessantemente todos os ruídos, não direi o vozear dos que trabalhavam, pois todos estavam em silêncio e falavam baixinho, mas o estrondo das máquinas, da água que as movia, das grandes caldeiras onde fervia a ‘garapa’, etc. (…) Sua fisionomia, seu olhar e boca exprimiam simultaneamente a energia, a franqueza e a bondade. Todos os escravos a estimavam tanto quanto a temiam, (…) principalmente pelos cuidados com que tratava os enfermos e pelos socorros que com pródiga mão distribuía aos necessitados”.
SOGRA DOS SONHOS
Desde que não se despertasse seu furor, era a sogra dos sonhos: “’Não quero que meu genro se ocupe da lavoura’, disse-nos dona Ana, ‘isto é bom pra mim que nasci no meio dos trabalhos do campo’. E, com efeito, João Pereira Leite, cujo porte baixo e ar fanadinho, apesar de ser assaz robusto, contrastavam com os de sua sogra tão devotada à sua felicidade, não pensava senão em fazer figura e viver à fidalga de suas rendas”.
No dia 4 de setembro, Florence descreve a visita de 15 índios Bororos que “vermelhavam de urucum” o pátio da fazenda. Dona Ana recebe seus “agrestes hóspedes” na enorme cozinha, os alimenta e distribui um pouco de aguardente. Em retribuição, permitem que Florence os retrate e executam suas danças e jogos.
Florence comenta que as mulheres índias se acostumam facilmente à vida de uma fazenda, “porque em sua tribo são escravas e infelizes”. Abastecidos regiamente por dona Ana, a pequena caravana segue caminho. O ‘desviozinho’ de Florence e Rubtsov dura três meses.
“Moço de alto porte, robusto, mas não tão bem feito como o primeiro. Traz em lugar de coroa um adereço de penas amarelas e vermelhas e, por trás deste uma auréola formada de três fieiras de penas em arcos concêntricos, dispostas a moda de raios. (…) Tem como todos os Bororos o membro oculto dentro de um cartuchinho de folha de palmeira e preso pela pele do prepúcio a uma embira que passa pela cintura e, ornada de pedaços de cúbitos de pássaros; mulher carregando, além de uma criança a cavalo sobre os ombros, um cesto suspenso às costas por uma corda de embira que passa pela testa. Esses fardos a obrigam a curvar a cabeça e o corpo, e não lhe permitem levantar uma fronte altiva como os injustos homens de sua horda. (…) O largo cinto de casca e os fios que caem sobre as partes naturais são informes objetos que às mulheres bororos parecem indispensáveis, pois todas a trazem. A criança tinha já os traços ferozes de sua gente”.
Desenho de Florence.
Dança dos Bororos em Jacobina. “Enquanto os bororos a executavam, dois deles, dentro do círculo, representavam o jogo do tamanduá. Um põe-se de quatro pés com uma criança agarrada às costas: é a fêmea do tamanduá-bandeira e seu filhote. Outro vem incitá-lo, pondo-lhe a ponta de um pau no nariz. Imitando com muita fidelidade os movimentos letárgicos do animal, o que se faz de tamanduá levanta vagarosamente a cara e uma das mãos, com os dedos curvos como que querendo agarrar o pau:
quando se adianta, o outro recua”.
Desenhos de Florence.
“Homem de 40 anos; porte elevado, figura risonha embora selvática. (…) Enorme trunfa de cabelos formando um cone de pé sobre a cabeça. (…) É sexdigitário do pé esquerdo”.
Desenho de Florence.
Expedição LANGSDORFF – PARTE 8: Na próxima edição, a dupla franco-russareencontra o rio Paraguai,
Florence revê com alegria os
índios Guatós e visita o marco do
Tratado de Tordesilhas, nas proximidades de Cáceres.