SERRA DO CARAÇA
CARAÇA, berço de cultura e biodiversidade
25 de junho de 2014Serra do Caraça e Serra da Gandarela, arquipélago da vida.
"Hoje a grande Serra do Caraça é nitidamente uma ilha de vida em meio a muitos empreendimentos de mineração. Seu destino depende do destino da sua vizinha, uma outra ilha de vida: a Serra da Gandarela. Ambas precisam ser preservadas e conectadas. "
Fotos: Denilson Matias
A Serra do Caraça constitui, junto com a Serra da Gandarela, o complexo da Moeda e a Serra do Curral, uma espécie de núcleo meridional da Serra do Espinhaço, a grande cordilheira que segue por centenas de quilômetros desde o centro de Minas Gerais até o coração da Bahia. A denominação “Caraça” está relacionada com o formato de um trecho da serra, localizado entre os picos do Sol e do Inficcionado. Nessa região, vista de vários ângulos, a montanha ganha os contornos de uma grande cara humana, uma “caraça”. A “caraça” pode ser observada facilmente de pontos distantes – inclusive a partir das regiões mais altas de Nova Lima, e em especial do alto da Serra da Moeda.
O formato geral da Serra do Caraça é o de um imenso anfiteatro, cercado por montanhas e observado por grandes picos, como os da Trindade, da Conceição, da Canjerana, do Inficionado, do Sol e da Carapuça. Entre as montanhas, terrenos mais planos, recobertos por campos e matas, e drenados por um lado pelo rio Caraça e por outro pelo córrego do Capivari. Existem muitas corredeiras e cachoeiras, e todas as águas são de excelente qualidade.
No centro desse anfiteatro, as únicas edificações da região: o templo neogótico dedicado a Nossa Senhora Mãe dos Homens, e ao seu redor o Santuário do Caraça. O antigo mosteiro e colégio interno é hoje um movimentado centro de peregrinação religiosa e visitação turística.
Histórias de Portugal ao Caraça
Volto ao Caraça e volto também no tempo: 250 anos atrás, em meio ao ciclo do ouro, por volta de 1770. Naquela época, um personagem misterioso, integrante da Ordem Terceira de São Francisco, chegou à região e observou a serra. Ele tinha origem portuguesa e usava o nome de irmão Lourenço. Para muitos, tratava-se do nobre português Carlos Mendonça Távora, um dos implicados na tentativa de assassinato do rei Dom José I.
O Marquês de Pombal, poderoso primeiro-ministro no reinado de Dom José I, estava reagindo com violência extrema ao crime, inclusive por certamente ter vislumbrado naquele momento uma oportunidade de afastar adversários e consolidar o seu poder. Membros de importantes famílias portuguesas foram acusados de conspiração contra o rei e executados brutalmente em praça pública. Foi nessa época que Carlos Mendonça Távora teria fugido para o Brasil e chegado a Minas Gerais.
Fosse quem fosse, o Irmão Lourenço começou a tomar posse e a comprar terras na serra do Caraça, construindo também uma igreja e uma hospedaria para irmãos e peregrinos. Por fim, tudo ficou nas mãos da Congregação da Missão, fundada por São Vicente de Paulo. E durante muitos anos funcionou, nas instalações do Caraça, uma das mais prestigiosas escolas de Minas Gerais. Desde 1990, o Caraça é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural, com cerca de 11.500 hectares preservados.
Hoje a grande Serra do Caraça é nitidamente uma ilha de vida em meio a muitos empreendimentos de mineração. Seu destino depende do destino da sua vizinha, uma outra ilha de vida: a Serra da Gandarela. Ambas precisam ser preservadas e conectadas. Serra do Caraça e Serra da Gandarela, arquipélago da vida. Ainda há tempo.
▶ EM MEMÓRIA do padre José Tobias Zico, que dirigiu o Caraça e publicou vários livros sobre a história e a riqueza ambiental da região. E que todas as noites aguardava o lobo-guará no adro da igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens.
Coração de ouro, peito de ferro
As jazidas de ouro do Espinhaço meridional já eram conhecidas desde o final do século XVII, e elas foram o motor de todo um ciclo econômico da história do Brasil. Muito depois, já no século XIX, esse núcleo meridional da grande Serra do Espinhaço foi batizado como “Quadrilátero Ferrífero”, quando se percebeu que havia muito minério de ferro na região.
“Minas é um coração de ouro em peito de ferro”, disse o cientista francês Henri Gorceix, que a convite do imperador Dom Pedro II veio da França para criar a Escola de Minas de Ouro Preto.
Gorceix tem sua grandeza, a metáfora geológica faz sentido e carrega certo lirismo, mas para o nosso tempo – o século XXI – ela é ultrapassada e inadequada. Na verdade, a grande riqueza do Espinhaço Meridional é outra: são as águas nos rios e nos aquíferos, o clima, a biodiversidade, a paisagem única e também a civilização que floresceu nesse lugar especial, com suas histórias e sua cultura. Tudo isso pode ser inesgotavelmente aproveitado e conservado, para nós e para nossos descendentes.
“Mas e o ferro?”, alguém perguntará. O ferro tem a sua importância econômica, é evidente. Porém, estamos falando de um dos minerais mais abundantes e baratos de nosso planeta. Organizar o Espinhaço meridional ao redor da extração do ferro é um erro primário de nossas lideranças.
Tornando a questão um pouco mais complexa, lembro que a exploração do minério de ferro entra em confronto direto com a preservação de uma das grandes riquezas do Espinhaço: as suas águas.
Os lençóis d’água
A conformação geológica do Espinhaço meridional é altamente favorável ao acúmulo das águas no subsolo, o que leva à formação de riquíssimos lençóis d’água subterrâneos. Mas para deixar mais clara a importância desses lençóis é preciso falar da noção do “escoamento de base”.
O escoamento de base corresponde às águas que correm em um rio sem que esteja chovendo. Ou seja, são as águas que chegam ao rio a partir das nascentes situadas em cada pequeno córrego da bacia.
Calcula-se, por exemplo, que quase a metade do chamado “escoamento de base” do rio das Velhas, na região de Nova Lima, tenha origem nos arredores do Caraça, mais especificamente na Serra da Gandarela. E é no rio das Velhas, na captação de Bela Fama, em Nova Lima, que a COPASA busca a maior parte da água consumida em Belo Horizonte e região.
A mineração de ferro coloca em xeque toda essa riqueza, pois a remoção das camadas de minério leva à destruição dos lençóis freáticos ou, pelo menos, ao rebaixamento do seu nível de água. A consequência? A diminuição das vazões das nascentes e dos rios da região.
Então precisamos decretar que não vivemos mais ao redor do Quadrilátero Ferrífero: vivemos sim no Quadrilátero das Montanhas e das Águas.