Expedição Langsdorff - PARTE 8

O ‘desviozinho’ de Florence e Rubtsov

25 de junho de 2014

Florence revê o rio Paraguai, reencontra os Guatós e visita o marco do Tratado de Tordesilhas. Enquanto Langsdorff permanece em Cuiabá, escreve relatórios e prepara a etapa final da expedição. As difi

Florence 
visita o Marco do Tratado de Tordesilhas, em Cáceres
 
“Não a impelindo corrente alguma, a piroga obedece docilmente ao preguiçoso remo que a movimenta em direção ao lugarejo. Ao negror da noite, as árvores mais ou menos imersas transformam-se em grandes navios ancorados”.
Florence ao reencontrar o rio Paraguai
 

“Prospecto de Villa Maria do Paraguay” – atual Cáceres. Ilustração provável de José Joaquim Freire, durante a passagem da Expedição de Alexandre Rodrigues Pereira. Início da década de 1970.

 

 

 

Índios Guatós em duas canoas no rio Paraguai. “Tornei a ver esses índios com prazer com que, ao frescor de uma bela tarde, avistam-se amigos de antiga data. (…) Eram três homens, três mulheres e quatro crianças. A fisionomia não indicava selvageria como a dos Bororos”.  Desenho de Florence.

 

 

 

 

 

 

 “Homem alto de 35 anos. Seu arco e flechas têm um terço mais de comprimento do que ele, e, apesar de meus esforços, não pude chegar a distender a corda”.

Desenho de Florence.

 

 

 

 

 

 Crianças Bororos. A menina “já trazia a cinta de casca de paus e o’s filamentos. Era sexdigitária do pé esquerdo”.  
Desenho de Florence.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Duas mulheres com suas cargas: “A da esquerda parece ter 40 anos; mostra-se alegre e é um tanto cheia de corpo. Carrega às costas um fardo, que posto em terra, era da altura dela. Esse fardo compõe-se de esteiras, couros, peles enroladas, e jacás cheios de vários objetos, peso enorme para essas infelizes mulheres que são os animais de carga daqueles índios. Tudo aquilo é amarrado com embiras e suspenso por uma faixa mais larga que lhes passa pela cabeça, acima da testa, o que as obriga a abaixarem o pescoço e a fronte, e a curvarem o corpo para diante. Com tal carga, levam por cima uma criança escanchada nos ombros e um cãozinho. Ainda não é tudo, pois quando os maridos matam um porco do mato ou qualquer outra caça, metem-no num dos jacás que elas trazem às costas. Mais moça, de cinco pés de altura, robusta e bem feita é a segunda mulher. Tem também sua carga e criança. Em sua fisionomia tristonha e de olhos fixos no chão julga-se quase lobrigar a impressão secular de uma reação lenta transmitida de mães e filhas contra as injustiças dos homens”.  Desenho de Florence em 1827.
 
 
Marco do Tratado de Tordesilhas
O Tratado de Tordesilhas foi um acordo firmado entre Espanha e Portugal, na cidade espanhola de Tordesilhas.
 
 
Na manhã de 11 de setembro de 1827, a pirâmide é localizada: 
“(…) descobri-a afinal à direita da embocadura, por trás das árvores que a ocultam das vistas. Não é possível enxergar com indiferença um monumento qualquer de mármore branco e de arquitetura regular que de repente se nos depara no meio dessas vastas regiões, onde sem partilha reina a natureza. (…) 
 
▶ No lado oeste, estão gravadas as armas da Espanha, sob as quais se lê a inscrição: 
SVB
FERNANDO VI
REGE
CATHOLICO
 
▶ A Coroa está quebrada só restam os florões. No lado Leste, estão as armas de Portugal e esta inscrição:
SVB
IOANNE V
LVSITANORVM
REGE
FIDELISSIMO
 
▶ Falta de todo a coroa. Lê-se no lado Norte:
EX
PACTIS
FINIVM
CVNDORVM
CONVENTIS
MADRITI
IBID IANVAR
MDCCL
 
▶ Enfim, no quarto lado:
IVSTITIA
ET PAX
OSCVLATAE
SUNT.
 
(…) Dizem que uma metade foi feita em Lisboa e a outra em Cádiz. Contaram-me que não tendo sido aprovado pelo Gabinete de Lisboa o rumo da limitação, o tenente-coronel português desterrou-se para Buenos Aires e aí acabou seus dias feito mestre-escola. Como as duas peças não juntaram bem e, para facilidade de transporte da Espanha para Buenos Aires, e pelo Prata daquela cidade até o lugar marcado, não foram feitas maciças, há sempre no interstício colméias de abelhas. Na fenda introduzimos um facão e de pronto correu delicioso mel que encheu uma cabaça e misturado com farinha deu-nos ótimo regalo”.
 
 
A interpretação tendenciosa da localizaão da Linha de Marcação gera novos conflitos. A
descoberta de novas terras no início do século 16, na porção espanhola, deixa Portugal em desvantagem. 
A tensão diplomática entre as duas potências da época é atenuada em janeiro de 1750, quando foi assinado o Tratado de Madrid: as terras colonizadas por um dos países ibéricos a ele pertenceriam.
Assim, o prazo de validade do Tratado de Tordesilhas expirara.
 

Na manhã de 11 de setembro de 1827, a pirâmide-marco é localizado à direita da embocadura do rio Jauru. Daí o nome, Marco do Jauru,  em desenho de Florence acima. 
 
 
 
 
 
 
 
“Sem partilha, reina  natureza”
 
O Tratado de Tordesilhas, uma ode à arrogância humana, foi um acordo firmado em 1494 na cidade espanhola de Tordesilhas entre as duas superpotências mundiais da época e arbitrado pelo papa Alexandre VI. Estabelecia um meridiano de referência, a leste do qual as terras “descobertas e por descobrir”  pertenceriam a Portugal e a oeste, à Espanha. Era a prenúncio do mega-arrastão oficializado e abençoado pelo Vaticano, que duraria alguns séculos e causaria o extermínio de várias civilizações. As Filipinas ficavam na porção espanhola e conservam ainda em seu nome a homenagem ao rei Filipe II, da Espanha. Florence ridiculariza o tratado, ao anotar que naquelas vastas regiões, “sem partilha, reina a natureza”.
Na viagem de volta, a Fazenda Jacobina dá nova guarida aos viajantes, sob os cuidados atentos de dona Ana. Enquanto Rubtsov se desloca para o Arraial de Poconé, nome de uma tribo indígena que prevaleceu ao nome lusitano de São Pedro d’El Rey, Florence participa das festividades do batizado do filho do tenente-coronel. O ‘batuque’, avô das danças atuais brasileiras, anunciava a sensualidade que a musicalidade portuguesa associada ao ritmo trazido pelos africanos se encarregaria de perpetuar: “À tarde, houve a idéia de dançar-se o batuque. Como sinal de respeito a essa família que me recebeu e me obsequiou com tamanha urbanidade, abstenho-me de fazer a descrição dessa dança, de sentir que um povo dotado de qualidade recomendáveis, algumas vezes apresente tais torpezas aos olhos dos viajantes”. 
Florence reencontra Rubtsov na fazenda da Baía, perto de Poconé. A ‘ baía’ é um lago que, nas inundações, se comunica com o rio Paraguai: “É povoado de uma imensidade de aves aquáticas, como garças, colhereiros, carões, biguás, frangos-d’água, socós-boi, etc.”.  Rubtsov toma as medidas astronômicas e realiza a planta da vila. Florence anota que “partindo no dia 2 de outubro, chegamos a Cuiabá depois de vencermos 15 léguas em dois dias”.
 
 

Florence visitou e desenhou o Marco do Jauru em 11 de setembro de 1827.  Cinquenta e seis anos depois, em início de 1883, o Marco foi trasladado  para a praça Barão do Rio Branco, em frente à Catedral  de São Luís, em Cáceres, bem junto ao porto de onde saem os passeios de barco pelo rio Paraguai.
 
 
 
 
 
 
 
 
Langsdorff e a receita da infabilidade médica
 
Em Cuiabá, Langsdorff anota a receita da infalibilidade médica: “É de praxe aqui, entre curandeiros e cirurgiões, batizar todas as doenças, não importa de que natureza sejam, e classificá-las sob a rubrica de incuráveis, principalmente as de origem venérea, leprosa ou hemorroidal. (…) Se o doente morre, alega-se que não existe remédio para a doença que o matou; mas se o doente convalesce, seu curandeiro sai alardeando que realizou uma cura extraordinária”.  
Mostra-se satisfeito com o resultado da excursão de Florence e Rubtsov a Vila Maria, Poconé e Jacobina: “Fizeram, principalmente nesta última, desenhos muito interessantes dos índios Bororos, que enriqueceram bastante a coleção da viagem científica”.
Deixa Cuiabá no dia nove de outubro, para uma excursão à Vila Diamantino, “onde pretendo tomar providências para a longa viagem a Grão-Pará”. Passa novamente pelo rio Coxipó e em Baús, sua impressão desfavorável dos representantes de São Pedro nas cidades do interior é reforçada: “Seus habitantes se queixaram muito do capelão, porque ele exigia o pagamento antecipado de 6 vinténs para confessar os fiéis. Segundo eles, muitos têm morrido sem confissão”. 
Encontra vários cocos-de-aguaçu, palmeira também conhecida por guaguaçu ou babaçu, “e com três sementes ‘quentes’, conforme eles dizem.
Os brasileiros são muito preocupados com a nutrição e têm muita experiência nessa área. Eles classificam as comidas e frutas como ‘refrescantes’ e ‘quentes’. (…) Os charlatães, que não conhecem nada, tentam impor-se prescrevendo dietas absurdas associadas ao comportamento do doente. Por exemplo, um doente que toma purgante não pode, por 3 ou 4 dias, se expor ao desejo sexual nem fazer pão. Um doente com febre intermitente não pode pentear os cabelos durante três meses. Na maioria dos casos, o quarto dos doentes deve ficar trancado e escuro. A sangria só pode ser feita em determinadas horas do dia, num quarto trancado e iluminado à luz do círio. (N.B. Não pode ser lamparina nem velas de cera, tem que ser círio). ‘Seja bonzinho, me examina, veja meu pulso’, era o pedido que eu ouvia de centenas de doentes. E, depois de atendê-los, mesmo quando eu dizia que não podia fazer nada, eles iam embora satisfeitos: na verdade, só queriam ter certeza de que iam morrer, para ir fazer sua confissão antes que a morte chegasse”.
A travessia do rio Cuiabá, na passagem da Fazenda do Padre Mestre Tavares, é demorada. A bagagem é levada por canoas e os animais atravessam a nado. “Pagam-se 2 vinténs por cada animal, pela permissão para atravessar o rio, e cada pessoa, 3 vinténs”.
Experimenta e aprova o vinho feito de tamarindo, em uma fazenda em que se hospeda. Chega à vila de Diamantino, onde é aguardado há vários dias e é recebido com boas-vindas pelos moradores, “menos o cirurgião, ao que tudo indica, por ciúme profissional”.
 
 
Costumes e curiosidades
 
O uso da rede; do “capitão” e a prática de tomar o pulso
 
 

 
Dentre as curiosidades que testemunha, anota sobre o costume do uso da rede, invenção dos índios brasileiros: “A esposa do mais rico comerciante de Cuiabá acompanhou seu marido numa viagem ao Rio de Janeiro e voltou de lá dizendo que não tinha gostado do lugar, pois não encontrara, nas casas, um cômodo onde se pudesse armar uma rede de dormir. (…) Uma senhora de boa classe me perguntou se, na minha terra, as pessoas usavam rede de dormir. Ela não conseguiu entender como se pode viver sem elas. Tenho observado que elas são muito úteis no caso de enfermidades longas, pois evitam a formação de feridas e escaras”.
Descreve um costume de nossos avós, a preparação do ‘capitão’: “As mulheres raramente, para não dizer nunca, comem à mesa com os homens: ficam todas na cozinha. (…) As mulheres de elite comem feijão, farinha, etc., amassando-os na própria mesa e formando bolinhos com as mãos e os dedos; segundo elas, comendo assim, a comida fica muito mais saborosa. Por causa desse costume, logo depois da refeição oferecem água em bacias de prata e uma toalha de mão enfeitada com bicos de rendas finíssimos, para o convidado lavar as mãos”. 
A prática da medicina à moda européia deixa seus pacientes ressabiados:
“Quando eu as atendo, tudo o quê elas querem é que eu lhes diga o nome da sua doença e que eu lhes tome o pulso. (…) Algumas pedem até humildemente, mas com insistência. Certa feita, trouxeram-me uma menina, ou mulher, e pediram-me que sentisse seu pulso para ver se ela estava grávida. Disseram-me também que existe uma velha senhora que sabe sentir o pulso melhor que um médico e que ela nunca se enganou. Eles me acharam um ignorante quando confessei, com toda franqueza, que eu não sabia identificar uma gravidez pelo pulso”. 
 
 

Carandá (Arecácea, acima) e tarumã (Verbenácea, abaixo) no caminho de Cuiabá para Diamantino. Ilustrações de Florence.
 
 
 
 
 
E estranha a “falta de cerimônia com que as pessoas falam de suas próprias enfermidades. Um de meus doentes, com bubões abertos, sentou-se no meio da sala, onde pessoas entravam e saíam e onde havia uma moça amamentando; e deixou que lhe fizessem o curativo ali mesmo”.
E reclama: “Nunca vi tanto cão latindo à noite e nem tanto galo cantando de manhã como aqui; nas fazendas mais simples cultiva-se o canto do galo. (…) De manhã cedo é uma gritaria sem fim”.
E pesquisa: “Aqui em Diamantino, existem algumas águas cujas nascentes são pouco utilizadas; provavelmente elas atravessam camadas calcárias, que lhe dão um gosto levemente salgado; dizem que, às vezes, elas curam pessoas acometidas de bócio”.
 
 

 
Jogo, vinho e mulheres! 
 
Registra que preparou um pó contra o bócio que superou todas as expectativas e inclui sua receita no diário. O misterioso bócio intriga Langsdorff, que se sente satisfeito com os resultados obtidos na prática médica: “Mas fiquei muito orgulhoso por ter conseguido fazer, na Província do Mato Grosso, tantas curas milagrosas, como se diz aqui. (…) Fui o primeiro Doctor Medicinae Chirurgiae a chegar a esta Província e, como tal, tive que passar por algumas situações difíceis: sempre que tratava de um doente grave, eu precisava proibi-lo terminantemente de ingerir remédios de qualquer curioso, curandeiro ou velha senhora. (…) O único doente que perdi em Diamantino foi o Sr. Joaquim Gomes Bezerra. Ele teve febre infecciosa e febre tifóide agudas, e eu lhe prescrevi uma mistura refrescante de sal de amoníaco com quina; mas deram a ele, à minha revelia, três ‘pílulas da família’, um remédio inglês de charlatães. Em minha opinião, foi isso que matou o doente”
A igreja de Diamantino “consiste de quatro paredes despidas, sem nenhum enfeite, sequer um grãozinho de ouro, um mínimo de sinal da riqueza incomensurável que existe aqui. (…) As igrejas de Ouro Preto, de São José, próximo a São João d’El Rey e muitas outras são o exemplo mais vivo (do caráter de um povo)”. 
Para Langsdorff, é um parâmetro pelo qual se pode avaliar a diferença de caráter entre os habitantes de Minas Gerais e São Paulo e os do Mato Grosso de então. Nota que “o local é considerado altamente insalubre, e quase ninguém escapa da febre intermitente maligna”. 
Durante sua estada na Vila, dispõe-se a pesquisar “as causas dessas febres e doenças”. Os habitantes são “vítimas da vida desregrada que levam e dos excessos que cometem: jogam cartas dia e noite, comem e bebem sem condimento ou regularidade: ou bebem vinho e aguardente em excesso, ou não bebem absolutamente nada. Jogo, vinho e mulheres!”. 
 

Langsdorff – Parte 9. Na próxima edição (253 julho), Langsdorff  levanta acampamento e encara a temível viagem de Cuiabá a Belém do Pará. Mas acontecimentos dramáticos irão alterar os rumos da Expedição. 

 

 

 

 

 

 

PARA  SABER  MAIS

O TRATADO DE TORDESILHAS

“Testamento de Adão”: o mundo dividido entre Portugal e Espanha

 

De todos os tratados efetuados entre as grandes potências para acomodar interesses políticos e econômicos, o mais célebre é, sem dúvida, o Tratado de Tordesilhas. Tirou da obscuridade para sempre a pequena cidade espanhola de Tordesilhas, na província de Valladolid, palco da assinatura do tratado em 1494.

 

O Tratado definia oficialmente uma Linha de Demarcação localizada a 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde, do Pólo Norte ao Pólo Sul. As terras “descobertas e por descobrir” a leste dessa linha ou meridiano pertenceriam a Portugal e a oeste, à Espanha. 

A chegada de Cristóvão Colombo (1451-1506) às terras que ele morreu acreditando pertencerem à  costa oriental da Ásia, em 1492, batizadas de América em homenagem a Américo Vespúcio, acirrou os conflitos entre Portugal e Espanha sobre a conquista e colonização de novas terras. 
A diplomacia prevaleceu à alternativa de um confronto militar e, sob a benção papal, portugueses e espanhóis dividiram o mundo entre si. França, Inglaterra, Holanda e outras potências marítimas européias questionaram a legitimidade da partilha e o rei de França pediu, ironicamente, para ver a cláusula no testamento de Adão que legitimava essa divisão de terras. 
As Capitanias Hereditárias portuguesas avançaram em terras espanholas na região do Mar del Plata e a colônia de Sacramento foi estabelecida no Uruguay, considerado então o extremo sul do Brasil. Os novos conflitos foram novamente contornados pela diplomacia e, em 1750, Portugal e Espanha assinam o Tratado de Madri: “As terras conquistadas e colonizadas por um dos dois países ibéricos a ele pertenceriam”.
(Miguel Flori)