EXPEDIÇÃO LANGSDORFF – PARTE 12

29 de outubro de 2014

DO JURUENA A BELÉM do grão Pará

“Ao alcançar Santarém, dissemos então adeus à nossa camaradagem, e adeus eterno, pois ela, naquelas mesmas canoas, devia regressar para o lugar de onde tinha saído, afrontando novamente os perigos de que nos víamos livres; e, agradecendo ao comandante sua amável hospitalidade, abrimos no dia 18 de junho de 1828 as velas à bonançosa brisa, no meio de salvas que de terra e água saudavam nossa partida. Tão fraco se achava o Sr. de Langsdorff, que só carregado em rede é que pode ser embarcado”.
FLORENCE
 
 
 
 
 
São Simão de Gibraltar. Desenho de Florence.
 
 
No Salto de São Simão de Gibraltar, a expedição encontra outra monção com noventa pessoas distribuídas em nove canoas que seguem viagem rio acima. A oitava canoa da monção a transpor o Salto quase naufraga e é socorrida pela nona, de prontidão. Florence se comove: “O que muito nos tocou foi a ansiedade de um passageiro que levava sua mulher e dois filhos em tenra idade. Empregava todas as suas forças para ajudar os companheiros. Por fim, o piloto procurou outra passagem e atravessou o canal”. O salto leva quatro dias para ser transposto e é o segundo mais desgastante de Diamantino a Santarém, depois do Salto Augusto. As canoas são arrastadas sobre pedras e as cargas têm de ser transportadas por extensão maior que em todas as outras. Langsdorff e Rubtsov são transportados por redes durante as travessias e Florence se espanta ao escrever que, depois de navegarem alguns dias em ‘rio morto’, isto é, rio tranqüilo, ”no terceiro dia, porém, penetramos numa infinidade de cachoeiras, bancos de pedra e correntezas mais difíceis do que as cachoeiras, pois, numa distância de quase dois quartos de légua não há um escorregadouro que permita aliviar a carga das canoas. Esses baixios são também considerados o trecho mais perigoso de toda a viagem. (…) Não cessou a grita dos pilotos um instante sequer, muitas vezes uma hora a fio, porque avançávamos diagonalmente, ora achegando-nos a uma margem, ora a outra, como um navio que bordeja estreito canal”.
 
 
 
 
OS MUNDUCURUS E O TRUQUE PARA
SE LIVRAREM DE VISITAS INDESEJADAS
 
Florence visita a aldeia dos Munducurus: “Em duas delas penetramos, saltan- do em terra. (…) Numa delas entrei e lá achei cinco mulheres e igual número de crianças sentadas em redes e vestidas tão somente de uma tanga grosseira que os negociantes lhes vendem a troco de mantimentos. (…) Pareceram-me, contudo, aborrecidas de nossa visita, naturalmente pela ausência dos maridos que então cuidavam das plantações. Querendo eu desenhar esse grupo, voltei à canoa para buscar o álbum, mas de volta achei a porta fechada e a gente da parte de fora da choupana. Abri-a devagar, mas como as mulheres tinham acendido dentro um fo- garéu, era tal a fumaça que não me arrisquei a entrar. Ao invés dos Apiacás, ao menos nessa ocasião, haviam usado desse meio para nos repelirem”.
 
No porto em que a expedição acampa, “vários munducurus vieram até nossas canoas, acompanhados de mulheres e crianças. Apresentaram-se nus. Por duas facas de nenhum valor, deram-me dois cestos de cará e aipim, em tal abundância que, depois de distribuir pela tripulação, tive de guardá-los por oito dias. (…) No dia seguinte paramos algumas horas numa choupana cheia de redes onde se achavam perto de 40 pessoas. Alguma mulheres se ocupavam em socar mandioca, outras em tirar-lhe o suco que é veneno mortal; outras ainda em secá-la ao fogo numas grandes panelas de barro”.
 
Detalha a técnica inefi ciente usado pelas índias para tirar o suco da mandioca. Na verdade, a inefi ciência do método deixa a farinha de mandioca mais rica e saborosa. O suco, descartado por ignorância, contém toda a fécula da mandioca e, depois da evaporação do líquido, deixa como resíduo o polvilho. “Por tal modo grosseiro, é a farinha de mandioca que prepa- ram, que há caroços do tamanho de uma ervilha, duros como pedra e que a gente é obrigada a engolir sem triturar; o que contudo a torna em extre- mo nutritiva, pois contém quase toda a fécula; no que muito diferem esses ín- dios dos que hoje se dizem civilizados que tiram o mais que podem o amido, para ir vender a fregueses esfaimados serragem lenhosa em vez de farinha de mandioca. Se, quando seca, é difícil de comer e assim é que dela usam com todas as comidas, pelo contrário é excelente depois de escaldada, em conseqüência sempre da abundância de fécula que contêm. O mingau de tapioca, de que fazem muito uso no Pará, é uma papa sobremaneira agra- dável, preparada com farinha dessa qualidade, ovos, açúcar, canela, etc.”.
 
 
A aldeia dos Munducurus. Desenho de Florence.
 
 
 
Interior da cabana dos Munducurus. À esquerda, duas mulheres se ocupam de espremer a massa pilada pelas duas ao centro. Em primeiro plano, a mulher seca a massa numa grande panela de barro. À porta, os negociantes. Desenho de Florence, que provavelmente se inclui, de barba, como o primeiro negociante.
 
 
Florence, um bom negociante
Florence assume os encargos dos negócios, na vacância deixada pelo cônsul: “No meio daqueles munducurus fui assentar uma espécie de tenda de negociante, buscando trocar facas, machados e colares de todas as cores, por galinhas, patos e raízes nutritivas; única coisa que pude, apesar dos esforços, conseguir. Entretanto, a privação daqueles alimentos nos era extremamente sensível”.
 
Florence desenha alguns indivíduos e descreve a construção de suas cabanas: “Como as mais choupanas de munducurus e, aliás, as casas de pobres de todo o Brasil, essa era construída de paus-a-pique colocados juntinhos uns aos outros com um trançado horizontal de tiras de palmeiras ou taquaras amarradas com cipós, grade que, tapada com terra amassada n’água, forma muros e tapumes perfeitamente fechados. Fácil é, porém, conceber a pouca duração de tudo aquilo pelo que depressa  se formam buracos e inúmeros interstícios, em que aninham múltiplos e nojentos insetos. A coberta é feita de sapé ou folhas de palmeira”. 
 
Florence lista as últimas cachoeiras transpostas: Mangavera, da Montanha, Guapuz, Cuatá, Maranhão Grande e Maranhãozinho. “Na saída do Maranhãozinho, última cachoeira dessa viagem, esteve minha canoa a ponto de partir-se de encontro a uma pedra submersa, incidente que era, aliás, o tipo de nossa navegação desde o rio Preto, isto é, uma sucessão interrompida de perigos, canseiras sem nome, perícia e lances felizes. Estávamos então em rio morto, sem a menor correnteza, o mais insignificante baixio, desvanecidos todos os receios. Os pilotos davam-nos os pa- rabéns, trocavam felicitações e deixavam ir as canoas à feição  das águas; sem mais cuidados, nem cautelas. De seu lado, os remadores abandonando os remos, bebiam, cantavam e, em sinal de regozijo  atroavam os ares com tiros de espingarda”. 
 
Bandeira russa hasteada: Santarém mais próxima
 
No dia 13 de junho, “ao surgir o sol, arvoramos a bandeira russa que os pilotos salvaram com descargas, ao passo que a camaradagem ia remando e cantando e os proeiros batendo cadencialmente com os pés à proa ou com as mãos no chato das pás”.
Cabanas de munducurus e maués são avistadas à margem. Um morador de Cuiabá, “muito conhecido de nossa gente”, prepara uma refeição de tartaruga e pirarucu para o deleite dos esfomeados viajantes. Na localidade de Itaituba, encontram o comandante do distrito, “excelente velho muito estimado. (…) Estabelecido uns cinco anos atrás nesse lugar que achou deserto, reuniu cerca de 200 maués, os quais, apesar de pouco dados aos trabalhos, tinham já levantado 10 ou 12 casas e plantado alguma mandioca, ocupando-se também um tanto da extração da salsaparrilha. (…) Em Itaituba achamos uma goleta de Santarém, ancorada diante da casa do comandante, vista que me impressionou agradavelmente, pois era indício de que chegáramos a país marítimo, embora ainda ficássemos distantes do oceano umas 160 léguas portuguesas”.
 
 
Munducuru no rio Tapajós. A bandeira russa e um tripulante compõem a ilustração. Por Florence.
 
 
 
Munducuru em traje de festa. Florence. 
 
 
Femme et enfant des Munducurus.  
Por Florence.
 
 
 
Florence anota detalhes da economia extrativa: “Espontâneos são em sua maior parte os produtos de exportação; a salsaparrilha que os colhedores vão buscar do Pará nas matas do Tapajós, a borracha fonte de grande riqueza futura; (…) o guaraná, tão procurado da gente de Cuiabá, e que um dia juntará uma beberagem fresca e aromática ao luxo dos botequins das cidades da Europa”. 
 
E, com seu jeito romanesco, descreve a partida: “Como a goleta estava prestes a seguir viagem, não perdemos esse excelente ensejo de comodamente alcançarmos Santarém. Dissemos então adeus à nossa camaradagem, e adeus eterno, pois ela, naquelas mesmas canoas, devia regressar para o lugar de onde tinha saído, afrontando novamente os perigos de que nos víamos livres; e, agradecendo ao comandante sua amável hospitalidade, abrimos no dia 18 de junho de 1828 as velas à bonançosa brisa, no meio de salvas que de terra e água saudavam nossa partida. Tão fraco se achava o Sr. de Langsdorff, que só carregado em rede é que pode ser embarcado”.
 
Vista de Santarém, onde o rio Tapajós deságua no rio Amazonas.
Ilustração de Florence.
 
 
Conflitos políticos em família
 
O comandante do barco é um rapaz brasileiro, filho de portugueses, e Florence anota o conflito familiar que certamente foi comum, no período que se seguiu à proclamação da independência: “Durante a guerra civil de 1824, em que foram perseguidas pelos nacionais as pessoas de origem portuguesa, (o pai) estivera acoutado em Cuiabá, deixando a casa de negócio entregue ao filho, que, ou por inclinação, ou para salvaguarda dos bens que lhe foram confiados, não só se declarou filiado ao partido brasileiro, como transformou um grande prédio pertencente ao pai em quartel de tropa. Organizando e fardando à sua custa uma companhia de cavalaria, marchou contra a gente de Monte Alegre, que, segundo era voz geral, queria o assassinato em massa dos portugueses e assim concorreu eficazmente para a manutenção da ordem pública em Santarém, devendo-lhe até a própria vida muitos patrícios de seu pai; entretanto, voltando este por ocasião de  sanados os distúrbios,  censurou acremente o filho e não lhe perdoou ter feito despesas que subiam a 3 contos de réis”.
 
Do Tapajós ao Amazonas passando por Alter do Chão
A navegação é tranqüila no lindo rio Tapajós. Passam de passagem por Aveiro, Santa Cruz e Alter do Chão. Em treze dias descem o Tapajós até Santarém, “e ainda assim por estarem os índios e negros de bordo agarrados de contínuo aos remos. (…) Uma légua de largura tem o Tapajós, imensa superfície de água doce que se agita com um furacão, levantando grandes ondas como se fora mar alto. Bandos de botos passam a cada instante de um lado e de outro, de modo que se não fora a esplendida vegetação que por toda a parte limita o horizonte ou surge no meio das águas como ilhas esparsas, crer-se-ia a gente em pleno oceano. E, entretanto, o Tapajós não é mais que um afluente do Amazonas”. 
 
Em 1º de julho, a expedição chega a Santarém.  “Do porto avista-se o Amazonas que aí tem duas léguas de largo. Assente na confluência dos dois rios e à margem oriental do Tapajós, é o povoado bonito e bem situado em terreno plano que desce por uma rampa suave para a água. (…) Como quase todas as povoações da província, possui Santarém seu aldeamento de índios. Fica para Leste, separado por um terreno quase baldio. Transposto que seja, não se ouvem mais os ásperos sons da palavra portuguesa, porém sim as doces e incompletas entonações da língua geral brasílica, que falavam os pais daqueles aldeados, reunidos e congregados nessas choupanas pelos jesuítas. O nome primitivo da aldeia fora Tapajós, substituído porém pelo de Santarém, sem dúvida por efeito da influência que buscou dar denominações de origem portuguesa a todas as localidades do vale do Amazonas. Quando se chega do interior, uma coisa que causa estranheza é o modo de falar dos habitantes, carregado e com sotaque dos filhos d’além Atlântico: é que os portugueses ali são numerosos, e a pronúncia européia pode-se conservar na sua integridade, sem sofrer a modificação brasileira”. 
 
 
 
Ansiedade para conhecer o rio Amazonas
 
Mesmo debilitado, Florence não se contém e vai conhecer o Amazonas: “Da janela do quarto que eu ocupava em Santarém, e no qual todos os dias ficava duas horas a tremer de frio e de febre, via a pequena distância e do lado setentrional, não só o maior rio do mundo, como do outro lado a Guiana brasileira”. 
Aluga um igarité, pequena embarcação de nome e origem indígena, e contrata um piloto e dá vazão à sua curiosidade. É bem recebido na casa de um lavrador português ‘pitorescamente colocada’ em uma das ilhas do Amazonas e com ele passa o resto do dia. Convidado, não se faz de rogado e fica para a ceia.
 
Experimenta carne de peixe-boi e, como fica tarde, aceita também o pouso. No dia seguinte regressa para Santarém e começa a tomar as providências para a conclusão da expedição: “Não permitindo mais o estado de saúde do Sr. Langsdorff a continuação da viagem, despachamos um portador para o rio Negro, a fim de levar cartas ao Sr. Riedel, dando-lhe conta de todo o ocorrido e marcando a capital do Pará como ponto de reunião”.
Riedel passara em maio pelas corredeiras do rio Madeira, nas proximidades de onde hoje está a cidade de Porto Velho e em junho pela vila de Borba. O comunicado de Florence o alcança no rio Negro, onde realizava excursões botânicas. 
 O açaí seduz Florence, pela estética e pelo gosto: “As florestas circunvizinhas de Santarém estão cheias de uma linda palmeira, de viso não alto, e que deita cachos de coquinhos, com os quais se faz bebida agradável do gosto e consistência do leite, do qual contudo tanto se afasta que a cor parece calda de mirtilo”.
 
A expedição parte no dia 1º de setembro para Belém.
Florence se embevece com a navegação em um rio “que tem de largo quanto muitos da Europa têm de comprido”, mas as emoções estão longe de seu final: “A trovoada não cessava e o vento soprava rijo. Nestas condições caiu densa noite. Eis senão quando o proeiro deu um grande grito em guarani: ‘Ytá!’ (pedra). Não houve tempo senão de fazer força no leme; mais dois minutos estava o barco perdido.  Deitamos então âncora ao fundo, mas o rio parecia mar em fúria, quebrando-se em vagalhões e espumando e, como, pela correnteza, o navio não podia por popa ao vento que soprava de NE., recebíamos de flanco as vagas de modo demais incomodativo. Tão fortes eram os balanços, tão rápidos, que me era impossível ficar na rede, pelo que subi ao tombadilho, donde presenciei toda aquela cena de furor.  (…) Às 9 horas, tudo entrou em calmaria”.
 
No porto de Gurupá, Florence anota os produtos comercializados, como a borracha, e observa que alguns são vendidos sem registros oficiais para evitar os impostos. De Gurupá em diante, a navegação se faz por braços muito estreitos. As margens apresentam uma novidade ao curioso Florence: as palmeiras açaís. O suco de açaí é incorporado ao cardápio e Florence descreve seu preparo: “As margens estavam cheias de palmeiras açaís, umas carregadas de cachos de meio metro de comprido e formados de cocozinhos do tamanho de um bago de uva. (…) Derramando uma porção de açaí em gamela e esfregando os cocos com as mãos, destaca-se a película e tinge-se a água de uma cor negro-carmínea. Passando tudo por um pano, faz-se uma bebida muito agradável com consistência e gosto aproximado do leite. Pondo um pouco de açúcar, é refresco da melhor qualidade. A gente simples adiciona-lhe um bocado de farinha de mandioca e tem assim nutrição tão simples quão substancial”.
 
Rajada no rio Amazonas. Desenho de Florence.
 
 
Estreito de Breves no rio Amazonas. Desenho de Florence.
 
 
 
Intimidade compartilhada
 
A proximidade da mata permite compartilhar a intimidade religiosa dos moradores: “Navegávamos às vezes em canais tão apertados que as vergas dos navios iam tocar nas ramadas da floresta. A água é parada como se fora azeite. Uma tarde em que estávamos ancorados, e que, armado de um óculo, eu me comprazia em ver os ramos de árvores quase ao alcance do braço, ouvi distintamente vozes na mata, o que a princípio não deixou de me surpreender, mas atentando verifiquei que eram vozes de quem rezava o terço. A pouca distância havia uma choupana de morador que fazia sua reza com a família e provavelmente com os vizinhos”. 
As palafitas, “casas edificadas sobre estacas”, facilitam a interação entre os vizinhos. “Durante as inundações as visitas se fazem em canoas, podendo penetrar até debaixo do alpendre ou dentro do corredor das habitações. Quando há festança, na frente se vê uma verdadeira flotilha de canoas”
 
Atravessam o estreito de Breves e chegam a Belém do Pará no dia 16 de setembro de 1828.
 
Vista do Amazonas, perto da Ilha de Monte Alegre. Desenho de Florence. refeito anos depois.
 
 
 
Em maio de 1835 na Vila de São Carlos (Campinas), Florence refez e coloriu a ilustração da Ilha de Monte Alegre. Veja, acima, o desenho original e preto e branco.
 
 
 
 
EXPEDIÇÃO LANGSDORFF PARTE 13
 
Na próxima edição, de novembro, a Expedição espera por Riedel e prepara-se para a melancólica viagem de volta ao Rio de Janeiro.