Barragens vazias e nascentes secando

Seca nas nascentes DO VELHO CHICO e A transposição?

29 de outubro de 2014

O agrônomo Geraldo Gentil explica as causas da seca e porque tudo é causado pelas ações do ser humano

“Não há nuvens porque não há ciclo hidrológico. Não há recarga, porque não chove. Não chove porque o homem abriu a caixa de Pandora: derretem os pólos e os glaciares dos cumes,  arde a Amazônia e rugem as motosserras e bulldozers, avança a cana  e o capim braquiária, berra o boi nelore indiano, os oceanos geram excêntricos El Niños… Da caixa resta a Esperança, se para alguma coisa isto adianta”.

 

GERALDO GENTIL – ENTREVISTA

 

Folha do Meio – A região Sudeste passa por uma seca sem precedentes. Esta é uma ocorrência natural?

Geraldo Gentil – Não! É provocada pelo homem. A agressão ocorre sem dó nem piedade. Todo o estado de São Paulo e estados vizinhos são dominados pela cana, não mais existem bosques e matas que equilibram e sustentam o clima saudável, o ciclo hidrológico que faz chover e nascerem as fontes. A monocultura avança em Minas Gerais, atingindo as cabeceiras do rio São Francisco, a região de Furnas, e onde existem terras férteis. É esta uma cultura exigente em solo, fertilizantes químicos e agrotóxicos. Além disso a cana de açúcar tem elevada taxa de evapotranspiração, secando o solo, o sub-solo, o lençol freático e as nascentes profundas. Então não se formam nuvens localizadas nem chegam frentes frias que trazem chuvas, e não haverá a recarga dos aquíferos, porque o ciclo hidrológico foi violentado pela mão do homem. 
 
FMA – É grave assim?
GG – É muito grave. Veja, não há nuvens porque não há ciclo hidrológico. Não há recarga, porque não chove. Não chove porque o homem abriu a caixa de Pandora: derretem os pólos e os glaciares dos cumes,  arde a Amazônia e rugem as motosserras e bulldozers, avança a cana  e o capim braquiária, berra o boi nelore indiano, os oceanos geram excêntricos El Niños… Da caixa resta a Esperança, se para alguma coisa isto adianta.
 
FMA – Então o aquecimento global  exerce influência direta na escassez de chuvas no Sudeste?
GG – Sabemos que as frentes frias  provindas da Antártida vêm perdendo força e a cada ano se tornam mais espaçadas, pelo aquecimento fóssil do planeta, dentre outros agentes. Para conhecer o Pólo Sul é preciso ler os relatos de Scott, Amundsen e Shackleton.Também as frentes provindas da Amazônia se reduzem a cada ano devido ao desmatamento em escala industrial da vasta região, ocupada pela pecuária extensiva e agricultura de larga escala, como a cana, a soja, o algodão pelo Cerrado afora. As frentes atlânticas são desviadas pelo formo atmosférico que se forma sobre nossas cabeças na primavera-verão nos últimos anos, barrando e levando as tão esperadas chuvas para outras regiões.
 
FMA – E por quê secou a nascente principal do rio São Francisco na Serra da Canastra?
GG – No ano chuvoso que teve início em setembro de 2013 e terminou em abril de 2014, choveu apenas a metade dos 1.500mm registrados historicamente na Estação Agrometeorológica de Bambuí, que abrange as dez cidades-mães do rio São Francisco. E mais: em praticamente todo o Sudeste ocorreu o mesmo, levando a nascente ao fundo do poço, secando pela primeira vez o ícone das águas cristalinas da Canastra onde uivam os lobos guará. 
Se isto não bastasse, aquelas montanhas que chegam aos 1.485 metros de altitude onde nasce o rio, vêm sendo cercadas pela multinacional francesa TOTAL, conforme publicou aqui na Folha do Meio Ambiente, em setembro de 2006. Vale lembrar o que disse este jornal: “O ‘pescoço esfolado’ do Velho Chico – Monoculturas de cana-de-açúcar e soja nas nascentes do rio São Francisco”. Antes restrita ao município de Lagoa da Prata, desde 1949, agora predomina nas terras de Iguatama, Bambuí e Medeiros, onde ficam as nascentes geográficas no rio Samburá. 
Onde existiam pequenas matas de topo, de várzea e mesmo árvores isoladas tudo foi abaixo, causando a extinção de microclimas que geravam chuvas localizadas.
 
 
 
O sistema do Cantareira, em SP, está tão vazia que revela até cemitério de carros.
 
 
 
FMA – Como se explica Três Marias com 21 bilhões de m³ de água estar com apenas 4,3 %? Como ficam as bar- ragens situadas a jusante (abaixo) que são por ela abastecidas, além dos rios Abaeté, das Velhas, Jequitaí, Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Verde Grande, e os baianos Corrente  e Grande?
GG – Não apenas Três Marias, mas também outra barragem-mãe, a de Furnas, no rio Grande na bacia do Paraná, têm o mesmo problema. Am- bas, construídas por JK, chegaram a níveis críticos. Se o ano chuvoso fosse normal, as duas represas  estariam normais com as operações de rotina para usos múltiplos, sobressaindo a geração de energia elétrica. Como pouco choveu no Sudeste, o volume está beirando o nível morto, e turbinas são desligadas neste outubro ainda sem uma gota de chuva na região. 
 
FMA – As terras a jusante tem que ser irrigadas – com que água?
GG – A situação é crítica porque as captações para abastecimento de cidades ribeirinhas e mesmo poços tu bulares profundos secam pelo sumiço do lençol freático. O rio São Francisco desde 2001 quando descemos em toda a sua ex- tensão na Expedição Américo Vespú- cio, já vinha agonizando. Do volume de 21 bilhões só restavam 2,5 bilhões ou 12%. Pouco ou nada foi feito em treze anos daí até a Canastra para revitalizar as nascentes do São Fran- cisco e dos grandes afluentes outrora caudalosos como o Paraopeba, Pará, Lambari, Indaiá, Borrachudo e de- zenas de outros menores. Sendo as ações apenas locais e isoladas, jamais abrangerão a grandeza e a escala  ne- cessárias para sua recuperação.
 
FMA – E neste cenário desolador, o que você acha do projeto da Trans- posição do rio São Francisco?
GG – Transpor rios para outras ba- cias já foi moda nos USA, na ex-União Soviética e alguns outros países, mas os resultados foram abortados pelos desvios ambientais que causaram, como no Co- lorado, o mar de Aral/rios Amudária e Sirdária, o trasvase do rio Ebro, o maior rio espanhol, que nem saiu do papel. A respeito do nosso rio São Francisco, não conheço o projeto de transposição. Pela minha formação como engenheiro agrônomo, as técnicas de convivência do homem com o clima, seja árido ou o Se-
miárido Brasileiro me atraem o bastante.
 
FMA  – Você andou por países andinos, Patagônia, o deserto de Atacama; também se especializou em recuperação de desertos no Egi- to e convivência com o semiárido em Campina Grande. É possível, diga- mos, comparar climas tão secos?
GG – Comparar é arriscado, ainda mais climas, mas observei bastante e as paisagens ficaram para sempre na mi- nha memória. Montanhas e desertos me atraem e as gentes que lá vivem. Nos rios peruanos e chilenos descobri a beleza do degelo, águas azuis turbulentas. Acreditava-se que os picos nevados eram eternos, mas pelo aquecimento glo- bal e a Amazônia em chamas ali perto, os glaciares e picos derretem a cada ano. 
 
FMA – Você acha que o degelo an- dino e a seca dos veios d’água nas ter- ras altas, como da Serra da Canastra e adjacências correm risco?
GG – É triste pensar nisso. Mas é verdade. Taí uma boa questão. Qual desses dois fenômenos hídricos gerador de água corre mais risco? Acho que os dois.  Ambos estão em risco. Então lem- bro do milenar provérbio chinês:  “Co- nheça a montanha para conhecer o rio”. 
 
Foto: Cemig – divulgação
A represa de Três Marias tem 4,3% do volume d’água.  Como choveu pouco no Sudeste, o volume está beirando o nível morto. Turbinas são desligadas comprometendo a geração de energia. região.