Expedição Langsdorff - Parte 14

Epopeia Langsdorff estuda o Brasil de 1800 e ganha samba na Sapucaí em 1990

19 de dezembro de 2014

A redescoberta dos arquivos da Expedição, o relatório do Cônsul e a grande homenagem no Sambódromo do Rio

À esquerda,‘Rio Aquidauna (Província de Matto Grosso). Vista tirada a 2 de abril de 1867 por A. d’Escragnolle Taunay’

À direirta, Matriz de Uberaba (em construção), por Alfredo Taunay
 
 
 
 
"O livro ‘Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829’, de Hercule Florence, é o primeiro relato publicado sobre a Expedição e o único que traz à luz os acontecimentos, até a descoberta do acervo de Langsdorff em 1930”.
 
 
 
Alfredo Taunay, o visconde multitalentoso
 

Alfredo d´Escragnolle Taunay (1843-1899), filho de Félix Émile Taunay e sobrinho de Aimé-Adrien Taunay, herdou as habilidades artísticas dos Taunay e as políticas e militares da família de sua mãe, Gabriela Hermínia Robert d’Escragnolle. Ele foi agraciado pelo Imperador D. Pedro II com o título de ‘primeiro e único visconde de Taunay’. 
Seu filho, o historiador Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), viria a ser um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras. O visconde, além de músico, era pintor competente, como atestam as ilustrações que realizou. 

 

Manuscrito de Florence é encontrado por acaso

Em 1875, o visconde encontra por acaso, durante uma mudança, o manuscrito original deixado com a família em 1829, composto de oitenta e quatro páginas. 

O título: “Esboço da viagem do Sr. Langsdorff no interior do Brasil pelo segundo desenhista da comissão cientifica Hércules Florence”. 
Alfredo Taunay, que conhecera Florence em 1865 em São Paulo, pede sua autorização para traduzir e publicar as anotações e, em junho de 1875, comunica do Rio de Janeiro a Florence, em Campinas: “Só hoje é que recebi a sua estimável carta de 27 do mês p. passado, na qual me anuncia ter pronta, há quinze anos, uma relação de sua interessante viagem. O que possuo e está tudo traduzido já por mim… são simples apontamentos muitas vezes; entretanto todas as páginas têm leitura proveitosa e deleitável. (…) Creio que o melhor a fazer é imprimir na revista do Instituto Histórico esta primeira parte traduzida (…)”. 
 
 
Capa da edição francesa do livro de Hercule Florence.  A ilustração é de Adrien Taunay.
 
 
Importância do livro
Alfredo Taunay reúne as duas partes e as publica integralmente em 1875 no Instituto Histórico e Geográfico e assim justifica sua importância: “O que li sob o título – ‘Esboço da viagem do Sr. Langsdorff no interior do Brasil’ – pelo 2º desenhista da comissão científica, Hércules Florence, não é, portanto senão um seguimento de rápidas notas e apontamentos tomados para receberem, em trabalho completo e regular, todo o desenvolvimento desejável; entretanto nisso mesmo achei tanto interesse pela singeleza de narrativa, vivacidade de colorido e prudência de apreciação, que o fui traduzindo desde logo com destino às páginas da Revista do Instituto Histórico. É o livro de um viajante de boa fé que relata singelamente aquilo que vê e ouve contar. Seu estilo é despretensioso, sua frase ingênua por vezes. Mas dessa simplicidade, dessa mesma clareza, nascem meios sobejos para bem pintar as grandes cenas da natureza, porque o coração do narrador impressionava-se fortemente, identificando-se com a magnitude daquilo que o abalava. Cauteloso nos seus menores juízos, abstém-se de referir tudo quanto não parecesse prender-se imediatamente aos episódios da viagem. É o peregrinar de um homem circunspecto e prudente, que busca ver todos os homens e coisas debaixo do ponto de vista mais favorável e de acordo sempre com o seu sentimento íntimo e honesto.”
A mágoa familiar com a morte de Adrien, debitada em parte ao cônsul, é refletida com observações na tradução que buscam sinais de demência em Langsdorff. 
Alfredo Taunay, autor do livro ‘INOCÊNCIA’, que seria filmado em 1949 e refilmado em 1983, atribui ao personagem Guilherme Tembel Meyer características claramente inspiradas no cônsul. Meyer é um naturalista alemão, meio ingênuo e fascinado por borboletas. 
 
Capa da primeira edição do livro ‘Inocência’, de Alfredo Taunay.
 
 
Primeiro relato
O livro ‘Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829’ é o primeiro relato publicado sobre a expedição e o único que traz à luz os acontecimentos, até a descoberta do acervo de Langsdorff em 1930. Pela importância da publicação, Florence é eleito membro do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil em 23 de novembro de 1877.
 
 
 
Campanha para difamar a Expedição
 
Como se as mortes, a ‘febre tropical’ que atormentou os viajantes, os desentendimentos internos, as privações e a perda completa da memória do Barão não fossem suficientes, a ajudinha de Alfredo Taunay dá sua contribuição para a fama de malograda herdada pela expedição. 
O zoólogo paraibano Cândido de Mello Leitão (1896-1948), presidente da Academia Brasileira de Ciências de 1943 a 1945 e o historiador paulista Rubens Borba de Morais (1899-1986) usam de suas influências para a causa difamatória. 
Borba de Morais, que se dizia descendente de Borba Gato, ainda em 1968, referia-se à expedição como “malfadada” e dizia que “as coleções enviadas a São Petersburgo foram reconhecidas como de pouco valor do ponto de vista científico”
 
Dicionário alemão – língua geral – português – caiapó – guaná
A Expedição Langsdorff, apesar de dramática, é uma das mais importantes expedições científicas já realizadas, pelas pesquisas etnográficas, cartográficas, dos idiomas das tribos visitadas e as coletas e ilustrações da fauna e da flora ao longo dos milhares de quilômetros percorridos. 
Os desenhos da biodiversidade, os retratos e relatos da cultura local, as anotações medicinais e sobre a saúde dos habitantes enriquecem extraordinariamente o acervo geral da Expedição.
 
A reabilitação de Langsdorff
O primeiro trabalho publicado na Rússia sobre a expedição foi escrito pelo etnógrafo Henrich Henrikhovitch Manizer (ou Genrikh Genrikhovich Manizer) (1889-1917), principal nome da segunda expedição russa à América do Sul (1914-1915). Manizer qualificava Langsdorff como “homem de admirável honestidade e interesse”. 
O livro é baseado nas anotações de Néster Rubtsov, na edição francesa do livro de Florence e nos dados colhidos em campo pelo próprio autor. Manizer era especialista em línguas indígenas e morreu precocemente de tifo, aos 27 anos, na frente ocidental durante a Primeira Guerra Mundial. A etnógrafa Noemi G. Shprintsin (1904-1963), que era fascinada pela história da expedição e despertaria essa paixão em seu aluno Boris Nikolaevich Komissarov, se entusiasmou com o relato de Manizer e usou sua influência para publicar o livro em 1948, mais de três décadas depois de escrito.

Dicionário qüinqüelíngüe: alemão, língua geral, português, caiapó e guaná. Página original do diário de Langsdorff. 

 

A Academia de Ciências de São  Petersburgo nos tempos de Langsdorff.

 

Foto de Manizer aos vinte e poucos anos.

 

O Czar Alexandre I, que autorizou a Expedição.

 

 

Disputas internas, inundação e

Guerras põem em risco o acervo

Disputas internas pelo acervo em meados do século XIX ocasionaram mudanças repetidas de locação do material. O ego exacerbado, que encontra terreno fértil no meio científico e só não foi considerado pecado capital porque o conceito não existia na época medieval, determinou que o fim da disputa só ocorreria com a morte dos dois diretores beligerantes. 

Etiquetas puídas, nomes apagados, a falta de interesse de Ménétriès e Rubtsov, a saída de cena de Langsdorff, a distância de Riedel e Florence que permaneceram no Brasil, a morte das pessoas envolvidas no projeto e a morte prematura de Franz Borel em 1832 decretaram o esquecimento do assunto. “Os muitos caixas”, como o próprio cônsul se referia ao acervo da expedição em seu português peculiar, quase se perderam em uma grande inundação que atingiu Leningrado em 1924, antes de serem redescobertos. 
Em 1930, o conservador do Museu, B. L. Modzalievsky, descobre acidentalmente o arquivo em um dos armários do Museu Botânico da Academia de Ciências da Rússia, em grande e bem preservado volume. Naturalistas e acadêmicos russos deram início à sistematização de todo o material.  
Em 1936 um álbum com desenhos etnográficos é descoberto no Museu de Etnografia e em 1939, os desenhos de animais são localizados no Instituto Zoológico. Todo o material é reunido e a nova aventura para a preservação e estudo desse achado estava realmente por começar. 
 
O Professor Komissarov, maior autoridade sobre a Expedição Langsdorff
 
 
KOMISSAROV: o incansável professor entra em cena
O professor Komissarov, da Universidade de São Petersburgo, já está meio abrasileirado pela dedicação de toda uma vida acadêmica ao estudo e divulgação da Expedição Langsdorff. Komissarov viveu alguns anos no Brasil e cultivou amizade fraterna com o professor Marcos Pinto Braga, da Universidade de Brasília, falecido prematuramente em um acidente de carro na década de 1990. 
O professor Komissarov resgata alguns nomes de funcionários da Academia Russa que se responsabilizaram e mantiveram a salvo os arquivos durante o cerco a Leningrado pelas tropas alemãs. Leningrado é o nome de rebatismo de São Petersburgo entre os anos de 1924 e 1991. 
O bloqueio durou quase três anos, de 8 de Setembro de 1941 a 27 de Janeiro de 1944, e as mortes aconteciam à razão de 5 mil a 10 mil diariamente. Entre os mortos, a arquivista e pesquisadora Vera Gnútcheva. Maria Krútkova, outra responsável pelo arquivo, sobreviveu ao bloqueio e orientou o professor em seu início de carreira. São nomes ásperos para nossos ouvidos tupiniquins, acostumados ao falar macio e melodioso herdado dos negros e dos índios. 
Eles merecem um pensamento de gratidão por permitirem, com seu trabalho dedicado, que tivéssemos acesso à parte do nosso passado. 
 
Jorge Amado tenta interferir
O hermetismo da União Soviética, na época da Guerra Fria, dificulta o estudo do acervo e nem a fama e o respeito dos russos pelo socialista Jorge Amado (1912-2001), que logo após a Segunda Guerra, Jorge Amado encaminhou carta de Gilberto Ferrez à Academia de Ciências da URSS pedindo notícias sobre a expedição, dá resultado. 
O historiador carioca Gilberto Ferrez (1908-2000), neto do fotógrafo Marc Ferrez e talvez o mais importante pesquisador da iconografia brasileira, era conselheiro do Departamento Histórico e Artístico Nacional. 
Segundo o jornalista e pesquisador Pedro Vasquez, dentre as realizações marcantes de Ferrez estão a reforma do Paço Imperial, sede dos governos colonial português e imperial brasileiro e, acreditem,  a preservação do Pão de Açúcar, ícone da paisagem brasileira que a cupidez humana inescrupulosa estava de olho para transformar em pedra britada e ganhar mais espaço para a especulação imobiliária. 
A atividade humana coloca abaixo o Morro do Castelo no início do século XX em reforma urbanística e altera a paisagem “drenando pântanos e lagoas, retificando rios e modificando o perfil da orla marítima, saneando baixadas, cortando e arrasando morros, tornando, enfim, a vida possível numa região onde a parte plana, enxuta, era quase inexistente”, nas palavras de Ferrez.  
 
O governo, o clero e  Assis Chateaubriand entram no jogo
 
Alertado por Gilberto Ferrez, em 1946 o advogado mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), então diretor do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – transformado em Instituto em 1970 – informa a Dom Clemente da Silva Nigra, monge beneditino diretor do Museu de Arte Sacra da Bahia, da existência dos arquivos. 
Em 1963, Dom Clemente tem acesso aos arquivos apresentados a ele por um rapaz recém-formado: o professor Komissarov. Dom Clemente se surpreende com o quê vê e contamina o presidente dos ‘Diários Associados’, o jornalista e embaixador Assis Chateaubriand, com seu entusiasmo. 
Em 1965, uma Missão Cultural Brasileira chefiada por Chateaubriand e com as presenças de Dom Clemente e do representante da Fundação Pedro II na comitiva, é recebida e ciceroneada novamente por Komissarov. Dom Clemente escreve e publica em 1966 pela Universidade de Yale dos EUA, o livro ‘O Barão George Henrique de Langsdorff, 1774-1852 – O Grande Cientista Esquecido no Brasil’ e Chateaubriand publica uma série de reportagens sobre a expedição na revista “O Cruzeiro”.  O final da Guerra Fria, a Perestroika, literalmente ‘reconstrução’ em russo, medida política implantada em 1985 pelo então presidente Mikhail Gorbachev, permite acesso ao acervo pelo público e pela comunidade científica internacional. 
 
 
LANGSDORFF DE VOLTA
No governo José Sarney, as tendências liberais aportam também no Brasil. A Academia de Ciências de Moscou realiza a exposição “A Expedição Russa do Acadêmico G. I. Langsdorff ao Brasil em documentos e materiais” como parte das comemorações da visita oficial à União Soviética, em dezembro de 1985, do então ministro das Relações Exteriores Olavo Setúbal (1923-2008).  Komissarov está presente como consultor científico. 
O impacto causado no ministro, na comitiva e no corpo diplomático brasileiro e de outros países sul-americanos força a assinatura de um acordo de Intercâmbio Cultural, assinado em 1987. Finalmente a exposição do acervo no Brasil é inaugurada em julho de 1988 no Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, com o nome simbólico: “Langsdorff de Volta”. É a primeira mostra do arquivo fora da Rússia. A importância pode ser aquilatada pelas presenças do presidente José Sarney, do ministro da Cultura Celso Furtado (1920-2004) e do Chanceler Abreu Sodré (1917-1999), entre outras personalidades. A exposição vai ainda para Cuiabá, São Paulo, Rio de Janeiro e Belém do Pará. 
 
 
O velho cônsul chega ao Sambódromo
Langsdorff teve direito até a samba-enredo e desfile alegórico pela Escola de Samba Estácio de Sá, em 1990. 
 
Langsdorff, Delírio na Sapucaí (1990)
 Autores: Maneco; Adauto Magalha; Adilson Gavião e Jorge Magalhães
G.R.E.S. Estácio de Sá (RJ)
 
Num desfile fascinante
A Estácio vem mostrar e contar
A viagem deslumbrante
Que Langsdorff fez a mando do Tzar
(Foi em Minas Gerais) Minas Gerais
Onde a odisséia começou
Flora, fauna, minerais
Catalogando tudo aquilo que encontrou
Empalhando os animais
E revelando seus achados a Moscou
(Com muito amor)
Em Cuiabá, margeando um igarapé
Viu a tribo Apiacá
Povoação ribeirinha ao Guaporé
Alucinado com a febre do sertão
Viu a Rússia na Amazônia
Num delírio de ilusão
(Fascinação…)
Fascinação
O palácio do Tzar estava ali
Por incrível que pareça
Viu a mula-sem-cabeça
Galopando com Saci
E os colibris
Num bailar tão sutil
Borboletas revoando entre as flores
Matizando em muitas cores
A aquarela do Brasil
Que maravilha
Coisa igual não vi
A Estácio é delírio
Na Sapucaí
 
O desfile da Escola de Samba completo está disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=n5lmMoPvZWk
ou
http://letras.mus.br/gres-estacio-de-sa-rj/745345/

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Um integrante da Escola de Samba assim se manifestou sobre a escolha do tema: “Adorei a recente exposição sobre a história da expedição Langsdorff. E, ainda por cima, percebi que seu tema é muito atual. Ela levanta os problemas da ecologia, faz um apelo à salvação das maravilhosas fauna e flora de nosso país”.

 

SELO COMEMORATIVO 

A reabilitação de Langsdorff. 
As suas identidades de médico alemão Georg Heinrich von Langsdorff, de ministro todo-poderoso russo Barão Gregori Ivanovich Langsdorff e de fazendeiro brasileiro Jorge Henrique de Langsdorff  conjuminaram  em um naturalista, explorador e reformador social visionário acima dos conceitos de pátria ou religião. 
 
 
Localização dos acervos originais
As ilustrações de Rugendas, Hercule Florence e Adrien Taunay encantam historiadores e leigos pela beleza e pelo rigor científico. Estão arquivadas na Academia de Ciências de São Petersburgo. Os estudos cartográficos de Rubtsov resultaram em 36 mapas e plantas das cidades visitadas e estão no Arquivo Naval Russo. As coleções de mamíferos, peixes, répteis e insetos e as quase mil aves empalhadas estão conservadas no Instituto de Zoologia da Academia. O herbário e as coleções de madeiras, frutos e sementes, organizadas por Riedel e Langsdorff se encontram no Instituto de Botânica da Academia e permitiram a descrição de muitas espécies botânicas da flora brasileira. A copaíba (Copaifera langsdorfii), a acácia (Acacia langsdorfii), o limão bravo (Sequieria langsdorfii), um sapo da Mata Atlântica (Itapotihyla langsdorfii) e uma cobra amazônica (Micrurus langsdorfii) estão entre as dezenas de espécies de nossa flora e fauna que homenageiam e perpetuam o nome do heróico Barão. O estudo das etnias e dos dialetos indígenas, registros dos vocabulários e cerca de uma centena de objetos etnográficos da cultura e dos costumes de tribos indígenas fazem parte do acervo do Museu de Antropologia e Etnografia da Academia de Ciências.
 
Uma associação internacional para estudar a Expedição
A Associação Internacional de Estudos Langsdorff (AIEL), criada em 1990, se empenhou em trazer para o Brasil uma cópia da documentação da expedição, disponibilizada para consulta na Casa de Oswaldo Cruz, da FIOCRUZ, no Rio de Janeiro, e no Centro de Memória da Unicamp (CMU), em Campinas, São Paulo.
Os Diários de Langsdorff, após anos de trabalho, foram publicados em três volumes, pela FIOCRUZ, com o apoio de diversas empresas.
 
Descendência brasileira do cônsul
Além de um filho natural nascido em 1809 na Alemanha, o barão teve energia para se casar por duas vezes e dos seus sete filhos, seis nasceram no Brasil. Seu filho Heinrich Ernst, nascido em 1816, aqui permaneceu depois do retorno da família à Alemanha e garantiu a permanência genética de Langsdorff entre nós, como era o sonho do hiperativo Barão.
O especialista genealógico Francisco de Albuquerque estima em mais de mil os descendentes de Langsdorff no Brasil, entre eles o maestro Joaquim Antonio Langsdorff Naegele, já falecido e autor de mais de duzentos dobrados e as belezas inócuas de Luma e de sua irmã Ísis de Oliveira. 
Há mais de 30 anos, o historiador da ciência russo Boris Nikolaevich Komissarov, professor da Universidade de São Petersburgo, ocupa-se dos estudos, conservação e exposição  do acervo da Expedição Langsdorff. É o maior especialista no estudo da Expedição e presidente da Associação Internacional de Estudos Langsdorff.
 
 
RELATÓRIO FINAL DE LANGSDORFF
Relatório enviado por Langsdorff em 22 de junho de 1827 para São Petersburgo.
 
 
►VIAGEM: DE PORTO FELIZ A CAMAPUÃ
“No dia 22 de junho do ano passado [1826], em companhia de um grande séquito de Porto Feliz, província de São Paulo, descemos pelo Tietê. Deixamos a parte habitada e civilizada desta província e seguimos a corrente do rio, perigoso pela abundância de quedas d’água, até sua desembocadura no imenso Paraná. Durante vários dias descemos por esse importante rio até à embocadura do rio Pardo, depois subimos por este último até a suas nascentes, isto é, até os pontos em que, com os afluentes, se tornava acessível à navegação. Este rio corre inicialmente numa alta cordilheira que atravessa o Brasil de norte a sul e lança suas águas, ao oriente, no Paraná e, no ocidente, no Paraguai. Nesta altura, perto do divisor de águas, existe o povoado do Camapuã, muitas centenas de léguas distante de outros, em qualquer direção. Ali os viajantes, por preços exageradamente elevados, adquiriram sal, ferro, pólvora, munição e comestíveis e transportaram canoas, através da montanha, por terra firme, a uma distância de duas e meia léguas, tudo conduzido em dois carros enormes puxados por sete juntas de bois”.   
 
 
►MOSQUITOS E FORMIGAS
"A 22 de novembro, cerca do meio-dia, prosseguimos nossa viagem fluvial. A princípio navegávamos através de saltos d’água em meio a um bosque exuberante, pelo correntoso ribeiro Coxim; a 3 de dezembro desembocamos no rio Taquari e a 12 alcançamos o local em que esse riozinho deságua no grande e magnífico rio Paraguai. Até então, descendo o rio, a viagem era rápida e, até certo ponto, confortável, mas dali por diante tornou-se difícil, desagradável e lenta, subindo o Paraguai, o São Lourenço e o Cuiabá.  Chegou a estação chuvosa e ao nosso avanço contrapunham-se dificuldades ainda maiores, devido à forte correnteza dos rios. Uma quantidade enorme de mosquitos nos cobria a todos remeiros desnudos e as canoas, e nos cercavam como uma nuvem. Nas margens próximas, alagadas, mal se podia encontrar um lugar enxuto para encostar as canoas, num breve descanso. E como cada árvore e cada arbusto (nos pantanais) estavam cobertos por milhões de formigas, era impossível encontrar meios de defesa contra os malditos enxames de insetos martirizadores, nem no ar nem na terra. A vida de cada um de nós se tornou pouco alegre. Mal se podiam levar até à boca duas colheradas de favas frias com sebo (nossa única, habitual e diária alimentação), sem engolir também mosquitos, e em água para refrescar a garganta nem era bom pensar”. 
 
 
►218 DIAS ATÉ CUIABÁ
“A água do Paraguai, que flui lentamente, estava sobrecarregada de toda a espécie possível de corpos estranhos: barro vermelho, folhagem e raízes apodrecidas, peixes em decomposição e a fétida urina de centenas de jacarés (Crocodilus palpebrosus Guor); estava coberta por uma escuma repugnante, que provocava asco só de olhar, e quase completamente inservível para beber-se. E além disso, a temperatura atmosférica à sombra era comumente de 26° a 29°. A temperatura da água era quase invariavelmente de 24º (14),  dia e noite. Sob esse calor incessante, ao ar livre, com uma sede angustiosa, acossados por nuvens atormentadoras de mosquitos, permanentemente molhados de suor, era-nos impossível obter algo fresco para beber e assim nem se podia pensar em qualquer ocupação intensa e séria. Afinal, após essa viagem perigosa, dura e difícil, que se estendeu por sete meses e oito dias, chegamos em fins de janeiro de 1827 à principal cidade da província de Mato Grosso — Cuiabá, pelo grande rio navegável (15),  que tinha o mesmo nome daquela cidade. Pela relação anexa de material zoológico, a Alta Conferência da Academia de Ciências verá o significativo crescimento que resultará desta viagem para o Gabinete de história natural. Contudo, não deixei sequer um minuto de levar em consideração os desejos de Sua Excelência — nosso ilustre e digno senhor presidente — de tanto quanto possível, enriquecer a coleção de mamíferos, e assim esforcei-me simultaneamente para atender ao pedido de meu respeitável colega senhor Pander, obtendo crânios e esqueletos de animais admiráveis, de modo que o Museu da Academia se adornará com muitos espécime”.
 
 
 ►COLEÇÃO DE PLANTAS,
SEMENTES E RETRATOS DE ÍNDIOS
 “O botânico Riedel trabalhou para a ciência com muito fervor e com grande êxito; conseguiu uma coleção magnífica de plantas e sementes raras, que poderão ser adaptadas, de acordo com as indicações, à coleção do Jardim Botânico em São Petersburgo.  N. Rubtsov prosseguiu diligentemente fazendo suas observações astronômicas, meteorológicas e geográficas, que envio em anexo para explicação do mapa. O pintor Adrien Taunay desenhou com habilidade e gosto numerosas e admiráveis vistas e espécimes raros de história natural. Constituíu-se assim uma interessante coleção de desenhos.  Tendo em vista que a melhoria dos conhecimentos relativos ao homem me interessa mais particularmente, esforcei-me por que os pintores da Expedição preparassem retratos fiéis de representantes de todas as tribos indígenas que pude observar. Já agora tenho a satisfação de possuir retratos muito instrutivos das tribos dos caiapós, guaianás, guatós, xamacocos, bororos e chiquitos. Qualquer pessoa que inadvertidamente observe essas tribos facilmente se inclina a considerá-las como sendo de raça mongol.Tenho a esperança de que esta coleção de retratos de todas as tribos brasileiras, após esta excursão ainda muito longa que empreendo, despertará inusitado interesse. Além disso, esforcei-me em reunir notas e tudo o que se refira aos idiomas dos índios (desde o tempo dos jesuítas) e penso que com isso poderei prestar à ciência um importante serviço.  Seja-me permitido, ao mesmo tempo, observar que durante esta viagem, no trajeto pelos rios Tietê, Paraná, Pardo, Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá, eu me ocupei especialmente de ictiologia, descrevi e desenhei mais de cinqüenta novos tipos de peixe de água doce ou fluviais. No futuro pretendo dedicar especial atenção a este ramo da história natural, que tem sido votado ao desprezo pela maioria dos naturalistas que viajaram através do Brasil. Tenho a esperança de que o resultado geral da Expedição, que se iniciou sob tão bons auspícios e sob a proteção que dão à ciência o Monarca e seus ministros, corresponderá à expectativa de seu generoso patrono”.
 
 
►ESTUDOS DA AGULHA MAGNÉTICA
“Eu deveria ter salientado, mais acima, que continuando minha viagem passei a estudar as inclinações e oscilações da agulha magnética. Para esse experimento utilizei o método que se poderia chamar de inglês, até o recebimento de informações mais fidedignas, pois eu o aprendi com o sábio navegante inglês M. Owen. O método consiste em fixar, antes de tudo, o ‘inclinatorium’ pelo nível do plano horizontal, depois as agulhas do pólo sul do ‘inclinatorium’, com a ajuda de outro pólo sul, baixam até 75º, e então se observam as oscilações da agulha enquanto ela não pára. As observações foram feitas com exatidão e minúcia, mas, como físico, meus conhecimentos são insuficientes. Por isso, construir hipóteses na base dessas observações e delas extrair conclusões – isto já não entra no plano de minha viagem.”
 
 
►MATERIAL ORNITOLÓGICO
“Finalmente, aproveito a ocasião para enviar à Alta Conferência da Academia de Ciências a descrição de material ornitológico reunido de junho de 1826 a janeiro de 1827, juntamente com alguns desenhos, etc. Os originais se encontram em parte nos paquetes anteriores, em parte nos que enviamos agora daqui e dos quais nos referimos acima, e os poucos que tiveram de ficar, devido a insuficiência de lugar ou por outra circunstância, seguirão junto com as próximas remessas de coleções”. 

 

 

COMPONENTES DA EXPEDIÇÃO
Lista dos componentes da Expedição de Porto Feliz a Cuiabá. Levantamento de Arnaldo Machado Florence (1911-1987), bisneto de Hercule Florence.
 
 
 
 

PRÓXIMA EDIÇÃO 259 – Jan/Fev

Expedição Langsdorff – Parte 15
Na próxima edição, a última reportagem da série: Algumas das ilustrações científicas,  histórias e ‘causos’ recolhidos por Florence e a bibliografia consultada.