DE HERCULE A HÉRCULES - Parte 1

FLORENCE: O TALENTO POLIVALENTE DE UM ARTISTA GENIAL

13 de janeiro de 2016

Recrutado por um anúncio de jornal, ainda no Rio de Janeiro, Hercule Florence se tornou o principal nome da Expedição, logo após o próprio cônsul Langsdorff.

Hercule Florence em três momentos: provavelmente na década de 1830, em meados dos anos 1840 e na década de 1860.

 

SOB O SIGNO DA AVENTURA

As aventuras de Robinson Crusoé são sua fixação e Florence ‘viaja’ o mundo no Atlas Geográfico da família. Relembraria mais tarde em suas memórias: "Li Robinson e fiquei apaixonado pelas viagens e aventuras marítimas. Este gosto me deu o da geografia e passava horas inteiras sobre um Atlas bom que tínhamos. Não havia um lugar no mundo onde eu não pretendesse ir um dia. O Mediterrâneo me parecia demasiado pequeno e eu apenas pretendia percorrê-lo como percorremos o lago do país antes de o deixar".

O ambiente familiar favorável permite o florescimento natural de suas aptidões. A sede de aventura era tanta que parecia atacado de um banzo africano. Aos 16 anos, a resistência de dona Augustine é vencida por pedidos entrecortados de choro juvenil e soluços maternos. A mãe cede aos apelos d’ “o filho ingrato e querido” e o banzo esvanece. Florence vai a Nice procurar um rico comerciante judeu que o acolhe bem, prepara uma carta de recomendação e oferece lugar em um navio fretado prestes a partir para a Antuérpia, na Bélgica. Em suas memórias, Florence anota: ”Contente de poder partir e bastante insensato para conhecer quanto esse homem carecia de senso comum ao oferecer-me procurar emprego na Antuérpia com uma simples carta de recomendação, fiz em poucos dias a preparação da viagem. Minha mãe me deu 12 luízes (cerca de 240 francos), o que era o terço da colheita do ano; e deixei o teto paterno no ano de 1820”.

Inevitavelmente o empreendimento fracassa e o jovem volta a pé para Nice, na França. A pequena odisséia vale a pena ser relembrada, pois manifesta o surgimento de suas inclinações aventureiras e seu dom para se safar dos contratempos durante a peregrinação.

 Na Antuérpia, seus planos econômicos não correspondem ao seu otimismo juvenil e o rapaz não se aperta. Busca a ajuda do comandante do navio em que viajara e em sua companhia visita a cidade, percorre os monumentos, se surpreende com as construções e com a altura descomunal da torre da catedral. O capitão releva o pagamento da passagem por Florence e ainda dá um adjutório de dois luízes para o rapaz enfrentar a viagem de volta.

 

A decisão de voltar para casa

Florence enfia seus pertences em uma sacola e decide voltar a pé pra casa. Passa por Bruxelas (a 45 km da Antuérpia) e tiritando de frio no inverno setentrional de dezembro chega a Paris, depois de percorrer 320 km.  “E no dia seguinte, antes do meio dia, estava a caminho da Itália, com os meus 16 anos e amedrontado pelo primeiro ensaio que acabava de fazer de nossas sociedades; pensando somente em minha mãe, apenas me lembro das ruas enlameadas por onde passei; do gelo do Sena, do domo dos Inválidos, que avistei de longe; da ponte de Austerlitz; do exterior do Jardim das Plantas e do boulevard. Com um pouco menos de acanhamento talvez houvesse encontrado recursos em Paris, ao menos me apresentando na casa do escultor Francisco Bosio, cujos parentes conhecia em Mônaco, quando fosse somente para descansar alguns dias e ver um pouco de Paris”.

 Parte na manhã seguinte para Aix-on-Provence, distante quase mil quilômetros de Paris. Mesmo tendo viajado de carona na carroça de um carvoeiro e em outros veículos similares, tendo encontrado guarida em albergues e navegado um tanto pelo rio Ródano, chega a Aix com seu orçamento quase zerado. Parte do patrimônio foi dividido com “um pobre marinheiro vindo de Brest, cujos recursos eram três vinténs e a disenteria que contraíra em suas viagens ao redor do mundo”. Encontra um parente remoto de sua mãe que o recebe bem. Inesperadamente vende alguns desenhos de paisagens que havia feito e levanta um capital de dez francos.

Logo que coloca de novo o pé na estrada “feliz com a frescura do caminho e a bela paisagem de Provence”, dois gendarmes, os ‘gens d'armes’ ou ‘homens de armas’ dos franceses, solicitam sua identificação. O passaporte de Mônaco é recusado e os soldados o escoltam ao posto policial. Relata suas aventuras e granjeia a simpatia dos mantenedores da ordem. Pernoita na estrebaria e desenha o retrato das mulheres dos policiais, antes de colocar sua trouxa nas costas. Seus dotes artísticos facilitam a hospedagem em albergues e a carona em algum cabriolet inesperado. Depois de percorrer quase dois mil quilômetros, grande parte a pé, alegra sua família com seu inesperado retorno. Da próxima vez que saísse de casa, viajaria meio mundo e certamente frustraria sua mãe, a viúva dona Marie Augustine, pois deixaria o abraço materno perdido no vazio. O reencontro aconteceria em 1855. Dona Marie Augustine, aos 87 anos, pode abraçar novamente o filho, já passado dos 50 anos.

 

 

A SEDUÇÃO PELA AMÉRICA

A chegada à baia de Guanabara

A experiência o acalma por dois anos, gastos no estudo autodidático da matemática, da física e da cartografia. O germe da aventura se manifesta novamente e, aos 19 anos, entra para a Marinha Francesa. Viaja para Toulon e dá aulas particulares de italiano para o filho de um comerciante, enquanto aguarda os papéis que o permitiriam viajar para o exterior. Regressa a Mônaco para pegar pessoalmente os documentos e despede-se mais uma vez de sua família, agora conformada com a obstinação aventureira de Hercule. Por essa época seu irmão Emmanuel Florence, também seduzido pela aventura, já havia desaparecido no Egito. Fortuné, o terceiro e último irmão, é contundente na despedida: “Nós perdemos um irmão no Oriente. Quem sabe onde irás habitar ou levar uma vida errante?”

Em Toulon, serviu por um tempo em um navio cujo comandante se entusiasmou com seus talentos e tentou fazê-lo aceitar algum cargo administrativo ou no corpo de engenheiros navais. Mas os apelos das aventuras vividas por Robinson se sobrepujaram e Florence é sintético: “Era assim que eu mesmo renunciava a uma posição em minha pátria; e eu era instrumento do duro destino que me aguardava na América”.

Sob o comando do capitão Ducamp de Rosamel serviu por alguns meses na fragata ‘Marie Thérèze’, na expectativa de uma viagem de circum navegação pelos quatro cantos do mundo. A viagem foi confirmada e o capitão De Rosamel o convidou formalmente: “Venha para a América. Você poderá descer onde quiser”.  Parte de Toulon em fevereiro de 1824 e em abril aporta na baía da Guanabara, onde a fragata permanece ancorada por um mês.

 

Primeiro depoimento sobre o Rio

Seu depoimento sobre o Rio: “A baía e seus arredores não ficam em plano inferior a Constantinopla, Nápoles e Lisboa. A cidade não lhes é superior, embora mais vasta, pois não se vêem nela palácios nem grandes edifícios; mas desde vinte anos que a conheço ela tem-se embelezado, e edificam-se todos os anos tantas casas que, no dizer de um francês esclarecido, o Sr. Charles Taunay, ela não tardará em sobrepujar a população dessas grandes cidades. Tudo me anunciava que estávamos no Novo Mundo: as pirogas que deslizavam ao redor da fragata, os negros, as frutas que eles traziam, tudo para mim era novo. Descemos à terra e a primeira impressão que experimentei foi acompanhado de algo doloroso. Seria porventura um pressentimento? A vista desta população variegada de brancos, pretos e mulatos de todas as graduações me entristeceu um pouco. Atravessei o pequeno largo do Capim, onde se açoitava um preto amarrado ao pelourinho. Esta cena me revoltou, pois eu era bisonho quanto à escravidão. Mais adiante vi a fachada de São Francisco de Paula, onde estava escrito em grandes letras: Charitas; e não pude deixar de maldizer um povo que afetava tanto a caridade e que açoitava os negros”. 

 

‘Pain de Sucre et Corcovado’. Por Florence.

(acervo do "Museu Paulista da Universidade de São Paulo", disponibilizado através do site do Instituto Hercule Florence)

 

Às vésperas de zarpar, o capitão De Rosamel apresenta Florence ao Sr Pierre Dillon, amigo antigo do capitão. A oferta para trabalhar como caixeiro na loja de roupas do Sr. Dillon e a liberação de seus compromissos a bordo do ‘Marie Thérèze’ o encorajam a permanecer no Rio. No dia primeiro de maio de 1824 deixa o navio, de mala e cuia. Em carta para a família, sintetiza sua concepção de vida: "A vantagem de estar longe de vocês, apesar de não fazer muito tempo que viajei, me parece, acima de tudo, foi adquirir certa experiência para conhecer e amar os verdadeiros bens da vida, que consistem na simplicidade, no trabalho e na tranqüilidade da imaginação. Esta imaginação que cega, consegue me determinar a me separar de vocês todos. É bom me educar através do trabalho, tendo eu uma avidez de conhecimentos… desejo progredir no estudo da ciência e desejo conhecer o mundo, visto que é pequena nossa passagem insciente sobre a terra, só desejo me instruir".

 

Carregadores de água no Rio de Janeiro. Por Florence. (acervo do "Museu Paulista da Universidade de São Paulo", disponibilizado através do site do Instituto Hercule Florence)

 

O anúncio de Langsdorff e a

apresentação de Florence

 

A atividade no mundo da moda o desanima. “Se eu tivesse tido vocação para o comércio, o ensejo era propício para eu fazer meu aprendizado no caminho do comércio, pois a casa estava em voga; mas eu era incapaz de semelhante tatamen”.

Em maio de 1825 deixa o emprego de loja de roupas e decide trabalhar na tipografia de monsieur Plancher, livreiro e editor. Em agosto, um vizinho mostra a Florence o anúncio publicado por Langsdorff: “Um naturalista russo, tendo de fazer uma viagem no interior do Brasil, precisa de um pintor. Quem estiver nas condições, favor se dirigir ao Vice-Consulado da Rússia”.

Langsdorff reconhece o potencial do jovem artista e geógrafo amador. Ressentido com a experiência desagradável que tivera com Rugendas, decide não se arriscar a perder novamente um artista ilustrador durante a planejada e cara incursão pelo interior do Brasil. Langsdorff então se dispõe a custear de seu próprio bolso a participação de Florence como segundo desenhista da Expedição. Durante o tempo que passara com monsieur Plancher, Florence cativara o patrão e vários amigos com sua índole dócil, seu espírito vivaz e comportamento correto.

Todos foram unânimes na tentativa de demovê-lo do empreendimento, considerado impensado e temerário. As propostas tentadoras feitas por Plancher foram insuficientes para segurá-lo e uma semana mais tarde Florence se reuniu à comissão científica do Cônsul Geral da Rússia. “O senhor Plancher ganhou depois disso trezentos mil francos em seis anos e quando se retirou para a França vendeu o seu estabelecimento sem nada receber à vista, a moços que tornaram ricos e que tiveram sucessores não menos felizes. Se eu tivesse ficado em casa do senhor Plancher, não me teriam sido precisas muitas aptidões para fazer minha fortuna antes da idade de trinta anos”, anotaria Florence mais tarde.

 

ENFIM, A OPORTUNIDADE!

Florence era então um rapaz alto e magro de seus 20 anos, um verdadeiro ‘pau-de-virar-tripa’ como se dizia então, em alusão à haste roliça de madeira utilizada nas fazendas para lavar internamente as tripas para se fazer a linguiça, na matança de porcos. Ele viveria em poucos anos aventuras além das imaginadas em suas excursões pelo Atlas de mamãe.  

 

Rancho de tropeiros. Por Florence (acervo do "Museu Paulista da Universidade de São Paulo", disponibilizado através do site do Instituto Hercule Florence)

 

Antes do início oficial da expedição, Florence anota em sua passagem por Cubatão, em 1825: “Cheguei ao Cubatão às 10 horas da noite e fui acolhido pelo Sr. Eduardo Smith, dinamarquês de nascimento, para quem levava cartas de apresentação. No dia seguinte, presenciando a atividade que reinava em Cubatão, conheci quanto é ponto freqüentado bem que não seja mais que um núcleo de 20 ou 30 casas mal construídas. É o entreposto entre São Paulo e Santos. Durante os oito dias que lá fiquei, vi diariamente chegar três ou quatro tropas de animais e outras tantas partirem. Cada compõe-se em geral de 40 a 80 bestas de carga, guiadas por um tropeiro e divididas em lotes de oito animais que caminham sob a direção de um camarada. Acontece que quando muitas delas ali se reúnem, os camaradas se congregam todos para dançarem e cantarem a noite inteira o batuque. Gritam a valer e com as mãos batem cadencialmente nos bancos em que estão sentados. As tropas, ao descerem de São Paulo, vêm carregadas de açúcar bruto, toucinho e aguardente de cana e voltam levando sal, vinhos portugueses, fardos de mercadorias, vidros, ferragens, etc. (…) Os habitantes de São Paulo, como em geral os de toda a Província, são tidos entre os brasileiros por valentes e rancorosos. Há exemplos de atos atrozes dos paulistas para saciarem sua sede de vingança, sendo quase sempre mulheres a causa dessas desordens”.

Florence dedica os quatro anos seguintes de sua vida à expedição. Responsabiliza-se pela logística, escreve o diário, faz esboços e realiza ilustrações científicas. Assume o controle da situação quando se faz necessário, coordena a parte final da expedição e seu retorno ao Rio de Janeiro, em 1829. Em sua permanência de alguns meses no Rio de Janeiro, Florence dedica-se a aperfeiçoar seus dotes artísticos com Félix Emile Taunay, irmão de Aimé-Adrien.  

 

 

Próxima edição DE HERCULE A HÉRCULES –  Parte 2 –  A vida de Hercule Florence pós-Expedição Langsdorff. A lembrança do canto e piar de inúmeros animais selvagens sugere a Florence uma nova arte: a zoofonia, o estudo da natureza falante.