De Hercule a Hércules – Parte 2

A VIDA DE HERCULE FLORENCE PÓS-EXPEDIÇÃO LANGSDORFF

28 de janeiro de 2016

E A ARTE DA FOTOGRAFIA NASCEU EM CAMPINAS

Assim Florence explica a inspiração para registrar os sons observados na natureza: “Achando-me no Rio de Janeiro de volta de uma viagem nos Estados de São Paulo, Mato Grosso e Grã Pará, com o naturalista Langsdorff, a lembrança da voz de inúmeros animais selvagens me sugere a idéia de inventar novos sinais musicais adequados, e escrevo uma memória intitulada ‘Zoophonia’. (…) Mineralogia é estudo da natureza passiva. Zoologia é estudo da natureza ativa. Zoofonia é estudo da natureza falante”. Envia o manuscrito ‘Memória sobre a possibilidade de descrever os sons e as articulações da voz dos animais’  junto com o acervo da expedição Langsdorff para a Rússia.
 
 
ARAPONGA, SARACURA, SOCÓ, MUTUM, ARARA
 
O que lembra o canto e pio de cada ave
 
Em um manuscrito, detalha:
“Depois de passarmos de uma região para outra, surpreendiam-nos os gritos de viventes que nos eram desconhecidos, ao passo que desapareciam outros que já se nos tinham tornado familiares ou, se continuavam a fazer ouvir, era com modificação sensível no órgão vocal. Embora tivéssemos, no correr da expedição que já deixei contada, ocasião de ouvir inúmeros chamados, pios, cantos e urros de animais de toda a espécie, não me acudiu ao pensamento a zoofonia, pelo que de muito poucos tenho lembrança bem feita. Assim a araponga, bela ave de plumagem branca muito comum em São Paulo, pousa nas franças das árvores e produz um canto metálico que recorda exatamente o bater, ao longe, de um martelo sobre a bigorna de um ferreiro. A saracura parece monologar na solidão. O socó-boi, de manhã e à tarde à beira dos pântanos e lagoas,  faz lembrar o mugido das vacas. O mutum anuncia as primeiras barras do dia com pios rouquenhos e abafados. O canto de um pássaro, cujo nome se me riscou da memória, faz crer que são dois a se desafiarem em um duelo musical. O da anhuma-poca, grande e bela ave, semelha o som de um sino de aldeia, às margens alagadas e inabitadas do rio Paraguai. O aracauã grita como uma galinha assustada, ao passo que a inseparável companheira repete alternadamente as mesmas notas. A arara fende os ares, atirando de sua áspera garganta sílabas que seu nome formam e bandos inúmeros de papagaios, sobretudo com o cair da tarde, soltando gritos atordoam o viajante. 
Quando subíamos o manso curso do Paraguai, ouvíamos por vezes uma espécie de canto gutural de alguns bugios que se reuniam em uma das árvores da floresta. De repente, cessava a singular harmonia; um deles recomeçava e os outros, cada um por sua vez, entravam novamente no concertante.  Um grito rouco e fortemente repetido duas ou três vezes anunciava-nos a presença de outro animal, o jacaré; ou então urros, quais gigantescos miados, avisavam-nos da aproximação da onça; vozes totalmente diversas, indicadoras do gênio dos seres que as produziam e tão diferentes do quase relincho da pacífica anta que, lembrando o do cavalo, dele contudo tanto se diferencia no modo de assoviar.
Quando eu atravessava os floridos campos de Vila Maria, de manhã recreava-me o alegre cacarejar da seriema e à tarde entristecia-me o melancólico piar da esquiva jaó. No Diamantino, ouvia o acauã, o caracará, o quiriquiri, nomes onomatopaicos do modo de gritar dessas aves.
Nas margens do Juruena e Tapajós, mudaram com o aspecto da zona os cantares. Então notei a freqüência de um passarinho que a camaradagem chamava de ‘tropeiro’, porque parece arremedar o assovio de um almocreve. Ao cair da noite, éramos incomodados pelo coaxar dos sapos, tão forte que imitava os sons de um tambor de batuque dos negros. 
Quando se considera a quantidade de vozes dos animais e sua infinita variedade, tende-se a pensar que é quase impossível transcrevê-los sem o uso de um número infinito de sinais. O método que apresento é apenas uma primeira tentativa".
 
 
EXERCÍCIOS CRIATIVOS
 
Imagina um método pioneiro para registrar suas observações sonoras anotadas durante a expedição. Na tentativa de imprimir o estudo, verifica a inexistência de salas de impressão na Província de São Paulo. Não se apoquenta. Inventa um processo de impressão que permite o uso simultâneo de várias cores e denomina-o ‘polygraphia’.
Assim se explica em seu manuscrito:
“Tendo tido o ensejo, em 1830, de publicar uma memória tendente a fazer da voz dos animais um novo objeto dos Estudos da Natureza e estando em um país onde não há tipografia, compreendi o quanto seria útil que est’arte fosse simplificada em seu aparelho e em seu processo, afim de que todos pudessem imprimir quanto lhes fosse necessário. Desde então foi que me dediquei ao estudo das artes da impressão com os poucos livros que então possuía; e vi que a litografia, que é a que se pode tornar mais geral, ainda tinha pedras muito pesadas, volumosas e caras; que o seu processo é ainda assaz complicado e exige materiais que só se encontram em cidades grandes. A gravura exige planches de cuivre muito bem polidas, o que é custoso e ao mesmo tempo impossível de se encontrar em todos os lugares. A arte tipográfica está bem longe, por seu grande aparelho, de estar ao alcance de quem se encontre nas minhas circunstâncias…
Entreguei-me, pois a pesquisas que me levaram pouco a pouco a um processo cuja utilidade já me foi provada por cinco anos de experiências e que me apresentam duas grandes vantagens, às quais não ambicionava: a planche (tábua) embebida (founier) de tinta uma única vez para toda a tiragem e a impressão simultânea de todas as cores”. 
 
 Livre d'annotations et de premiers matériaux, Coleção AMF/Acervo IHF.
Fotografia: Heitor Florence
 
 
A receita para obtenção da tinta poligráfica tem muito de alquimia:
“Toma-se três quilogramas de sabão de potassa bem solúvel, corta-se em pedacinhos, põe-se em uma caçarola com água até cobrir. Deixa-se amolecer durante umas duas horas e põe-se sobre um fogo moderado, mexendo com uma espátula; o sabão dissolve-se prontamente. Ajunta-se um quilograma de tinta tipográfica; mexe-se e a combinação logo se opera”
 
 
Segundo ensaio poligráfico, em 1830. (Acervo IMS/RJ)
 
 
Experiência com tinta indelével e impressão poligráfica, por volta de 1833.
(Instituto Moreira Salles)
 
 
Poligrafia. Anúncio em cinco cores da Fábrica de Chapéus São Gonçalo, na Província de Minas Gerais.  Acervo IMSRJ.
 
 
Polygraphie. Cópia do original por Arnaldo Machado Florence. Coleção AMF/Acervo IHF. Fotografia: Heitor Florence. 
 
 
O processo inventado por Florence é o antepassado de um processo bem comum em todas as escolas e ainda nas memórias visual e olfativa dos estudantes do século XX: o mimeógrafo. Com sua invenção, publica em 1831 suas ‘Pesquisas sobre a voz dos animais ou ensaio de um novo objeto de estudos, oferecido aos amigos da natureza’, que tem o subtítulo ‘ZOOFONIA, CANTOS, GRITOS E URROS’.
A publicação contém: “Canto do jaó; Canto do tropeiro; Canto do joão-corta-pau; Coaxar de um sapo à margem dos rios do Pará; Grito do bugio; Canto da araponga; Canto da anhuma-poca; Canto da saracura; Canto do aracuã e da fêmea; Canto do bem-te-vi; Urro da onça; Urro da onça irritada; Grito do jacaré; Grito da ariranha; Canto do surucuã; Chilro de um inseto; Grito da gaivota”. 
 
 
Manuscrito de Florence com suas anotações zoofônicas. (Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico, Rio de Janeiro e Instituto Hercule Florence, São Paulo)
 
 
 
ZOOFONIA E BIOACÚSTICA
 
Jacques Vielliard considera Florence o pai da bioacústica
 
Hoje a zoofonia recebe o nome de Bioacústica e o ornitólogo Jacques Vielliard (Paris, 1945 – Belém do Pará, 2010) considera Florence o ‘Pai da Bioacústica’. Em 1978, Vielliard já era ornitólogo respeitado mundialmente e foi convidado pela Universidade de Campinas para estabelecer o que viria a ser o laboratório de Bioacústica mais importante das Américas. Vielliard acumulou uma enorme coleção de sons tropicais e criou o ‘Arquivo Sonoro Neotropical’. Em 2005, o ornitólogo estabeleceu um segundo arquivo chamado ‘Arquivo Sonoro da Amazônia’, na Universidade Federal do Pará. 
Com o aval do sogro importante, Florence seria mais tarde o proprietário da primeira tipografia do interior paulista.
 
 
 
Jacques Vielliard 
 
Jacques Vielliard e a capa de seu livro, ‘A Zoophonia de Hercule Florence’.
 
 
JOAQUIM CORREIA DE MELO, A PERSONIFICAÇÃO DO BEM
 
Os conhecimentos químicos e os ingredientes fornecidos por Correia de Melo permitem a Florence colocar em prática suas investigações sobre fotografia
 
Na próxima investida de Florence nas idéias que pululavam em sua cabeça, um personagem subestimado pelos seus contemporâneos e injustamente esquecido entra em cena: Joaquim Correia de Melo (1816-1877), ‘um dos sábios mais modestos e mais eminentes da Província de São Paulo’, químico, botânico e farmacêutico associado a Francisco Álvares Machado em uma botica, a farmácia de então.
Correia de Melo tem a amizade e o respeito de toda vila de São Carlos, inclusive a de Florence. Suas ações sociais valeram-lhe os apelidos carinhosos ‘Joaquinzinho da Botica’ ou ‘Joaquinzinho dos Pobres’. É botânico conhecido por suas pesquisas com plantas medicinais indígenas e condecorado no exterior pelo Jardim Botânico de São Petersburgo, da Rússia e pela Société Imperiale et Centrale d’Horticulture, da França. É membro honorário da Royal Society of Botanics e da British Pharmaceutical Conference, da Inglaterra. O Imperador Pedro II se surpreendeu ao ouvir elogios a Correia de Melo na Europa, personagem cuja existência ignorava completamente.  
Ao visitar Campinas, em 1875, para inauguração da iluminação a gás, o Imperador pediu para conhecê-lo pessoalmente. Correia de Melo o acompanhou na carruagem e se queixou que seus correspondentes nunca conseguiram abastecer sua biblioteca com a obra de von Martius. Pedro II satisfez o sonho de consumo de tão cativante personagem.
 
 
 
Joaquim Correia de Melo, ‘um dos sábios mais modestos e mais eminentes da Província de São Paulo’. 
 
 
A mente curiosa de Florence é despertada pelas possibilidades de aplicação do efeito da luz que desbotava os tecidos em exposição. Os conhecimentos químicos e os ingredientes fornecidos por Correia de Melo permitem a Florence colocar em prática suas investigações sobre fotografia. . Em seu diário, Florence divide com Correia de Melo o batismo do invento: photographia (do grego photos = luz, e graphia = desenho, escrita).  Com uma caixa de papelão improvisada como câmara escura, uma paleta de pintor e uma lente, Florence obtém em um papel embebido em nitrato de prata, depois de horas de exposição à luz, uma imagem que seria o primeiro negativo da história da fotografia.
 
 
PIONEIRISMO ETIMOLÓGICO
 
A invenção e o neologismo antecedem em alguns anos as tentativas do físico e pintor francês Louis Jacques Mande Daguerre (1781 – 1851), que inventa em Paris um processo de fixar imagens por meio da incidência da luz sobre uma placa de vidro e batiza o processo com o complicado nome de ‘daguerreoptia’.
Florence registra:
“Neste ano de 1832, no dia 15 de agosto, estando a passear na minha varanda, vem-me a idéia que talvez se possam fixar as imagens na câmara escura, por meio de um corpo que mude de cor pela ação da luz. Esta idéia é minha porque o menor indício nunca tocou antes o meu espírito. Vou ter com o senhor Joaquim Corrêa de Mello, boticário de meu sogro, homem instruído, que me diz existir  o nitrato de prata. (…) O senhor Melo me ajudou a formar a palavra – photographia. (…) Assim levei a fazer experiências, sem nunca poder fixar bem as imagens, até 1839, quando larguei mão por ter notícia da descoberta de Daguerre”. 
No dia primeiro de maio de 1839, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, anunciou a invenção que viria a ser conhecida como o daguerreótipo.  Dizia ser a ‘revolução nas artes do design’, onde ‘a natureza parece retratar-se, copiando suas obras, bem como obras de arte… Luz, a própria luz era o artista’. 
Florence declararia mais tarde:
"A fotografia é a maravilha do século. Eu também já havia estabelecido os fundamentos, previsto esta arte em sua plenitude. Realizei-a antes do processo de Daguerre, mas trabalhei no exílio. Imprimi por meio do sol sete anos antes de se falar em fotografia. Já tinha lhe dado esse nome, entretanto, a Daguerre todas as honras".  
 
 
Cópia fotográfica de etiquetas de farmácia obtida através do contato direto com o papel fotossensível, sob a ação da luz solar. Por volta de 1833. Lê-se na margem inferior esquerda (em sentido inverso): "Fotografia por H. Florence, inventor da fotografia." (Instituto Moreira Salles)
 
 
Um vídeo realizado por Erivam de Oliveira há alguns anos sobre a invenção da fotografia com depoimentos do professor e historiador Boris Kossoy, do ornitólogo Jacques Vielliard e de descendentes de Florence, traz informações detalhadas sobre as tentativas e frustrações inerentes ao pioneirismo dos que desbravam os novos rumos do conhecimento. Está disponível no endereço:
https://www.youtube.com/watch?v=Co8JyvA7Agg
 
Em sua tese de pós-graduação pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP ‘Narrando viagens e invenções. Hercule Florence: amigo das artes na periferia do capitalismo’, o historiador Dirceu Franco Ferreira apresenta cronologicamente as invenções de Florence e as intercala com reminiscências autobiográficas, filosóficas e soluções técnicas propostas pelo inventor. A tese do historiador está disponível em vários sítios da internet.
 
 
Photographie. Cópia do original por Arnaldo Machado Florence. Coleção AMF/Acervo IHF. Fotografia de Heitor Florence. 
 

PRÓXIMA EDIÇÃO 264 – Março de 2016 –  

DE HERCULE A HÉRCULES –  Parte 3
 
Florence, um nefelibata prático, adquire uma máquina tipográfica para impressão de anúncios e lança um jornal revolucionário: O Paulista.