Hercule Florence é fascinado pela ilustração do céu, da observação da atmosfera e da representação das nuvens em suas pinturas. Seu fanatismo não é tão exagerado quanto o do pintor inglês Turner, que se fez amarrar ao mastro de um navio para observar as nuvens por dentro, mas é igualmente detalhista. Suas paisagens celestes refletem um cuidado em mostrar os diversos tipos de nuvens, estudo que só seria sistematizado muitos anos depois.
Pintura do céu, por Florence.
Em 1834, Florence desabafa: “Eu inventei a fotografia; fixei as imagens na câmara escura; inventei a poligrafia… Minhas descobertas estão comigo, sepultadas no olvido; meu talento, minhas vigílias, meus sacrifícios, são estéreis para os outros… Se eu estivesse em Paris, lá encontraria, talvez, pessoas que me escutassem, mas aqui não vejo ninguém a quem possa comunicar minhas idéias. Os que me poderiam ouvir só pensam nas suas especulações e na política. (…) Minha teimosia expõe-me à indignação de muitas pessoas, mas não deixo de comunicar minhas idéias; se elas forem indignas de serem levadas em consideração, um eterno esquecimento as aguarda; assim o desgosto que poderiam causar só seria passageiro."
O aparecimento de documentos bancários falsos o leva a publicar em 1841 um folheto intitulado ‘Ensaio sobre a impressão das notas do Banco por um processo totalmente inimitável, precedido por algumas observações sobre a gravura das mesmas notas, e o modo de se conhecer as que são falsas’.
Na virada da década, de 1830 para 1840, Florence adquire uma máquina tipográfica para impressão de anúncios e lança um jornal revolucionário: ‘O Paulista’, considerado o ‘combustível do movimento liberal’. O abafamento da revolta contra a monarquia o obriga a colocar um fim no empreendimento e a dar um sumiço em seu equipamento depois da impressão de apenas quatro edições.
Em 1848, Florence inventa e descreve o emprego dos "Typo-sílabas", uma simplificação em que sílabas prontas facilitam de composição tipográfica.
Jornal de Campinas “Correio Popular” lembra o centenário de Hercule Florence.
DIVAGAÇÕES SOBRE A DIRIGIBILIDADE DOS BALÕES
Na época em que seu Henrique Dumont Vilares (1832-1892) e Dona Francisca de Paula Santos ainda faziam planos para formar uma família e nem sabiam que batizariam o sexto de seus oito filhos com o nome de Alberto Santos Dumont (1873-1932), Florence já matutava sobre a dirigibilidade dos balões: "Os balões de ar esféricos não são aerodinâmicos, não se pode direcioná-los. Tenho uma idéia, vamos colocar três bolas de lado a lado, um pequeno nariz afunilado na frente, uma parte posterior também afunilada”.
A concepção de um balão fusiforme controlado por contrapesos antecipava em décadas o conceito, colocado em prática por Santos Dumont no final do século XIX. A França nos deu Hercule Florence e nos levou, em troca, Santos Dumont.
Maria Angélica e Florence, em foto de 1848.
A morte de Maria Angélica em 1850, aos 36 anos, deixa para o viúvo a educação de muitos filhos. A amizade com o imigrante alemão Georg Krug, que viera para o Brasil em 1846, coloca em seu caminho a educadora Caroline Mary Catherine Krug (1828-1913). Caroline veio juntar-se ao irmão em Campinas no começo da década de 1850 e o casamento com Florence, em 1854, organiza a vida do viúvo com a criançada. Da união, mais sete filhos vêm se juntar aos oito sobreviventes dos 13 provenientes do casamento com Maria Angélica.
Caroline Krug, Hércules Florence e filhos. Desenho de Florence.
Visita a Nice, em 1855. Dona Augustine à direita. Desenho de Florence.
NA VANGUARDA DO ENSINO
A família Krug era protestante e trouxe para o Brasil a experiência europeia em educação de vanguarda. Um professor de Caroline havia sido aluno do famoso educador Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827). O ideal de Caroline de criar uma escola para moças encontra ressonância no visionário Florence, sempre insatisfeito com a ignorância geral. A filosofia de Pestalozzi, ‘de partir do mais fácil e simples, para o mais difícil e complexo’, foi adotada pelo Colégio Florence, inaugurado provisoriamente em 1863. Em 1865, o colégio transferiu-se para um prédio projetado pelo próprio Florence, que exerceu também o cargo de professor de desenho.
‘Collégio de D Carolina Florence em Campinas’. Desenho de Hercule Florence.
Em 1860 inventa a "pulvografia", a impressão por meio do pó, princípio básico da cópia xerográfica.
Em correspondência para Charles Auguste Taunay, irmão de Aimé-Adrien e ‘Major au service du Brésil’ em 1862, Florence desabafa: “No que são melhores do que eu todos esses felizes inventores que possuem tudo a seu alcance nas cidades da Europa, artistas, sábios, materiais e etc., aplausos, recompensas, ou mesmo a glória, enquanto que aqui eu não consigo sequer encontrar um operário capaz de me fazer uma régua de metal de vinte centímetros bem reta? Eu deveria, segundo dizem alguns, renunciar a tudo e me ocupar apenas do que é apreciado nesta região, ou seja, ganhar dinheiro? Mas então, sob este novo despotismo, não haveria mais vocação, sacerdócio, e nossa sociedade, recusando o progresso moral, poderia cair na condição das abelhas que hoje trabalham como há 6000 anos”.
Florence tem inclinações socialistas e se corresponde com o poeta baiano CASTRO ALVES (1847-1871). Identificam-se nos mesmos ideais. Em carta de setembro de 1869, escreve para o poeta: “Moro a metade do tempo na roça e quisera morar sempre, porque aprecio os matos virgens, o ar livre, o nascer e o por do sol. Descobri em 1829 uma ciência nova que chamei Zoofonia. Fiz algumas publicações em francês a este respeito; mas creio que não deixaram mais vestígios que uma pedra que cai num tanque de água. Com as belezas da natureza, eu lia os vossos versos, onde acho a mesma verdade que na criação”.
A roça a que se refere é a Fazenda Soledade, refúgio da família após o casamento com Carolina Krug.
Plantação em floresta recém-queimada, por Florence.
Pedro II visita novamente Campinas em 1876 e assim se dirige a Florence: “Nous sommes des vieux amis, Monsieur Florence, et je désire voir vos derniers travaux”.
Numa espécie de obituário em vida, Florence resume: “Em um século em que se recompensa o talento, a Providência me trouxe a um país onde isso não importa. Sofro os horrores da miséria, e minha imaginação está plena de descobertas. Nenhuma alma me escuta, nem me compreenderia. Aqui só se dá valor ao ouro. Só se ocupam de política, de comércio, açúcar e carne humana. Sem dúvida conheço almas grandes e belas, mas essas, em número muito reduzido, não têm formação na minha linguagem e eu respeito sua ignorância”.
Em 1879 morre em Campinas, aos 75 anos. Seus oito filhos do primeiro casamento e sete do segundo garantem o sobrenome e muitas das habilidades do patriarca por várias gerações, até os dias de hoje.
Caroline Krug só e com os filhos Isabel, Paulo e Guilherme Florence. Fotos da virada do século.
PRÓXIMA EDIÇÃO, EM ABRIL: De Hércules a Hercule – Parte 4 –
A César o que é de César e a Florence o que é de Florence. O nome de Florence ganha o mundo como naturalista, como artista e como inventor.